Dona Rute voltou ao trabalho logo depois da Páscoa e daí pude retornar ao presencial. Maama foi seguindo estável e mantendo-se em seus tratamentos. Novamente trocamos de psicóloga para ela, mas desta vez estou confiante na profissional, a qual foi muito bem recomendada por Simone.

Bianca voltou da entrevista cheia de novidades e sinceramente não sabe o que pensar quanto ao desfecho do processo. A OIT informou a ela que a resposta final levará mais alguns meses, sem precisar ao certo quantos.

Suellen se decepcionou ao saber que a inscrição para o doutorado só abriria em junho, mas decidiu que semanalmente estará no Departamento. Ela e Bianca já se encontraram e até saíram juntas para jogar conversa fora em um barzinho na badalada rua da Moeda.

 

--Maama e dona Rute tão almoçando. – Camilla acompanhava pelo celular – E dona Rute se diverte com o robô; ela olha pra ele e ri! – achou graça e guardou o telefone na bolsa

 

--Mas aquele seu robozinho é mesmo uma onda! – bebeu um gole de suco – Já pensasse em fazer um pra me espionar, amore? – piscou para a outra antes de dar uma garfada

 

--Não, porque você bem seria capaz de cismar e fazer um strip-tease na frente dele só me deixar atiçada. – respondeu em voz mais baixa – Aí danou-se! Eu não ia conseguir mais trabalhar. – deu uma garfada

 

Riu brevemente. – Com certeza, habibem! Com certeza! – deu uma garfada também

 

As duas mulheres terminavam de almoçar em um quiosque da Universidade próximo ao Departamento da professora.

 

--Sua maama deu um up depois da viagem de Páscoa, né? – limpou os lábios ao encerrar a refeição – E as crises de ansiedade, teve melhora nisso? – queria saber

 

--Mais ou menos. – encerrou a refeição também – Maama fica nervosa por qualquer coisa hoje em dia e nunca se sabe quando ou porque uma crise vai começar. – limpou os lábios com guardanapo – Eu tô confiante nessa psicóloga nova. Simone disse que ela é especializada em traumas e ansiedade. – olhava para a advogada – A mulher acabou de voltar de um pós doc na USP e tá cheia de gás! – sorriu

 

--E com tudo isso você também não fica cheia de gás? – sorriu insinuante – Que acha da gente dar uma escapadinha nesse sábado à noite? – propôs

 

--Linda, eu adoraria, mas maama não pode ficar sozinha em casa. Já conversamos sobre isso... – respondeu gentilmente – Do jeito que Elzira anda, nem tenho ideia de quando ela volta pra Recife pra passar um dia que seja e eu não tenho condições de bancar mais uma cuidadora além de dona Rute. – justificou-se

 

--Suellen me disse que pode dar uma força e ficar com dona Suhaila se a gente quiser dar uma escapadinha. – debruçou-se sobre a mesa – Que acha?

 

--O que??? – estranhou o que ouviu – Bianca, o que é isso? – franziu o cenho – Eu não vou colocar Suellen lá em casa pra ficar com maama que nunca nem a viu mais gorda! – retrucou – Além do mais, se ela for aprovada no doutorado como creio que vai, não fica nada bem que tenha essas intimidades comigo e na minha casa, já que vou ser orientadora dela! – olhava para a namorada – Também não gostei de saber que você anda fazendo fuxico de minha vida pra ela!

 

--Fuxico?? – revoltou-se e se endireitou na mesa – Amore, eu só comentei com ela a barra que você tem vivido com sua maama e como isso não te deixa fazer quase nada na vida! – respondeu de cara feia – E aí ela se ofereceu na maior boa vontade pra ajudar, só isso!

 

--Pois é, mas me perdoe, só que não gostei! – respondeu com seriedade – Eu não gosto de ficar falando as coisas de minha vida pros outros e não acho que Suellen tenha que ficar sabendo de nossa intimidade!

