Após ter passado todo período de pandemia na casa do filho, que residia no Crato, cidade cearense, eis que minha madrinha voltou para Triunfo e muito se surpreendeu ao saber do que estava acontecendo com maama. Imediatamente ela me ligou e pediu que nós duas passássemos o feriado de Páscoa em sua casa, o que deixou maama animada. Os pais de Bianca planejaram uma vultosa cerimônia de bodas para a Páscoa também e ela ficaria detida nisso, embora achasse uma grande bobagem, além dos preparativos para atender a entrevista da OIT na Suíça.

Dona Rute contraiu Zika na semana anterior ao feriado e por esta razão não pôde trabalhar. Tive que voltar novamente ao esquema do teletrabalho e pensei que iria surtar por conta de uma gastroenterite que maama pegou justo naquela mesma época.

 

--A temperatura é uma grandeza que se mensura sempre de formas indiretas. – Camilla explicava para os alunos durante a aula online – Nenhum sensor mede temperatura, mas seus efeitos sobre alguma grandeza de controle como condutividade ou resistência elétrica, a exemplo de termistores ou RTDs, variações na densidade de um fluido, como ocorre nos termômetros de mercúrio ou detecção de radiação infravermelha, como nos pirômetros óticos ou câmeras de termografia. Isso para citar alguns exemplos. – mostrava imagens – Nós vamos discutir sobre cada um destes sensores e faremos exercícios de coleta de dados com eles. – ao mesmo tempo prestava atenção nas panelas no fogo

 

--FILHA, ACHO QUE VOU VOMITAR! – Suhaila gritou – TRAZ O BALDE! – pediu aflita

 

“Ô, meu Pai Santo!” – pensou alarmada ao desplugar o notebook da extensão – Vamos começar nosso estudo com os termopares. – correu até o armário onde estava o balde enquanto segurava o computador -- Termopares são os tipos mais comuns de sensores térmicos e quando existe uma diferença de temperatura entre suas extremidades, gera-se uma corrente elétrica cujo valor é correlacionado a esse valor de temperatura correspondente. – pegou o balde e correu até a sala – Claro que essa correlação ocorre no interior do equipamento e graças aos dados de calibração. – olhou para a mãe – Vou fazer um chá de boldo pra senhora. – falou em tom mais baixo

 

--Professora, qual a diferença entre termopar e termistor, não entendi? – uma aluna perguntou

 

--Professora, o que é RTD? Não é termopar? Agora confundi. – um aluno se manifestou

 

--Professora, volta dois slides, por favor? – outro aluno pediu

 

--Corre, menina, vai fazer esse chá! – Suhaila ordenou agoniada

 

Camilla correu de volta para a cozinha. – Calma, gente, vamos esclarecer essas dúvidas de vocês. – colocou o notebook sobre a mesa – Ave Maria! – constatou que duas panelas jorravam seu conteúdo sobre o fogão – Eita! – apagou o fogo de cada uma rapidamente

 

--MENINA, CADÊ ESSE CHÁ?? – Suhaila perguntou antes de vomitar – Uaaa... – despejou fluidos dentro e fora do balde

 

--Professora, professora, professora!!! – os alunos falavam todos ao mesmo tempo

 

--Camilla, o chão tá todo vomitado!! – Suhaila falou com vontade de chorar – Tô com vontade de ir no banheiro, me leva? – pediu

 

O coração da morena acelerou e ela ficou sem saber por onde começar. “Meu Deus, quando tudo isso vai acabar?” – perguntou mentalmente

 

***

 

--Mulher, mas eu tô bocaberta com tudo que vocês me contaram, não sabe? – Leyna olhava para as outras duas – O que tá acontecendo contigo é até difícil de entender, comadre, difícil de acreditar! – gesticulou – Quando os menino me contaram, quando Elzira me falou de tudo que viveu mais vocês, fiquei sem palavra! – pausou brevemente – Não fui correndo pra Recife porque faltou dinheiro pras passagem mas fiz questão de receber vocês duas aqui pra Páscoa! – afirmou com gosto – Eu tava com muita saudade e saber de tudo isso que tá acontecendo, deixou meu coração pequenininho!

