Depois do fuzuê na casa de Pombinha, ela simplesmente desapareceu. Faz uma semana que não a vejo e ao que tudo indica, continuarei sem vê-la nesta nova semana que se inicia. Bianca tampouco deu sinal de vida.

Ao mesmo tempo Elzira partiu novamente para Triunfo dizendo que tinha ainda pendências a resolver e que só retornaria depois de quase duas semanas. Com isso, fiquei sozinha com maama por mais tempo que imaginava e tive que desmarcar todos os compromissos presenciais, voltando ao esquema do teletrabalho 100%. Isso gerou um certo “calor” no meu Departamento, mas os colegas e alunos acabaram compreendendo que eu não tinha outra solução para dar.

 

--Camilla, filha!!! – Suhaila chamava agoniada no início da madrugada – Corre aqui, menina, me acode! Me levanta, pelo amor de Deus! – pedia em súplica – As costas doem demais! Quero ir no banheiro!

 

--Calma, maama, a gente vai. – a professora entrava no quarto correndo – Calma, não fique nervosa e nem nesse aperreio todo! – pediu ao ajudar a outra a se levantar

 

--E como não vou ficar nervosa, menina? – respondeu com rispidez – Tudo dói, eu não tô me aguentando!

 

As duas mulheres seguiram para o banheiro e Camilla posicionou sua mãe para se sentar no vaso sanitário.

 

--O que é isso, maama? – estranhou – Não consegue se firmar, tá caindo? – segurou-a pelas costas para que permanecesse sentada

 

--Eu não tô tendo força! – constatou apavorada – Não consigo ficar sentada, filha! – olhou em desespero para a morena – Eu caio!

 

--Vai cair não, fique tranquila! – respondeu com carinho – Eu vou ficar lhe segurando. – prometeu

 

Ao terminar, a professora levantou a mãe e a levou para lavar as mãos. Suhaila repentinamente teve uma crise de choro.

 

--O que foi, maama, a dor aumentou? – perguntou preocupada – Por que a senhora tá chorando desse jeito? – reparava atentamente nela

 

--Eu não tô melhorando... só pioro! – respondeu com o rosto banhado em lágrimas – Eu quero ser normal de novo! – pediu como criança – Quero minha vida de volta! – chorava dolorosamente

 

--Own, maama... – abraçou-a com carinho – Own, meu amorzinho... – não sabia o que dizer ou fazer – Tem que ter fé! Tem que ter fé... – chorava por dentro para que Suhaila não percebesse a dor que a castigava naquele momento

 

***

 

--Simone, estas duas últimas semanas foram terríveis! – Camilla desabafou – Elzira tinha ido pra Triunfo numa sexta à tarde, voltou pra cá no domingo e logo na terça foi correndo pra Triunfo de novo! Com isso me deixou sozinha pra cuidar de maama, que sofreu terrivelmente com dores, além de ter acontecido mais uma coisa: agora ela não consegue mais ficar sentada se não tiver um apoio pra se encostar! – contava o fato – O ortopedista e a fisioterapeuta disseram que é porque ela perdeu a força nos músculos abdominais por conta das fraturas! Pense numa situação horrível!

 

--Meu Deus, coitada! – lamentou – Imagino que mais este golpe deve ter sido extremamente doloroso pra dona Suhaila... – afirmou condoída

 

--E se foi! Ela chorou tanto, mas tanto... – suspirou – E eu fiquei doida sem saber como ajudar ou o que dizer. – mirou um ponto no infinito – Apenas a abracei com força, tentando acolher e chorei por dentro, como sempre costumo a chorar... – pausou brevemente – Graças a Deus que Elzira finalmente voltou hoje de manhã! Não fosse isso, eu não estaria aqui agora.

 

A psicóloga não fez comentários. – E quanto a Bianca? Ou mesmo Pombinha? – estranhou – Onde elas estiveram durante essas duas semanas tão difíceis?

