Bianca viajou inesperadamente com dois colegas para o interior do Rio Grande do Norte por conta de uma denúncia anônima que o escritório recebeu sobre trabalho infantil escravo, mas antes disso me crivou de mensagens de zap. Ela dizia que tínhamos que conversar, pois eu havia entendido tudo errado, e que essa conversa tinha que ser pessoalmente. Eu me limitei a responder dizendo que ela me procurasse tão logo estivesse de volta.

Maama voltou a manifestar insônia, sem que remédio algum desse jeito. Com isso, pede para ir ao banheiro várias vezes durante a noite e madrugada afora; daí também quase não durmo.

Depois de minha efetiva posse como síndica, uma verdadeira romaria de gente vem bater a minha porta quase todo dia e maama já reclamou muito comigo por causa disso.

 

--Sinto muito, senhor Roberto, mas eu não posso e nem pretendo repreender os moradores do apartamento 403 simplesmente porque o senhor acha que eles fazem sex* demais! – afirmou com educada firmeza – Isso absolutamente não existe!

 

--Mas olhe, não é só isso! – argumentou – Eles gem*m e gritam muito alto! – gesticulou – É um tal de ch*pa daqui, mete dali, enfia de acolá, futica de cá... e minha filha ouvindo isso! – reclamava de cara feia – Ela é menina moça, fica muito feio uma fuleiragem dessa!

 

--A partir do momento que eles não fazem escândalo depois do horário de silêncio, o senhor vai ter que aprender a conviver com isso. – olhava para o vizinho – Quanto a sua filha, se ela não quiser ouvir, que use um fone e curta uma musiquinha enquanto o couro come no 403. – deu o assunto por encerrado – Agora se me dá licença, tenho muito a fazer aqui! – fez um gesto de cabeça – Uma boa tarde pro senhor! – fechou a porta

 

--Isso é um absurdo! Uma síndica que concorda com a patifaria, onde é que nós vamos parar nesse prédio? – podia-se ouvir o homem reclamando sozinho no corredor – Tá virando rendezvous! Casa da luz vermelha!! Coletivo de fanfarrão e rapariga!

 

--Melhor ouvir isso que ser surda! – Camilla comentou antes de se sentar no sofá – Queria saber se dona Sibele tinha cara de ir na casa dos outros se meter em intimidade alheia! – olhava para a mãe e a cuidadora – Eu que não tô aqui pra fazer um papel desse!

 

--Em pleno feriado de primeiro de maio e esse povo não deixa de vir aqui atrás de Camilla! – Rute reclamou – Eles pensa o que? – gesticulou – Que síndica é babá de gente véia, eu hein! – cruzou os braços

 

--Eu falei, ah, mas eu falei foi muito pra essa menina que ela foi me arrumar chifre em cabeça de cavalo! – Suhaila reclamava também – Agora quero ver dar conta de cuidar de condomínio! – franziu o cenho – Inda foi me arrumar ideia de fazer CPI, espia pra isso, Rute! – olhou para a cuidadora

 

--Verdade, tem até CPI?? – Rute acabou achando graça – Eu que não quero parte com isso de condomínio, Deus que me guarde! – benzeu-se

 

--Montei um grupo de trabalho com dona Nilda, seu Genaro, dona Clea e Marcos, simplesmente as criaturas mais fofoqueiras desse prédio! – a professora comentou – E com eles vou tocar essa CPI. – cruzou as pernas – Quanto ao resto, tenho envolvido seu Valdo, que adora se sentir mandando em alguma coisa, e dona Marta, que ficou viúva, está surda e queixosa de falta do que fazer. – passou a mão nos cabelos – E é com esse pessoal que pretendo tocar esse barco daqui por diante. – explicou os planos

 

Rute achou graça novamente. – E isso aí bem que pode dar certo, visse? – bateu uma palma – Camilla é uma onda! – riu mais uma vez

 

--Humpf! – Suhaila fez um bico – Espia tua vida como é: você cuida de mim, cuida de casa, dá aula pra menino, faz tanta coisa naquela faculdade e virasse síndica! – enumerava nos dedos -- Toma cuidado que você vai acabar desmaiando pelos canto e estrebuchando por aí! – aconselhou -- Ói pra não ter o tal do barnau!