 

--Difícil de acreditar é pouco! – Suhaila destacou – Difícil de aceitar! – afirmou enfática – Notasse que emagreci, que envelheci, que fiquei curvada feito uma bruxa de tinga... – pausou brevemente – E antes de vir pra cá ainda tive uma tal de enterite que me deixou calambiada, não sabe? Vomitei tanto, me caguei toda, Ave Maria! – gesticulou -- Teve que ir até enfermeira em casa mode me botar soro com remédio na veia... – contava o episódio -- Espia Camilla, comadre. -- olhou para a filha – A menina perdeu aquela cara de moça que ela tinha até bem pouco tempo e tudo por minha causa... – lamentou

 

--Não diga isso, maama! – pediu gentilmente – A senhora não tá doente porque quer e nem eu lhe cuido porque sou obrigada! A vida tem dessas coisas e a gente tem que passar por isso sempre se esforçando pra manter a esperança e a fé!

 

--Isso mesmo, filha! – Leyna concordou – A comadre mudou, Camilla também mudou um pouco, eu mudei, mas quem não saiu mudado depois dessa pistinga de pandemia de CONVIDE? O importante é que a gente tá viva, né mesmo? – considerou -- E olhe, -- virou-se de frente para a comadre -- você vai me perdoar, mas dei umas boas espinafração nos teus menino porque não move um dedo e deixam tudo nas costas de minha afilhada! Onde já se viu? – franziu o cenho – Parece que são filho de chocadeira, vôti! – reclamou

 

--Eu também já dei meus esbregue neles, mas não tenho precisão de ficar esmolando atenção de filho! – afirmou mal disfarçando o pesar – Sinto muito por explorar minha menina, mas ela me basta!

 

--E a senhora não me explora, maama. São os fatos e a realidade que nos levam onde estamos. – pausou brevemente – Mas, conte pra nós, dinda. – olhou para a madrinha – Como foram estes anos vivendo no Crato com Lutfi, sua nora e Raimundinho? – queria saber – Aliás, como vai Raimundinho? – referia-se ao neto da outra – Já deve estar um homão!

 

Suhaila também aguardava a resposta.

 

--Olhe, pois eu vou ser muito sincera: já não me aguentava de viver mais meu filho e nora, não sabe? Raimundinho só ficava trancado no quarto, então era como se nem tivesse lá! Tá com 30 anos e faz nada da vida, é só futicar na internet noite e dia, dia e noite! – Leyna desabafou – Lutfi veio aqui três mês depois que a tal da pandemia começou e me pediu pra ir botar mais ele por causo dos perigo da doença e aí eu fui. – contava a história – Eu nunca que tive muito contato com minha nora, que sempre foi muito encolhidinha, e a família dela mal conhecia porque morava todo mundo no Crato, mas vou te dizer: foi uma decepção só! – afirmou enfática – Com o tempo ela acabou se tornando mandona demais, antipática e acha que família é só a dela; a de meu filho não existe! – franziu o cenho – E aquele pai dela, que sujeitinho explorador! – gesticulou – Só não tira o couro de meu filho porque não pode, mas meu menino também é um besta! Só falta se deitar pro cabra véio passar por cima! – balançou a cabeça contrariada – Acho que criei Lutfi muito mal... – concluiu – Não penso que homem tem que massacrar a esposa, mas também num acho que tem que ser massacrado por ela e pela família dela, não sabe? Todo mundo lá faz o que bem entende da vida de Lutfi! Começa no sogro dele e termina no filho, que não quer nada!

 

--Lutfi mal conheceu Adalgiza e logo se arrumou de casar! E mal casou, foi mais ela viver no Crato pra trabalhar junto do sogro. – Suhaila se lembrava – Sozinho no meio deles, e do jeito que você diz, usaram e abusaram do menino. Agora ele acostumou com isso e tem mais jeito não, comadre. – balançou a cabeça negativamente – Se você quiser dar pitaco ainda vai conquistar é a inimizade dele. – ajeitou-se no sofá – Eu não me meto nos casamento de meus menino!

 

--Tá certa, comadre! Tá certa... – balançou a cabeça concordando – O que eu fiz foi arrumar minhas trouxas e voltar agora que essa miserenta dessa pandemia acabou! – pausou brevemente – Camilla é que não quis saber de casar, né, menina? – deu um tapa na coxa da afilhada – Mas tá certa, porque hoje em dia homem não tá valendo mais de nada! – considerou – Quando não quer se encostar pra viver na dependência da mulher, é um besta que nem meu filho ou então efeminado. – olhava para a professora – E depois desse presidente maluco que perdeu as eleição, é um tal de homem bater em mulher, furar os óio, matar... Faz você muito bem em continuar solteira!