 

--Falta de intimidade, você quer dizer, né? – retrucou de imediato – Eu, hein, Camilla, qual o problema? Foi ela que nos apresentou e eu não contei segredo nenhum!

 

--E não é porque ela nos apresentou que tem ficar sabendo de tudo de nossa vida! – contra argumentou

 

--Quer saber? – levantou-se da mesa – Já fiz a minha boa ação e vim aqui almoçar com você, agora vou mimbora! – decidiu

 

--Boa ação?? – levantou-se indignada – Agora vir almoçar comigo é uma boa ação?? – não gostou do que ouviu – Tá ótimo, então não precisa mais ser uma boa samaritana. – gesticulou – Não preciso dessa caridade! – ironizou

 

--Tá certa! – pegou a bolsa – Passar bem, doutora Camilla Isfahan! – saiu andando com pressa

 

--Mas que diacho! – reclamou em voz baixa – Só me faltava mais essa!

 

***

 

--Você tá com uma cara de quem fuçou uns miúdo... – Suhaila reparava na filha – Que foi que te deu, menina? Reparei nessa carranca desde que voltasse pra casa! – esperava uma resposta

 

--Ah, maama... – ficou sem graça – É Bianca. – ajudou a idosa a se sentar no sofá – Uma amiga dela das antigas voltou pra Recife e agora ela fica falando as coisas de nossa vida pra essa mulher, só porque foi a pessoa que nos apresentou. – sentou-se ao lado – E eu não gostei, reclamei e ela ficou irada comigo. – pausou brevemente – Almoçamos juntas hoje na faculdade e foi aí que aconteceu essa conversa. – esclareceu

 

--Essa Bianca é uma bicha um bocado estranha. – concluiu – Tem ciúme de tudo que é mulher e elege essa outra pra fazer fuxico da vida de vocês... – fez um gesto despreocupado – Eu que não vou me meter nisso, mas não fique nesse aperreio por causa dela. – aconselhou – Isso não é motivo pra terminar namoro, mas se terminar é porque não presta!

 

Achou graça. – Tá bom, maama... – queria mudar de assunto – E hoje, como foi seu dia? – olhava para a idosa

 

--Nada de mais. Fiz minha fisioterapia da internet, comi, proseei mais Rute e fui seguida o tempo todo pelo teu robô pistingo! – Camilla riu da observação – Rute deixou minha roupa já pronta mode a gente ir na clínica amanhã, não sabe? – destacou – Tá passada e arrumada lá no quartinho.

 

--Que bom! – balançou a cabeça positivamente – Amanhã eu chego aqui às quatro e vamos pra consulta. Depois completo o expediente remotamente. – informou – Pode falar com dona Rute que deixo ela em casa na volta.

 

--Falo sim. – concordou – Ói, sabia que ela tem uma neta? – fofocou – Viu a foto da menina vestida de coelhinha nas internet da filha e ficou aí toda borocoxô!

 

--Ah é, ela tem? – surpreendeu-se – Quantos anos tem a menina?

 

--Uns sete. E é tão bonitinha! – afirmou com ênfase – Ela me mostrou as foto no celular. – olhava para a filha – E foi futicando as internet da filha que ela descobriu que a menina estuda numa escola estadual lá em Casa Amarela. – cruzou os braços – Agora vê? Nem disso ela sabia!

 

--Qual o nome da menina, ela falou? – perguntou curiosa

 

--Nome diferente: é Astraia! – pausou brevemente – Eu fiquei só espiando, não sabe? Fica de mal com a filha pra depois ficar babando nas internet atrás de neta! Até falei pra ela assim: Rute, mas tu já gosta de sofrer, visse? Toma vergonha e vá botar sua filha e neta, deixe de ser besta!

 

Achou graça novamente. – Pena que ela não esteja disposta a ouvir os seus conselhos ainda. – cruzou as pernas – Mas um dia, quem sabe? – respondeu pensativa

 

***

 

--Eu tô super empolgada com a ideia de trabalhar com a tal pele eletrônica multissensorial! – Suellen exclamou sorridente – Fiquei boba que ela consegue monitorar nove marcadores diferentes que caracterizam a resposta ao estresse!