 

--Ave Maria, desconjuro! – Rute se benzeu – Negócio de barnau não é coisa de Deus! – olhou para cima – Livra ela desse mal, meu Pai! – pediu – Eu repreendo barnau!

 

A professora achou graça. – Não tenham medo, fique tranquila maama! – levantou-se do sofá e beijou a testa da outra – Não serei vítima de burnout ou de síndromes do gênero, se Deus quiser. – sorria – Agora peço licença porque tenho que me preparar pra uma reunião amanhã com uma empresa do Rio. Vamos ver se conseguimos acertar os ponteiros pra fechar um projeto de pesquisa com eles. – deu tchauzinho para as mulheres e foi para o quarto

 

--Se for pro teu bem, vai sim! – Suhaila balançava a cabeça positivamente

 

--Vai sim, se Deus quiser! – Rute desejou – Deus quer!

 

***

 

Camilla estava perto de terminar seu almoço quando uma pessoa repentinamente senta-se na mesa em frente a ela.

 

--Boa tarde, professora, tudo bem? – cumprimentou sorridente – Almoçando sozinha, o que houve? – debruçou-se sobre a mesa – Tomara que não tenha a ver com o fato de ter sido limada do projeto com aquela empresa do Rio. – olhava para a outra – Empresa tem dessas coisas, não fica chateada não!

 

“Mas será possível?” – pensou antes de responder – Boa tarde, Suellen, tudo bem? – limpou os lábios com guardanapo – Você anda tão bem informada que acho que deveria considerar a possibilidade de um doutorado na área de jornalismo ao invés de Engenharia. – respondeu sarcástica antes de dar uma garfada – “E dessa vez não foi Bianca quem contou, porque ela ainda nem soube disso!” – concluiu

 

Achou graça. – Aconteceu, sabe? – mudou de posição na cadeira e cruzou as pernas – Eu vim aqui hoje, passei na biblioteca, fui na secretaria e lá ouvi uns rapazes do Departamento comentando sobre o caso. – estudava o rosto da morena – By me contou que você já passou por isso outras vezes e que até hoje vira e mexe é sacaneada por ter sido dirigente sindical. – pausou brevemente – Pessoal é foda, né? Imagino a sua barra, coitada... – forjou uma expressão de piedade – Também tive minha fase revolucionária, mas já passou e sem me deixar marcas.

 

“Será que existe algo de minha vida que Bianca não tenha contado pra essa bicha?” – pensou contrariada mas disfarçou – É verdade, Suellen. – confessou ao terminar o almoço – Eu sofri muito e fui caluniada simplesmente por ter exercido o meu direito democrático de defender a minha categoria e os estudantes contra governos que nada fizeram além de acharcar a população. – limpou os lábios com guardanapo – Mas sabe? Sem arrependimentos! – sorriu – E se essa empresa me cortou do projeto por causa disso, é um sinal de que ela não é o tipo de instituição com a qual seria interessante lidar.

 

--Pensando por esse lado... – considerou – Mas deve dar raiva, né? – insistiu no assunto – Uma sensação de injustiça, impotência... – gesticulou brevemente – Quando penso nisso tudo que você passou e passa morro de dó! – falou com certa afetação

 

Recostou-se na cadeira e gastou uns segundos calada. – Na hora dá, mas eu não fico remoendo. E sabe por quê? Não fui criada como uma garotinha mimada que não sabe perder; muito pelo contrário! A vida me ensinou muitas coisas e eu aprendi, graças a Deus! – falava com tranquila firmeza – Reserve a sua piedade praquelas pessoas que não sabem perder e passam anos remoendo algo que deveriam deixar passar. – debruçou-se sobre a mesa – Imagina uma pessoa que perdeu uma coisa ou que saiu contrariada em seus interesses há quase... – fingiu que pensava -- quinze anos atrás! – olhava nos olhos – Aí imagina que mesmo depois de tanto tempo essa pessoa não se conforma e continua remoendo, buscando os objetos de suas mágoas só pra ficar fazendo intriguinhas, comentariozinhos venenosos, como se isso fosse alterar a vida em alguma coisa! – constatou a mudança na expressão de Suellen – Morro de pena de gente assim que só envelhece mas não evolui. – sorriu -- Você não acha, querida?