 

Achou graça. –É isso aí, dinda. – concordou balançando a cabeça – “Mal sabe ela que meu negócio é bem outro!” – pensou bem humorada

 

--E eu que nunca fui mãe de viver atrás de macho pra minha menina! – Suhaila complementou – Em casamento de filho não me meto! – repetiu – Nem quando não faço gosto, como é caso de Xarid com Aline Maria!

 

--Ói, falando neles, comadre, nas véspera de vocês chegar aqui, Xarid foi simbora mais a mulher e os filhos mode viajar, não sabe? – fofocou

 

--Viajar?? Oxe, mas nem pra me esperar chegar? – Suhaila revoltou-se -- E Xarid não disse que andava na precisão de dinheiro porque o patrão atrasou os pagamento? – cruzou os braços – Esse menino tá me saindo uma boa bisca! – reclamou – Por isso que não apareceu aqui até agora!

 

--E a senhora sabe pra onde eles foram, dinda? – Camilla perguntou desconfiada

 

--Yurem disse que foi prum tal de... cumé? – coçou a cabeça – Zorte, diacho de zorte, não sei... um canto cheio dos parangolé lá pela Bahia. – respondeu com o que lembrava – Diz que os menino pediu pra ir pro zorte. – gesticulou – E ói: parece que é troço caro!

 

--Então Ricky e Martin pediram uma ida prum resort na Bahia? – Camilla perguntou descrente – Ai, ai... – suspirou – “Depois eu vou dar uma passadinha na casa de Elzira pra gente prosear.” – decidiu

 

***

 

--Repara não, prima. – Elzira entrava na sala seguida por Camilla – Ainda não tive tempo de arrumar a casa... – sorriu sem graça – O trabalho no hotel é muito puxado e ainda tem o mercadinho, né? – sentou-se no sofá – Também tô dando aula de explicadora no final de semana e às vezes lavando e passando roupa pra fora. Como agora é Páscoa, posso me aquietar um pouco. – olhava para a outra

 

--Então além de trabalhar no hotel e no mercadinho dos Francinatti você ainda tá dando aula e cuidando de roupa alheia? – sentou-se em outro sofá – Desculpa te perguntar, mas não acha que tava melhor lá em casa? – estudava o rosto da prima

 

--Isso é... – abaixou a cabeça brevemente – Mas minha casa é aqui, né? Por mais que sua acolhida fosse boa, nosso cantinho é sempre o nosso cantinho. – respondeu desconsertada

 

Balançou a cabeça positivamente. – Depois passa lá na dinda pra ver maama. Ela se queixou que só você ainda não apareceu. – pausou brevemente – E Xarid, é claro. – salientou

 

--E eu não fui pela falta de tempo... – dizia a verdade – Mas vou amanhã mesmo, pode deixar! – prometeu – Quanto a Xarid não deixa ela ficar zangada com ele. – pediu – É que o pacote de viagem que ele comprou tinha data certa pra começar e se chegasse depois perdia tudo. – justificou – Quando ele marcou a viagem ninguém sabia que vocês vinham passar a Páscoa mais tia Leyna, não sabe? – sorriu sem graça

 

--Quando ele marcou a viagem que você bancou, né, prima? – percebeu que Elzira corou – Afinal de contas, Ricky e Martin, duas crianças sempre super antenadas nas mais modernas tendências de viagem, moda e eletrônicos, com certeza pediram pra madrinha uma temporada num resort badalado e caro na Bahia! – ironizou -- Não faz muito tempo que Xarid se queixou de falta de dinheiro com maama, então não foi ele quem pagou essa conta! – gesticulou – Perdoe, eu sei que tenho nada a ver com isso, mas pelo amor de Deus, mulher! – olhava nos olhos – Nota-se que você tá esgotada de tanto trabalhar, duvido que te paguem bem e o suado dinheirinho que pinga na sua conta é pra sustentar os luxos de meu irmão e cunhada? – tentava fazê-la acordar – Pelo amor de Deus, criatura, abre os olhos!