 

--Falta pouco pra essa pele se tornar um produto comercial, mas a equipe do professor Changhu tem encontrado dificuldades com a comunicação bluetooth e com a distinção entre os níveis de estresse negativo e positivo. – explicava – Quando eu conversei com ele sobre você, ficou todo empolgado ao saber de seus anos de experiência por várias empresas, especialmente na China. – olhava para a futura aluna – E daí ele te quer na equipe o quanto antes. – sorriu

 

--Não adianta, é a China sempre me querendo! – riram brevemente – Pode deixar que eu vou cair de cabeça fazendo uma baita revisão bibliográfica sobre o assunto mesmo antes de ganhar a bolsa! – prometeu – Vou usar tudo que aprendi nessa vida errante pra tentar ajudar a resolver os problemas! – garantiu

 

--Contamos com isso e as duas universidades agradecem, no Brasil e na China! – colocou o computador em modo de espera – Suellen, perdoe, mas agora tenho que sair porque darei aula em 20 minutos e tenho uma pequena caminhada até chegar na sala onde os alunos me esperam. – levantou-se

 

--Tranquilo, vamos juntas por uma parte desse caminho. – levantou-se também – Eu realmente tenho muito boas lembranças daqui. – saíram da sala – Camilla, olha... – pausou brevemente – Bianca me falou que vocês se desentenderam por minha causa. – olhou de relance para a professora – O que foi, rolou um ciuminho? – brincou – Precisava disso tudo não, visse? – deu um tapinha no braço da outra

 

“Eu não acredito que tô ouvindo isso!” – a morena pensou revoltada – “Bianca parece que não sabe mais guardar a língua dentro da boca!” – respirou fundo antes de responder – Suellen, eu nunca fui de ficar dividindo minha intimidade com os outros, especialmente no lugar de trabalho e com alguém que pretende ser minha orientada. – falava formal e educadamente – Não pretendo mudar esse hábito agora, entendeu? – olhou rapidamente para a outra

 

--Own, profe, calma aí, vá? – riu brevemente – Tava só querendo ajudar! – sorriu

 

--Já ajudou em 2009. – sorriu também – Agora não se preocupe mais. – pediu

 

--Tudo bem, relaxa. – fez um gesto despreocupado – Eu só fiquei pensando cá com meus bytes quando ela me contou de vocês, que de repente eu podia fazer alguma coisa pra quebrar um galho. – passou a mão nos cabelos – Tudo bem, Camilla, você é uma mulher interessante, inteligente, viajada, tem apresentação mas... porr*! – riu brevemente – Bianca é um avião, né? – gesticulou – Inteligente, culta, poliglota, fogosa... quando a gente saiu pra conversar lá na rua da Moeda foi até chato porque toda hora vinha um cabra se assanhar. – contava – Claro que ela não deu nem tchum, mas posso dizer que quando ela passa tem um monte de mulher que olha. – diminuíram o passo pois se separariam naquela parte do caminho – E ela é bem mais nova que você, tem condições de se cuidar mais, de sair... – parou diante da professora – Eu só queria te dar um help nessa hora!

 

Não gostou de ouvir aquilo mas não deixou transparecer -- Agradeço a boa vontade mas os problemas de um casal devem ficar restritos ao casal. – pausou brevemente – Até mais, Suellen. – despediu-se

 

--Até. – respondeu sorridente – Mas fica esperta! A vida não para porque você tem problemas. – piscou e foi embora

 

A professora respirou fundo novamente e seguiu para a sala de aula.