 

--E quem sou eu pra achar alguma coisa aqui? – levantou-se rapidamente – Bem, você tá desencanada com a derrota de hoje, não precisa de ajuda e eu já vou indo. – deu tchauzinho – Bom trabalho. – afastou-se da mesa andando a passos largos

 

--Por essa você não esperava, né, filha? – a professora falava sozinha enquanto observava Suellen se distanciar – Ficou sem resposta pra dar! – sorriu satisfeita consigo mesma – Toma, papuda!

 

***

 

--Pra mim tá mais que claro que ela estava interessada em você naquela época e guardou mágoa porque ficamos juntas e estamos juntas até hoje! – Camilla afirmou com ênfase – Quer dizer, pelo menos estávamos! – reconsiderou

 

--Estamos! – Bianca respondeu de imediato – Mas, sinceramente? – balançou a cabeça contrariada – Será possível que Suellen esperou quase 15 anos pra voltar desejosa de vingança? Não tem o menor sentido! – objetou

 

As duas mulheres conversavam no apartamento da advogada. Estavam na sala, cada uma em uma poltrona.

 

--Como foi sua história com ela? – a professora queria saber – Isso você nunca me contou!

 

--Mas não tem história, habibem! – passou a mão nos cabelos – A gente estudou juntas no Ensino Médio, morávamos perto, saíamos de vez em quando com um grupinho da escola e só. Quando acabou, perdemos o contato completamente até porque a gente lá em casa se mudou. – relembrava – Pra você ter uma ideia, eu só fui descobrir que ela também era lésbica anos depois e isso porque a gente se encontrou sem querer numa passeata por aí, eu tava no movimento LGBT e ela aos beijos com uma garota. – ajeitou-se na cadeira – Foi daquele momento em diante que a gente passou a ter um contato esporádico por causa de passeatas, manifestações... até que veio você.

 

--E nunca te ocorreu que ela tivesse uma quedinha antiga por você? – questionou – Aí o fato de saber que você é lésbica deu uma esperança que se frustrou por minha causa, de acordo com o raciocínio dela! Já que seu relacionamento com a juíza era super escondido, ela devia pensar que você tava solteira naquela época. – especulou – Talvez ela tenha continuado nas passeatas só pra se aproximar de você! – gesticulou -- Dei aula pra ela, Suellen chegou a trabalhar no nosso laboratório e nunca demonstrou ter um espírito de luta em prol da coletividade como nós temos!

 

--Tá bom, amore, pode até ser! – concordou – Mas você não acha meio demais que ela tenha voltado só pra nos separar? Parece até coisa de seriado! – riu brevemente – Daqui a pouco cê vai achar que ela é uma serial killer!

 

--Eu sei que ela não voltou pro Brasil por nossa causa e nem me procurou no Departamento querendo vingança. – continuava explicando o raciocínio – MAS, -- salientou a palavra – ao saber que nós ainda estávamos juntas, deve ter batido uma sensação de derrota e ela ficou a fim de nos separar na base das intriguinhas! – concluiu – E com você contando TUDO de nossa vida pra ela, a safada fica com a faca e o queijo na mão! – afirmou enfática

 

Revoltou-se com o que ouviu. – Eu não conto tudo! – levantou-se do sofá e caminhou até a janela – Mas o que ocorre é que quando Suellen voltou, caiu a ficha que hoje em dia eu não tenho mais amigas... – olhava para fora – Com quem posso desabafar? Com meus pais, que nunca tiveram grandes diálogos comigo? Com Barbara, que se modificou completamente depois que arrumou aquele traste? – voltou a olhar para a professora – Por causa do nosso relacionamento fiquei muito sozinha e ela me pareceu alguém que podia ser minha amiga! – justificou-se

 

--Por causa do nosso relacionamento?? – revoltou-se também – Ora, Bianca, eu nunca exigi isso de você! – aproximou-se dela – Se você se afastou de suas amizades foi simplesmente por decisão sua!