 

--Você também tá esgotada de tanto trabalhar! – retrucou por não saber o que falar – Ouvi todo mundo por aí dizendo que você nem parece aquela que tinha a maior estampa de artista de TV! Dizem que tá com cara de uma cansada mulher de quarenta e poucos anos! Até os cabelos tão ficando tudo branco, espia! -- salientou

 

Riu brevemente. – Você quer comparar o meu caso com o seu, jura? – debruçou-se sobre as próprias pernas – Elzira, ser madrinha não é isso! Dinda nunca viveu me dando presente caro e eu a amo e respeito como tem que ser! – destacou – Não pode querer comprar o amor das crianças na base do oportunismo de meu irmão e cunhada! – argumentou – E se for por aparência, mil perdões, só que mal reconheço aquela que era tida como a menina mais bonita dessa cidade! Você tá se acabando ano após ano pra que? Por que?

 

--Pare com isso, prima! – levantou-se rapidamente e andou em direção a janela – Amo aqueles menino como se fosse filho meu! Os filho que nunca vou ter... – os olhos marejaram

 

--E eles não precisam que você se mate endividada pra te amar também! – levantou-se igualmente – Até quando vai se deixar explorar por Xarid e Aline Maria? – aproximou-se da outra – Por que permite que seja assim? – não entendia – Eles não merecem isso! Ninguém merece!

 

Elzira subitamente irrompeu num pranto sofrido que surpreendeu Camilla, a qual apenas a abraçou e ouviu calada seus soluços de dor.

 

***

 

Camilla estava com os sobrinhos no Pico do Papagaio, na zona rural da cidade. Havia alugado um carro quatro por quatro de um colega de infância para chegar próximo ao local. O grupo apreciava a vista sentados em uma grande pedra e saboreando sanduíches como lanche de trilha.

 

--Tia, eu adorei esse passeio! – Mafalda exclamou empolgada – Espia que boniteza pra se ver! – mordeu o sanduíche enquanto apreciava a vista

 

--E eu! Principalmente vir num carro quatro por quatro! – Paulinho comentou excitado – Quando eu fizer dezoito vou querer comprar um e a senhora me dá as dicas! – olhou para a morena

 

--Calma que você ainda tem muito chão pela frente, garotão! – Camilla fez um rápido carinho na cabeça dele – E pra comprar carro é preciso estudar, se formar e trabalhar pra ter o dinheiro pra isso. – piscou para ele e bebeu um gole de limonada

 

--Tia, leva a gente na cachoeira? – Celestina pediu sorridente – Diz que tá cheia d’água e bem boa pra dar tchibum!

 

--Não sei se vai dar dessa vez, querida. Domingo a vovó e eu já voltamos pra Recife. – olhou para a sobrinha – Vamos ver. – mordeu o sanduíche

 

--Ricky e Martin que perderam! – Emmanuel comentou – Foram pro tal do zorte! – mordeu o sanduíche – Quando perguntei pra eles nenhum sabia nem dizer o que diacho é zorte! Paínho foi que me explicou que é um hotel com quintal grande. – comentou de boca meio cheia – Eles num sabia nem pronde tava indo! – riu brevemente

 

“E Elzira ainda quer que eu acredite que os meninos pediram pacote de viagem num resort badalado na Bahia!” – pensou contrariada – É... infelizmente eles perderam nosso passeio. – foi o que se limitou a dizer

 

Depois de uns minutos calados apenas comendo e apreciando a vista, Paulinho rompeu o silêncio com uma pergunta delicada: -- Tia, a vovó não tem mais cura? Ela nunca mais vai voltar ao normal e ser como era? – olhava para a mulher

 

--Eu bem ouvi mãínha dizendo que não tem mais jeito! – Mafalda comentou – Mas paínho disse que Deus que sabe. – balançou a cabeça

 

--Deus é quem sabe mesmo, é verdade. – Camilla concordou – Mas é importante que vocês entendam que na vida às vezes acontecem coisas que mudam tudo. – olhava para os demais – A vovó e eu ficamos muito doentes por causa da CONVIDE e ela até hoje luta contra o que a doença fez no corpo dela. E ela já é idosa, fica mais difícil lutar... – explicava com mansidão – Só que como sempre teve uma vida bem ativa, comendo coisas saudáveis e como sempre foi uma pessoa de muita fé, ela tem conseguido resistir, apesar de tudo. – pausou brevemente – Eu não sei se ela um dia será como era antes, talvez não, mas se Deus quiser, ela vai melhorar e deixar de sofrer tanto! – desejou -- E é nossa obrigação dar a ela todo apoio que precisar. Seja porque é importante ajudar as pessoas, seja porque ela fez muito por todos nós!