 

***

 

--Sabe quando você percebe que a pessoa tá se fazendo de boazinha mas tá ali só pra jogar um veneno? – Camilla falava gesticulando – Sei lá, eu não acho que tô julgando mal! Parecia até que podia sentir os maus fluidos dela pra me contaminar! – olhou para a psicóloga – E o pouco que ela falou serviu pra me deixar muito mal! – baixou a cabeça brevemente – Até agora Bianca não me procurou e já faz quatro dias que a gente se desentendeu... – balançou a cabeça negativamente – E eu não quero procurar por ela. Ainda não acho que tenha feito nada pra justificar a reação exagerada dela. – ponderou um pouco – Ou fui eu que tive uma reação exagerada, sei lá!

 

--Essa moça, Suellen, mexeu com seu ponto fraco que é o medo da rejeição. – Simone considerou – Ela se aproveitou do medo e da insegurança usual que imperam nas pessoas mais velhas em um relacionamento com diferença de idade e plantou uma sementinha incômoda em você. – constatou – Não sei o que ela anda dizendo pra Bianca, mas o que me contou me leva a crer que ela também não tem lançado boas sementes durante essas conversas. – cruzou as pernas – Resta saber se vocês vão deixar tais sementes germinarem.

 

--Será que ela tá de olho na Bianca? – perguntou-se em voz alta – Parece óbvio dizer que sim, mas isso tudo é tão estranho! Depois de tantos anos... – pausou brevemente – Por outro lado eu entendo que Bianca possa dar ouvidos ao que ela diga porque não é fácil namorar alguém como eu, sempre sem tempo, sempre enrolada... – mirou um ponto no infinito

 

--Mas ela disse que tava disposta, não disse? – Simone lembrou do que ouviu da paciente

 

–Ela disse, mas amor exige renúncia! – argumentou – E nem todo mundo quer renunciar porque é muito difícil... – suspirou -- Pouco antes da discussão com Bianca eu até combinei com dona Rute de pagar um dinheirinho a mais pra ela ir lá em casa em um ou outro final de semana que ela pudesse pra eu poder sair. Ela ficou de se organizar pra poder fazer isso... – contava – Eu nem contei pra Bianca porque ainda não sabia se ia dar certo... – gesticulou – Mas é tudo muito complicado, sabe, Simone? Eu também não posso e nem quero fazer maama se sentir como um estorvo que eu fico delegando pra poder sair! Ela nunca fez isso comigo e eu lembro bem a barra que foi pra ela me criar! – reconheceu

 

--Entendo perfeitamente o que você quer dizer.

 

--Eu não quero que ela se sinta abandonada! – continuava falando – Não quero me sentir culpada em relação a ela como me sinto por... – interrompeu a fala

 

--Culpa... – Simone estudava o rosto da outra – Pelo que se sente culpada, Camilla? – perguntou calmamente – Será que me diria?

 

Derramou uma lágrima antes de responder. – Por ter abandonado tia Jandira no fim da vida. – falou como se cada palavra lhe custasse muito

 

--E qual teria sido o abandono que você acredita ter imposto a ela, meu bem? – perguntou com carinho

 

Gastou uns segundos calada antes de responder: -- Sempre que tia Jandira precisava, maama ou eu ou as duas cuidávamos dela. – contava – Ela tornou-se deficiente física de uma perna por causa de um erro médico ocorrido em 2005, mas não deixou de morar sozinha numa casa ao lado da casa de maama e tava tudo sob controle, sabe? – visualizava o rosto da idosa na mente – Quando maama contraiu CONVIDE em 2020 e eu a trouxe pra cá, não podia trazer tia Jandira junto pra que ela não adoecesse também. Longa história mas Elzira tava sem ter onde morar e daí combinei com as duas um bem bolado: elas morariam juntas e uma cuidava da outra. – lembrava do passado recente -- Eu não te contei, mas em 2021 tia Jandira sofreu uma queda em casa e ficou muito abalada, não queria mais andar, comer e nem nada. A prima se apavorou sem saber como lidar com isso e me ligava sempre, até que um dia eu fui lá e busquei a tia pra ficar conosco aqui. – pausou brevemente – Depois de três meses ela já estava bem melhor, só que absolutamente não andava mais e eu já não aguentava cuidar dela e de maama ao mesmo tempo. – derramou outra lágrima – Então tive uma discussão séria com Elzira e pedi que ela voltasse a cuidar da tia e daí a levei de volta pra Triunfo...