 

--Ah, é, Camilla Isfahan? – pôs as mãos na cintura – E seus amigos, cadê? – cobrou

 

--Acontece que antes da pandemia eu tinha amigos! – pausou brevemente – Conforme a vida foi ficando punk todo mundo foi se afastando... – olhava para a advogada – Ou fui eu quem me afastei e ninguém se importou com isso, sei lá! – gesticulou – Mas o fato é que não deixei ninguém de lado por causa de nós! Ninguém tem que se isolar porque vive um relacionamento e eu sempre te disse isso!

 

Gastou uns segundos calada antes de responder. – Tá bom, Camilla! – deu um suspiro profundo – Vou me afastar de Suellen, pode deixar! – olhava para a namorada – Não será por causa dela que a gente vai se separar! – garantiu – Embora ela tenha me dito muitas coisas que me fizeram pensar...

 

--Se esses pensamentos te mostraram que é melhor terminar comigo, -- foi logo dizendo – não quero que se prenda! – desviou o olhar e se afastou – Nunca fui algema de ninguém e nem pretendo ser.

 

--Por que sempre se coloca na posição de alguém que será abandonada, habibem? – perguntou incomodada – Eu não quero te deixar, só quero que nossa vida mude!

 

--Mude como? – virou-se de frente para a outra novamente

 

Aproximou-se devagar e tocou o rosto da professora. – Que as coisas entre nós não sejam sempre tão tensas por um motivo qualquer... – respondeu suavemente

 

--Isso é um trabalho conjunto, minha linda. – respondeu com a mesma suavidade – Meu e seu! – deu um sorriso – A gente virou um casal muito chato, visse? – as duas riram brevemente – Pior que os casais das novelas mexicanas que prima Elzira assiste! – riram mais uma vez

 

--Pede pra Rute ir embora mais tarde? – aproximou-se ainda mais – Dá tempo de deixar de ser um casal chato ainda hoje... – beijou-a lentamente – Não dá? – beijou-a novamente

 

--Dá! – abraçou-a pela cintura e a beijou com intensidade

 

***

 

--Então Bianca decidiu se afastar dela e desde então Suellen não tem me incomodado. Acho que juntou isso com o que ouviu de mim e acabou tomando tenência. – a professora contava as novidades – Quando ela aparece no Departamento não dá mais jeito de me procurar como fazia antes. E também creio que esteja estudando mais porque o processo de seleção pro doutorado é agora em junho.

 

--São boas notícias, Camilla, mas você não achou que em pouco tempo ela foi capaz de gerar um calor desnecessário que demorou a se dissipar? – Simone provocou – Suellen teve muita facilidade para encontrar um espaço entre vocês e preencher. – observou

 

--Pois é... – concordou – Acredita que Bianca reclamou comigo que deu tanta abertura pra ela porque deixou as amigas de lado pelo nosso relacionamento? – repetiu a fala da namorada – Eu nunca fui a favor disso, nunca exigi isso dela e tampouco agi assim! – gesticulou – Parei pra pensar e constatei que há anos ela só tem a irmã, os colegas de trabalho e ninguém mais!

 

--Esse é um equívoco muito comum no comportamento de vários casais, sejam hetero ou homoafetivos. – explicou – As mulheres especialmente se colocam nessa posição de dedicação exclusiva e com isso experimentam um aumento substancial em suas inseguranças. – olhava para a morena – Quando acontece do relacionamento terminar, ficam sem chão. – pausou brevemente – No caso de Bianca me parece um círculo vicioso: ela é insegura e só foca em você e por somente focar em você, fica mais insegura.

 

--E como resolver isso? – perguntou de imediato – Eu não posso obrigá-la a mudar de comportamento, embora a incentive!

 

--Incentiva a mudança conscientemente, mas ao mesmo tempo, e inconscientemente, mantém esse estado de coisas pois isso lhe parece positivo para sua frágil autoestima. – a psicóloga salientou – Para resolver isso, você precisa não só esperar a mudança da parte dela, mas estimular a mudança em você mesma!

 

Deu um suspiro profundo. – Talvez você tenha razão nisso... – abaixou a cabeça – Talvez...