 

--Tia, por que a senhora bem cuida de todo mundo que fica muito doente? – Celestina perguntou curiosa

 

--Paínho bem disse que é porque a senhora é solteira e sem filho! – Emmanuel afirmou de pronto

 

--Isso não tem nada a ver, querido. – discordou gentilmente – Cuido porque ajudo a quem precisa de ajuda. Além do mais, moro na capital e lá tem mais recursos pra quem tá doente. – olhava para o garoto

 

--A senhora cuida porque é uma pessoa boa... – Paulinho afirmou pensativo – Eu não sei se ia ter saco pra ficar cuidando de alguém noite e dia, dia e noite, não sabe? – considerou – Tomara que paínho e mãínha não fique doente quando ficar velho! -- desejou

 

Camilla ficou triste ao ouvir aquilo, mas relevou dada a idade do sobrinho e os exemplos que recebia dos pais e tios. – Você ainda é muito novo, querido, mas lembre-se sempre de uma coisa: ninguém sabe o dia de amanhã! – aconselhou – Sua falecida tia Jandira não casou e nem teve filhos, mas sempre teve quem cuidasse dela porque sempre foi uma pessoa que não pensava duas vezes antes de ajudar a quem precisasse. – lembrava da mulher – Então quando a gente faz coisas boas pelos outros, de uma forma ou de outra a vida sempre nos devolve com algo de bom quando a gente precisa!

 

--Paínho disse que véio dá trabalho! – Mafalda repetiu o pai

 

A professora novamente lamentou pelo que ouviu e respondeu para a menina: -- Crianças também dão trabalho, assim como bichinhos de estimação. – esclareceu – Mas a gente não pode pensar que tudo que dá trabalho deve ser jogado fora ou deixado de lado. A vida não funciona assim! – levantou-se – Agora vamos jogar nosso lixo no saco azul e nos preparar pra voltar! – esforçou-se para sorrir – Se formos rápidos, pode até dar tempo de tomar um sorvete lá na Padoca!

 

--Oba!!! – todos exclamaram animados

 

***

 

--E foi assim, Simone, do jeito que te contei. – Camilla narrava os fatos – Depois de uma semana em que eu pensei que fosse surtar, porque novamente fiquei sozinha justo num momento em que maama sofria com gastroenterite, passamos a Páscoa em Triunfo depois de muito tempo longe e foi ótimo! – sorriu – Fiz das tripas coração e banquei uma breve home care lá em casa pra resolver logo o problema da gastroenterite e viajamos na quarta de tardinha, já que não haveria expediente na quinta. – explicava – Maama ainda tava meio molinha, sofreu um pouco durante a viagem mas os ares de Triunfo, o fato de estar com minha madrinha, as visitas de Yurem e Zyah, o contato com as crianças... tudo isso parece que deu um verdadeiro gás nela, sabe como?

 

--Nela e em você, pois sua aparência está bem melhor! – observou – Está exalando vida! – sorriu

 

--Você deve ter razão... – balançou a cabeça concordando – Dinda nos recebeu em casa com todo carinho, botou meus irmãos e cunhadas pra dar uma geral na casa de maama e ainda ficou com ela pra eu poder visitar a zona rural da cidade, que eu adoro! – contava animada – Levei as crianças pra passear, curti a natureza... deu até um tempinho pra tomar banho de cachoeira! – gesticulou – Como a gente não ia lá há muito tempo, a casa de dinda foi o point! Uma verdadeira romaria de parentes, conhecidos e vizinhos foram lá visitar, rezar por maama, além de terem trazido um monte de presentes! Acho que vou ficar uns dois meses sem ter que comprar comida depois disso! -- riu brevemente

 

--Que maravilha! – achou graça – E agora, como sua mãe está? – queria saber -- Uma vez de volta à rotina, será que teria mantido o ganho do feriado em Triunfo?

 

--Claro que ela ainda sente as dores, mas curou de vez da gastroenterite e ficou bem mais calma da ansiedade! – afirmou enfática – Sendo justa, parece até que as dores diminuíram, embora persistam.