 

--Perdoe, mas eu não entendi muito bem. – Simone interrompeu – Por que Elzira também não foi pra sua casa quando você trouxe sua tia pra cá? – queria entender – E por que você teve que brigar com ela pra receber sua tia de volta? Afinal de contas Elzira continuava morando na casa da dona Jandira, não é isso?

 

--Elzira entrou em parafuso em 2021, nunca entendi bem por que, e se viesse com a gente pra cá seria apenas mais uma pra eu cuidar, sendo bem sincera. – esclareceu – E ela não queria receber a tia, ainda que estivesse vivendo na casa, porque ainda não se sentia bem o suficiente pra cuidar de uma idosa, mas acabou tendo que receber. – gesticulou – Afinal de contas, como impedir tia Jandira de voltar pra própria casa? – considerou – Eu expliquei pra tia que não tava dando conta e ela compreendeu. – passou a mão nos cabelos – Mas, bem lá no fundo, eu me sentia esgotada e queria me livrar de mais uma responsabilidade... – lutava para não chorar – E mais três meses depois de tudo isso, a tia inexplicavelmente passou mal e morreu... – não conseguiu mais falar

 

Pegou uma caixa de lenços de papel na gaveta e estendeu para a professora, que agradeceu e aceitou alguns. – E o que mais te faz se sentir culpada? – perguntou com jeito – De tudo que já conversamos até agora me parece que a culpa permeia seu subconsciente quase tanto quanto o sentimento de rejeição.

 

Sorriu enquanto secava o rosto. – Você não é mole, não. – as duas riram brevemente – Sinto culpa em relação à gidda e giddu. – confessou – Giddu cometeu suicídio há quase 30 anos atrás... acho que ele não suportou os traumas de guerra... – ajeitou-se na cadeira – E gidda se foi dez anos depois dele por causa de uma queda que levou. – lembrava – Eu me sinto culpada por não ter estado perto deles o suficiente... – lamentou

 

--E se sente culpada por tudo que dona Suhaila passou em virtude de ser mãe solteira, não é? – a psicóloga complementou – Como se sente culpada por acreditar não corresponder às expectativas sociais que sua mãe alimentava em relação a você. – concluiu

 

--É isso... – confessou – E todas essas culpas me castigam demais! – derramou mais uma lágrima – Por isso vivo fugindo delas, mas às vezes não consigo...

 

Simone refletiu uns instantes antes de começar a falar: -- Nós escolhemos os fatos em que queremos acreditar, Camilla, e isso vale inclusive no mundo da ciência. Você sabe muito bem como certas teorias, em várias áreas do conhecimento, tiveram que lutar muito mais contra os gostos e preconceitos dos cientistas do que com os fatos racionais e objetivos para poder finalmente se firmar. – olhava para a paciente -- Boa parte da psicoterapia clínica, como esta que nós fazemos, se baseia na reflexão intensa orientada pela terapia. Imagina-se que podemos conhecer nossos verdadeiros sentimentos, emoções e motivações desta forma. Então eu poderia dizer que rejeição e culpa assombram a sua alma por causa de tudo que você viveu, mas prefiro dizer que é por causa do que você entende que viveu! – afirmou enfática – E esse entendimento não necessariamente é racional. A neurociência hoje nos mostra que por causa dos processos subliminares que se passam no nosso subconsciente, a fonte de nossos sentimentos costuma ser um mistério pra nós, assim como os próprios sentimentos em si. Quando tentamos dar uma explicação pros nossos sentimentos e comportamentos, o cérebro faz uma busca no seu banco de dados mental de normas culturais e escolhe algo plausível.

 

--Mas como assim? – não entendeu – Você quer dizer que a gente não percebe a realidade, a gente constrói uma realidade na cabeça? – secou os olhos novamente – Tudo é uma questão de interpretação, simples assim?