 

--Faz parte do nosso trabalho fazer com que você se liberte dos sentimentos de rejeição e culpa. E tudo isso está interligado. – esclareceu – Temos um caminho a percorrer aqui. -- gastou uns segundos calada – Ontem terminei de ler seus contos sob o pseudônimo de Harih. Todos eles.

 

--O que?? – levantou a cabeça surpreendida – Você leu todos os meus contos? – não esperava ouvir aquilo

 

--Inclusive o atual, ainda inconcluso. Adorei a personagem que sou eu! – sorriu – E gostaria de lhe dizer que fiquei impressionada com seus textos. Mexeram muito comigo.

 

--Ah... – não sabia o que dizer – Obrigada. – sorriu encabulada

 

--Observei que embora sejam todos muito diferentes ao mesmo tempo trazem grandes semelhanças em pontos marcantes, como você e Bianca se esparramando por várias personagens. – destacou – Eu poderia dizer muito sobre isso, mas gostaria de destacar duas situações: primeiro foi constatar a presença constante de uma senhora, dona de uma língua afiada, coração bondoso e muito espirituosa. Ela marca a vida de várias personagens, mas sempre desencarna no final.

 

Camilla derramou uma lágrima sentida.

 

--E segundo, o fato de que sempre os desencarnados dizem para uma de suas personagens que ela não é motivo de vergonha. – observou que a professora derramou mais lágrimas – Seus avós e tia Jandira de uma forma ou de outra, não é?

 

A professora simplesmente balançou a cabeça confirmando.

 

--Sabe, Camilla, existe uma técnica que a neurociência nos ensina, através da qual, falando aqui em linguagem leiga, podemos mudar certas realidades em nossas lembranças induzindo o cérebro a isso. – explicava – Podemos fazer com que você se despeça de seus avós e ouça deles o que tanto deseja ouvir, assim como podemos fazer você se despedir de tia Jandira e receber dela o perdão que tanto quer. – propôs – Isso tem nada tem de espiritual, é simplesmente um processo cerebral consciente e subconsciente. – olhava para a outra mulher – Uma forma de fazer você se reconectar com um estado mental mais livre, que certamente um dia teve. – gesticulou -- Que acha de fazermos este exercício?

 

--Não! – levantou-se subitamente – Eu não tô preparada pra isso. – olhou para o relógio – E por hoje acho que já concluímos, não é? – perguntou mal disfarçando o nervosismo

 

--Se você quiser, sim. – respondeu pacientemente

 

A professora balançou a cabeça, pegou a bolsa e saiu rapidamente ao se despedir.

 

***

 

Era noite, chovia e eu terminava de arrumar a cozinha. Maama estava milagrosamente sem dor e bastante calma. Sentadinha em seu cantinho oficial na sala, assistia um show de Alceu Valença no celular. De repente a música silenciou.

 

--Camilla, põe o celular pra carregar pra mim? O bicho morreu bem na hora que ia tocar a minha preferida! – Suhaila pediu em voz alta

 

Achei graça. – Já vou, maama! – respondi – E o pior é que meu celular também descarregou. Aproveito e coloco os dois pra carregar. – falei comigo mesma

 

Chegando na sala, a luz subitamente se apagou.

 

--E não acabou-se a luz de novo? – Suhaila reclamou – Não pode chover mais forte nessa cidade que a luz se dana, é uma pouca vergonha isso aí! – deu um tapa no braço da poltrona – Tá pior que a roça!

 

--E que hora pra acabar! – fui tateando até chegar na poltrona – Ainda bem que não tá fazendo calor. – sentei-me -- Aliás, maama, a senhora lembra que assistimos esse show do Alceu Valença com a orquestra de Ouro Preto? – ajeitei-me no sofá – Showzão!

 

--Se lembro! – respondeu de pronto – E quando tocou minha preferida cantei com fé!