 

Balançou a cabeça pensativa. – Vocês se sentiram novamente pertencendo ao grupo social, que era uma sensação que a pandemia e os problemas de saúde de dona Suhaila haviam adormecido nas duas. – olhava para Camilla – Hoje a moderna neurociência entende que as ligações sociais são um aspecto tão básico da experiência humana que sofremos quando somos privados dela. – explicava -- Estudos de mapeamentos do cérebro mostram que existem dois componentes na dor física: um sentimento emocional agonizante e um sentimento de aflição sensorial. Pra você ter uma noção da importância da socialização na vida de um ser humano, posso dizer que a dor social, a dor da solidão, está associada a mesma estrutura cerebral envolvida no componente emocional da dor física, que é o chamado córtex cingulado anterior. – percebeu a surpresa da professora – Em suma, a relação entre dor social e a parte emocional da dor física mostra os vínculos entre nossas emoções e os processos psicológicos do corpo!

(NOTA DA AUTORA: O excelente livro SUBLIMINAR, de Leonard Mlodinow trata sobre isso em um capítulo inteiro. Vale a leitura da obra completa que me inspirou muito!)

 

--Impressionante! – refletia sobre o que ouviu

 

--É por isso, querida, que precisamos trabalhar para deixar os traumas adormecidos no passado, esquecidos na memória! – Simone destacou – Você deve conhecer a história bíblica da mulher de Ló. – a morena balançou a cabeça confirmando – Ela não ouviu as orientações recebidas dos guias e olhou para trás ao deixar a cidade, tornando-se uma estátua de sal. – gesticulou -- É isso que o trauma faz com a gente: nos deixa como estátuas, imobilizadas, e eternamente olhando para trás! – mirava o rosto da paciente – Vocês precisam voltar a olhar para a vida de frente, deixar 2020 passar e reaprender a ser feliz, apesar de todas as perdas!

 

Camilla ficou pensando no que ouviu.

 

***

 

--Graças a Deus você chegou bem aí! – Camilla respirou aliviada – Pelas minhas estimativas deve ser por volta de oito da noite agora. – olhou rapidamente para o relógio

 

--Exato, amore! – respondeu de pronto – O avião pousou às sete e cinco em ponto, mas a imigração foi um porre! – contava – Agora tô indo pegar um táxi pré pago pra poder chegar no hotel e relaxar um pouco. – Bianca falava enquanto caminhava

 

--Isso, vai descansar. – concordou – E quando chegar no hotel me liga avisando! – pediu – Cuidado com Zurique! Essa cidade é cheia de rococó mas é bem perigosinha! – advertiu

 

--Pode deixar, habibem! – respondeu achando graça – Assim que chegar e tirar minha roupa pra tomar banho, te ligo! – prometeu – Aí você me ouve toda molhadinha! – brincou insinuante – Mas vai demorar um pouquinho, tá?

 

--E você é bem capaz de fazer isso só pra me deixar atiçada, Ave Maria! – a professora considerou – Mas tá bem, vai lá! Não é bom ficar falando em telefone enquanto se pega carro em terra estrangeira. – considerou – Beijo e até logo! – despediu-se – Te amo!

 

--Até logo, amore! Também te amo! – despediu-se

 

--Graças a Deus ela chegou bem apesar daquele voo cavalo de cachaceiro! – guardou o celular na bolsa – Diacho pra ter tanta conexão! – passou a mão nos cabelos – Meu Deus! – arregalou os olhos – Fui emendando uma aula com a outra e mais dúvida de aluno, reunião... esqueci de almoçar! – constatou – E já são quatro e dez! – procurou a agenda no computador – Por hoje não tem mais aula. Vou fazer um lanche rápido e voltar pra corrigir os trabalhos de Instrumentação 1. – decidiu

 

--Os anos passam e a professora Camilla Isfahan não deixa de ficar falando sozinha! – uma mulher se debruçou na porta da sala da outra e cruzou os braços – Dizem que é um traço muito forte nas pessoas geniais! – sorriu

 

--Suellen?! – constatou ao sorrir – Nossa, há quanto tempo! – aproximou-se da ex aluna – Tem o que, dez anos que não te vejo? – parou diante dela

 

--Por aí! – abriu os braços – Não ganho um abraço? – pediu

 

--Claro! – abraçaram-se brevemente – Da última vez que soube de você me disseram que tinha ido trabalhar na Austrália! – olhou para a mulher

 

--Na verdade, dei uma rodada por aí. – fez um gesto breve – Dissesse que ia lanchar, não é isso? Vamos juntas e te faço um resumo.