 

--Eu não diria “simples assim”, mas cito uma frase da antropóloga, pesquisadora e professora universitária Ruth Benedict: “o olho que vê não é um mero órgão físico, mas uma forma de percepção condicionada pela tradição na qual seu possuidor foi criado”. – pausou brevemente – Você precisa parar de acreditar que nasceu em dívida por causa da irresponsabilidade do seu pai! – olhava nos olhos – Você não tem a obrigação de carregar o mundo nas costas, tampouco de resolver os problemas de todas as pessoas! – enfatizou – Não foi abandono, foi uma escolha: você não conseguiria mais cuidar de sua mãe e de sua tia sozinha e ao mesmo tempo bem no meio de uma pandemia! – queria fazê-la acreditar – Você não poderia evitar o suicídio do seu avô e tampouco a queda que vitimou sua avó! Há 30 anos atrás você era apenas uma adolescente e há 20 anos era apenas uma jovem mulher! – debruçou-se sobre a mesa – Você não é culpada pelo carrancismo que sua mãe encarou pra lhe criar e nem deve se colocar sempre em último lugar! – aconselhou – Ser altruísta é divino, mas você também merece olhar um pouco pra si mesma! – pausou brevemente -- Queiramos ou não, comunicamos nossas expectativas aos outros que, em geral, respondem de acordo com elas. Pense mal de você ou pense bem de você e as pessoas vão perceber isso, ainda que você não diga uma palavra ou que elas sequer tenham consciência do que captam a seu respeito!

(NOTA DA AUTORA: A teorização da Simone se baseia muito nas teorias e resultados apresentados por Leonard Mlodinow em seu livro SUBLIMINAR)

 

A morena ficou pensando no que ouviu com o coração batendo acelerado.

 

***

 

Camilla dirigia de volta para casa após a sessão com Simone até que repentinamente mudou de trajetória e acionou o telefone pelo bluetooth do carro. – Alô, dona Rute, boa noite. – cumprimentou – A senhora poderia segurar um pouquinho mais aí em casa, por gentileza? – pediu – Preciso resolver um assunto urgente! – afirmou – E pode deixar que vamos levá-la pra casa assim que eu chegar aí. -- garantiu

 

--Tudo bem, pode ir, minha filha. – respondeu mansamente – Fico aqui mais sua mãínha proseando.

 

--Obrigada! Até logo! – desligou o telefone e continuou dirigindo

 

Minutos depois a professora chegava no prédio da namorada e entrava como um foguete. Conhecida do porteiro, entrou sem esperar ser anunciada por ele.

 

--Habibem? – Bianca surpreendeu-se ao abrir a porta – Você aqui e a essa hora? – olhava espantada para a morena – Aconteceu alguma coisa? – perguntou preocupada – Vem, entra. – pediu

 

--Aconteceu sim! – entrou rapidamente e fechou a porta – Você sumiu por causa de uma discussão boba entre nós e eu nem deveria estar aqui depois de tudo, mas vim pra te mostrar que não é só você que se esforça pelo nosso relacionamento! – olhava nos olhos – Também faço a minha parte embora não deva corresponder as suas expectativas na maioria das vezes.

 

--Own, habibem, claro que não é isso, é que de vez em quando eu... – tocou o rosto da morena

 

--By, como eu te disse essa sobremesa ficou uma delícia, já até comi um pedacinho e... – parou na entrada da sala – Camilla, você aqui? – perguntou boquiaberta – Não esperava...

 

A professora ficou pasma ao dar de cara com Suellen segurando dois pratinhos de sobremesa, um em cada mão. Passou um rápido olhar pela sala e percebeu dois copos de vinho sobre a mesa. – É, eu vim sem avisar. Não sabia que ia ter uma festinha aqui hoje. – olhou novamente para a advogada

 

--Amore, eu... -- gesticulou nervosamente -- Eu não sabia que você viria, que você poderia vir e então...