 

Achei graça novamente. – Nós cantamos, né? – ri um pouco e gastei uns segundos calada – Maama, queria lhe perguntar se não for abuso: – pensava em como falar – a senhora lembra de alguém quando ouve essa canção? Noto como se entrega à música. – pausei brevemente – Pensa em meu pai, por exemplo? – arrisquei

 

--Não... não penso em seu pai há muitos e muitos anos. – olhava em minha direção – Eu penso... não sei... – silenciou brevemente -- Mas desde muito tempo parece que eu espero uma pessoa chegar ou uma coisa acontecer... eu não sei, mas essa música mexe com minhas saudade, não sabe? – deu um suspiro – Já que não tem luz, celular e nem nada, cante ela pra mim? – pediu humildemente

 

--Cantar?? – surpreendi-me – Nossa, mas faz tanto tempo que eu não canto... – sorri sem graça

 

--Desde que tua tia Jandira morreu, eu sei! – afirmou de pronto – Como sei que passasse a cantar bem menos depois que tua vó se foi. – pausou brevemente – E nenhuma delas ia gostar disso porque sempre fosse alegre, brincalhona, animada... Sempre fosse nossa alegria! – falava com emoção – Você não pode deixar essas coisas morrer no coração, menina! – aconselhou

 

Eu não soube o que dizer.

 

--Não posso mais fazer um monte de coisa, minha filha. Não posso mais plantar, colher, cuidar de meu roçado, de minhas planta... não posso mais cuidar de menino e nem ajudar as pessoa como sempre gostei, mas você pode! – falava com ênfase – Não quero que essa miséria que acontece comigo mate as coisa bonita que você tem dentro do peito!

 

--E nada tá matando, maama! – ajoelhei-me diante dela – Não se culpe se percebe uma mudança em mim! – controlava a emoção – Eu... eu tô numa caminhada dentro de mim, é isso! Não sei explicar de outro jeito, mas a senhora não tá matando nada dentro de mim! – dizia a verdade

 

--Não sou eu, mas o sofrimento que vem comigo... – argumentou – Sabe, minha filha, tive pensando naquela tal de Suellen que você me falou. – segurou minhas mãos – Ela vai ser sua aluna e você sempre orientou seus aluno nos estudo e na vida! Oriente ela também, porque não foi à toa que essa bicha fuleira surgiu no teu caminho! – achei graça – Não deixe ela sair de sua vida sem que essa birra passe! – aconselhou – Ói, vou te contar uma história que ouvi no programa espírita das internet.

 

--Conte. – desejava ouvir

 

--Diz que o falecido Chico Xavier, que Deus o tenha, gostava muito de bicho. Aí um cachorro que ela tinha paixão ficou doente e uma mulher abestada matou o pobre! – contava a história – Nisso Chico ficou chateado e até um pouco magoado, não sabe? – repetia o que ouviu – Então aquele espírito que orienta ele apareceu e falou assim: homi, tome tenência e deixe dessas peitica! Vai descobrir do que essa miserenta que matou teu cachorro gosta e dá um jeito de dar isso de presente pra ela!

 

--Emmanuel falou isso? Desse jeito? – perguntei divertida

 

--Tô traduzindo, não sabe? – ri – Aí Chico Xavier não gostou muito da ideia mas foi curiar e descobriu que a bicha queria era uma máquina de costura danada de cara. – continuava contando – Então ele comprou e deu de presente pra mulher, que ficou tão feliz que se endoidou! – ri mais uma vez – Com isso Chico também ficou feliz e passou a birra!

 

--É... esse era Chico Xavier... – comentei admirada – Mas eu não sei se tenho grandeza de seguir essa sua receita, maama. – confessei

 

--Mas a receita não é minha, menina! – Suhaila retrucou – É de Jesus! E com Jesus não se discute!

 

Balancei a cabeça pensativa e dei um suspiro profundo. – A senhora quer que eu cante sua música preferida, não é? – soltei as mãos dela e levantei-me para me sentar ao seu lado – Então vamos lá. – respirei fundo mais uma vez e fechei os olhos – Vamos lá. – preparei-me para cantar

 

Podia sentir que maama fechou os olhos também.

 

--Na bruma leve das paixões que vem de dentro, -- comecei a cantar -- tu vem chegando pra brincar no meu quintal. – deixei a mente vagar por lembranças -- No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento. – o coração batia acelerado -- E o sol quarando nossas roupas no varal...