 

--Simbora! – Camilla concordou

 

***

 

--Então saí do Brasil pra viver na Austrália, em Adelaide, e trabalhar numa empresa que prestava serviços de instrumentação pra BHP Billiton. – contava – Depois de pouco menos de dois anos no país a empresa teve que fechar as portas por causa de uma patifaria que a BHP denunciou e a polícia foi em cima! – bebeu um gole de suco – Por sorte, duas semanas antes eu havia ido num congresso, conheci uns chineses de uma empresa de drones, trocamos cartões e aí procurei por eles pedindo emprego. – olhava para a ex professora – Deu certo e arrumei as malas pra morar em Shenzhen, que fica perto de Hong Kong! – riu brevemente – Foi um aprendizado e tanto no desenvolvimento de sensores pra drones, aprendizado em termos de vida, mas também foi muito foda, Camilla!

 

--Imagino! – prestava atenção na narrativa – Nunca morei na China, mas estive lá algumas vezes e sei que certas questões culturais não são qualquer coisa! Especialmente pra nós, mulheres. – bebeu um gole de suco

 

--Pois é! – fez um bico discreto – Mas morei lá por quatro anos até que conheci, em outro congresso, um pessoal da Alemanha e eles se interessaram por mim. Pedi demissão da empresa chinesa, fiz as malas e pousei em Darmstadt, perto de Frankfurt, onde vivi e trabalhei por mais dois anos. – sorriu – Por fim, busquei uma oportunidade numa empresa nos Estados Unidos, eles gostaram de mim, eu fui e tava lá em Nova York até um mês atrás, que foi quando voltei. – concluiu a história – Paínho morreu e meus irmãos querem cuidar de inventário, sabe como é! E eu também já tava de saco cheio de lá e querendo voltar, sabe? – passou a mão nos cabelos – Mas, por enquanto, estou sumariamente desempregada! – riu brevemente

 

Surpreendeu-se com aquele desfecho. – Bem... em primeiro lugar sinto muito por sua perda! – lamentou – E quanto a estar desempregada, o Departamento está com uma bolsa de doutorado livre porque o aluno ex bolsista passou num concurso e abandonou a tese. – pausou brevemente – Interessa? – ofereceu

 

--Oxe, mas é claro! – respondeu de pronto – Essa minha visita aqui é interesseira, professora! – brincou – Eu sabia que você podia me ajudar! – sorriu

 

--Vou te passar as informações e aí você se habilita e corre atrás. – limpou os lábios com guardanapo – Tenho certeza que você tem todos os predicados pra ganhar essa vaga!

 

--Deus te ouça! – benzeu-se rapidamente – Ainda tenho um dinheirinho por conta dessas minhas andanças pelo mundo, mas é sempre bom ter uma fonte de renda por mais modesta que seja, né? – debruçou-se sobre a mesa – Agora me fala, Camilla... e a Bianca? – deu um sorriso maldoso – Tá com ela ainda? – queria saber – Procurei por ela mas não consegui contato até agora!

 

--Suellen!! – afastou-se um pouco constrangida – Que é isso? – não sabia o que dizer

 

--Ah, para! – pediu dengosa – Fui eu que apresentei vocês, cê acha que eu nunca soube de nada? – riu brevemente – Sou entendida também, profe, ow! – brincou

 

--Ah... – gastou uns segundos calada – É, a gente tá junta, sim. – assumiu – Mas, pelo amor de Deus, nem uma palavra sobre isso aqui! – pediu com seriedade

 

--Relaxa! – levantou as mãos brevemente – Eu também não sou assumida! – admitiu – Só perguntei por que eu queria saber se meu trabalho de cupido inocente foi bem feito! – brincou

 

--Acho que foi. – tranquilizou-se um pouco mais – Desde 2010, né? –sorriu

 

--Pois é! – balançou a cabeça concordando – Agora me paga o favor e me apresenta alguém! – pediu brincalhona – Tô na maior secura, vou te contar! – riu brevemente

 

--Ah, minha filha... se depender de mim, você vai morrer no caritó! – riram juntas

 

--Será? – Suellen perguntou

 

Fim do capítulo