 

--E então eu já tô de saída! – encerrou a fala da outra – Boa noite! – retirou-se rapidamente

 

--Amore, espera! – Bianca correu atrás – Fica, vamos conversar! – pediu

 

--Vai comer sua sobremesa, vai? – entrou no elevador – Inté! – despediu-se pouco antes da porta se fechar – Eu sou mesmo uma idiota, vou te contar! – resmungou consigo mesma

 

***

 

Chegando no prédio, a professora surpreendeu-se ao constatar que os condôminos estavam todos reunidos no hall. “Ai, meu Pai!” – pensou alarmada – “Reunião de condomínio!” – revirou os olhos – “Esqueci completamente dessa praga!”

 

--Até que enfim! – Sibele se levantou ao ver a vizinha chegando – Chegasse atrasada, visse? – repreendeu – Logo hoje que eu trouxe a proposta de obra pra ser discutida e votada!

 

--Proposta de obra?? - -Camilla revoltou-se – Mas de novo??

 

--E tu não sabe, mulher! – um dos vizinhos foi logo dizendo – Dona Sibele quer aumentar o condomínio e ainda instituir uma cota extra pra poder sustentar a igreja dela! – deu queixa

 

--Oxe! – a professora reclamou – E a gente aceita isso se for besta!

 

--Sustentar minha igreja, não, olha lá como falam! – gesticulou – Dar uma força! – esclareceu – Afinal de contas, tem um monte de irmãozinho sincero por lá que ora noite e dia pelo bem desse condomínio! – olhava para os demais

 

--Mas é muito descaramento! – uma senhora cruzou os braços indignada

 

--Pois chega de tudo isso! – Camilla afirmou com raça – Eu não aguento mais essa dinastia da sua família fazendo o que bem entende nesse prédio! – gesticulou furiosa – Primeiro foi o falecido pai da senhora, síndico por anos a fio, e depois a senhora que é uma síndica ainda pior do que ele!

 

--Oh!! – os presentes exclamaram surpreendidos com o que ouviram

 

--É isso aí, Camilla! – uma moradora apoiou – Hashtag foraSibele! – gritou

 

--Mas o que é isso?? – Sibele perguntou escandalizada – Camilla, o que há com você?

 

--Primeiro ponto de pauta: -- a professora olhou para os demais – impeachment da síndica e eleição de outra pessoa! – propôs – Lanço aqui minha candidatura!

 

--O QUE?????? – Sibele pôs a mão sobre o peito – Impeachment?? Mas eu não mereço isso! – dramatizou – Meu povo, não me deixem só!

 

--Camilla síndica! – um homem bateu palmas – Hashtag foraSibele!

 

--Tá na hora Sibele, tá na hora Sibele! – uma jovem se levantou e começou a cantar – Tu vai simbora! – requebrava-se -- Arruma tuas trouxa que Camilla manda agora! Vai simbora, vai simbora, que Camilla manda agora, vai simbora, vai simbora, já passou da tua hora!

Juliano Maderada ft Tiago Doidão - Adaptação de Tá na Hora do Jair Já Ir Embora 

 

--Eu não acredito! – Sibele encostou-se na parede – Traída pelo meus próprios condôminos aos quais me dediquei com tanto amor! – estava pasma – E eu nem dei galopada fiscal, não comprei triplex e nunca nem andei de pedalinho!

 

--Alguma objeção ao meu nome pra ser síndica a partir de hoje? – ninguém se opôs – Ótimo! – aproximou-se da ex-síndica -- Acabou-se a gastança de hoje em diante! – olhava para a mulher – E vai ter CPI dos gastos pra entender porque esse condomínio só vive teso!

 

--Faz o C, faz o C! – um homem respondeu batendo palmas – Hashtag foraSibele! Ch*pa!!! – gritou

 

Sibele deslizou pela parede e caiu sentada no chão. – Eu não acredito... – lamentou

 

“Tenho certeza que me meti na maior roubada do mundo, mas chega de tudo isso!” – a professora pensava – “Agora eu tô com a gota!”

 

Fim do capítulo