 

Subitamente parecia que o passado se abria diante de mim e lá estávamos nós: maama, gidda, giddu e eu capinando e cantando ao final da tarde, enquanto tia Jandira fumava seu cachimbo abaixada no chão.

 

“Na bruma leve das paixões que vem de dentro,

Tu vem chegando pra brincar no meu quintal...”

 

Vi meu padrasto chegar animado com duas bolsas cheias de biscoito Divertido, simplesmente porque me ouviu dizer que era bom.

 

“No teu cavalo, peito nu, cabelo ao vento,

E o sol quarando nossas roupas no varal...”

 

Lembrei de minha formatura na faculdade e a emoção que uniu maama e eu num abraço que dizia tudo. Dinda chorava nos admirando.

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Pude sentir o vento nos cabelos, ao me vislumbrar descendo a ladeira mais íngreme da cidade no carrinho de rolimã que construí para brincar com meus irmãos. Nós quatro espremidos e gritando sorridentes enquanto eu tentava nos guiar e impedir uma queda.

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

 

Elzira e eu dançando como loucas ao som das músicas que faziam nossa cabeça na juventude.

 

“A voz do anjo sussurrou no meu ouvido,

Eu não duvido, já escuto os teus sinais...”

 

Tia Jandira e eu tomando banho de mar com uso de uma cadeira anfíbia, enquanto eu cantava sua música preferida para diverti-la.

 

“Que tu virias numa manhã de domingo,

Eu te anuncio nos sinos das catedrais...”

 

Vários flashs de fatos da vida vieram a minha mente naquele momento.

 

“Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais,

Tu vens, tu vens,

Eu já escuto os teus sinais...”

Anunciação. Intérprete e compositor: Alceu Valença. In: Anjo Avesso. Ariola Discos / Polygram, 1983. 1 Disco vinil, lado A, faixa 2 (4min58).

 

E subitamente senti que quem deveria vir, voltar para minha vida, era eu!

 

De uma forma ou de outra maama me fez ver que essa é também uma receita de Jesus: não importa o que aconteça, não importam as dores e todo sofrimento, mas precisamos ser capazes de renascer sempre que necessário, todos os dias que seja. A morte do corpo é simplesmente uma passagem, o final da trilha, a conclusão do estágio. A morte da alma é o perigo e ela acontece devagar, aos poucos, sem que a gente perceba. É contra ela que se deve lutar!

 

Mas essa luta não é belicosa! Ela é repleta do mais precioso na vida: AMOR!

 

***

 

--Nossa, habibem, que surpresa boa! – Bianca abriu a porta com um sorriso nos lábios – Oh, my, uma Rosa do Deserto! – admirou-se ao ver o jarro nas mãos da namorada – Que linda! – deu passagem – Vem, entra? – convidou – Adorei! – beijou-a assim que fechou a porta

 

--Você se lembra da primeira vez que te dei uma Rosa do Deserto? – perguntou ao parar no meio da sala – Aliás, onde quer que a coloque?

 

--Na varandinha! – deu um pulinho – E claro que eu lembro! Você me deu de presente pra simbolizar meu renascimento depois que tirei aquela uma de minha vida! – referia-se à juíza

 

--Exatamente. – foi até a varandinha e deixou a planta em uma posição que julgou adequada – E você a teve por muitos anos até que um temporal acabou com ela. – olhou novamente para a namorada – Essa aqui tem o mesmo significado, talvez até um pouco maior: -- aproximou-se da outra – o nosso renascimento, seja individual, seja como um casal. – beijou-a nos lábios

 

Envolveu o pescoço da morena com os braços. – Eu adorei isso! – sorria empolgada – E o que significa, amore? – beijou-a – Entendi o que você falou, mas o que passa nessa cabecinha? – olhava para a amada

 

--A gente precisa se reeducar como um casal, minha linda. – respondeu gentilmente – Eu com minhas inseguranças e mensagens contraditórias e você com as suas inseguranças e ciúmes. – abraçou-a pela cintura – Sei que a gente fica até chata de tanto que se repete, mas... vamos nos reconectar? – pediu – Vamos trabalhar juntas pra superar o que nos faz tão mal?

 

Bianca respondeu com um beijo apaixonado.

 

Fim do capítulo