 

--Você não sabe porque durante esse tempo não pude vir aqui, mas Bianca terminou comigo por causa de umas coisas que falei sobre nosso relacionamento; aqueles problemas que se arrastam... e claro, por causa de Pombinha também! – passou a mão nos cabelos – Não sei o que tem feito. Já deve estar namorando outra pessoa... – concluiu com certa tristeza – E Pombinha, nossa, nem te conto! – gesticulou brevemente – Aceitei o convite de ir assistir jogo de Botafogo na casa dela e fiquei até besta! – olhava para a outra – A cada gol que o time dela sofria, parecia que o Tinhoso ia se apoderando daquela alma e a bicha ficou doida! – lembrava – Gritou tanto, tirou a roupa, quebrou os trecos dentro de casa... Fui mimbora antes que minha vida corresse perigo! – destacou – Pra completar, no dia seguinte, a síndica me aparece lá em casa querendo marcar reunião emergencial do condomínio pra discutir sobre o escândalo, mas aproveitei que Pombinha se calou precisamente às dez da noite e enxotei dona Sibele. – fez cara feia – Tudo que eu não tinha era paciência praquilo! – revirou os olhos – Odeio condomínio, ô pistinga dos infernos! -- reclamou

 

A psicóloga não aguentou e riu gostosamente. – Ai, Camilla, perdoe, mas essa parte final da história foi uma coisa que eu não esperava! – balançou a cabeça divertida

 

--Nem eu! – afirmou de pronto

 

--Mas e em meio a tudo isso, como você se sentiu? – queria saber – Sei que antes de Elzira começar a te ajudar você passou a pandemia inteira cuidando de sua mãe sozinha, mas agora a situação se torna cada vez mais delicada. – considerou – Como foi ficar novamente sozinha pra fazer tudo?

 

Deu um sorriso pensativo. – Exatamente como você disse: eu me senti sozinha pra fazer tudo! – pausou brevemente – Acredita que ninguém sequer ligou ou mandou mensagem pra saber como as coisas estavam? – olhou para a mulher – Ninguém: nem na família, nem no meio dos amigos, nem do pessoal do trabalho... absolutamente ninguém me perguntou por maama! – destacou – E eu nunca me senti tão só em toda minha vida! – confessou – Acho que se eu não tivesse tanta fé, já teria surtado há tempos! – riu rapidamente

 

--Você é uma mulher muito forte, Camilla. – afirmou com brandura – Mas precisa construir um refúgio pra si diante da tormenta que têm perturbado seus dias. – aconselhou – Sei que tem o saudável hábito da oração, mas pergunto se tem sido o bastante pra aliviar sua mente e seu corpo diante do sofrimento.

 

--Ajuda muito, com toda certeza! – respondeu de pronto – Mas também busco fazer meu spinning sempre que possível, caminho com maama na praia nos finais de semana e voltei a escrever. Postei o primeiro capítulo de um novo conto no sábado passado.

 

--Lembro que você me falou que escreveu alguns contos na internet em um site para lésbicas. – recordou – Qual o nome do seu conto? Sobre o que ele trata? – perguntou interessada

 

--O nome é Alaikhtiar. – pausou brevemente – Quer dizer A Escolha, em árabe. – explicou – E trata sobre o que estamos vivendo. Claro que com os devidos disfarces. – esclareceu

 

--Ah, sim, você usa um perfil fake pra escrever. – balançou a cabeça recordando – E por que, Camilla? Por que escrever se você já anda tão sem tempo e por que fazer isso com um perfil fake? – provocou

 

--Escrever é uma forma de desabafo, Simone. – gesticulou brevemente – Uma forma de falar o que não tenho com quem... – deu um sorriso – E as meninas acabam por me alegrar. – considerou – Quando elas comentam, sabe? – ajeitou-se na cadeira – Algumas são bem divertidas, outras são carinhosas. É massa, eu gosto. – silenciou por uns instantes – E o perfil fake... bem, você sabe que não sou assumida. Então tenho que me esconder. É por isso.

 

--Mas não te dá vontade, assim, de vez em quando, de deixá-las saberem quem você é?

 

--Às vezes sim... – confessou – Mas é melhor que continue assim como está. Elas não perdem nada em não saber de mim. – fez um gesto despreocupado – Não sou eu que importa e sim o conteúdo das histórias.

 

--E será que... lá no fundo você não pensa que se elas soubessem quem você é, se decepcionariam? – novamente provocou – Não é o que eu penso, mas talvez seja aquilo do qual você mais tenha medo.

 

Pensou antes de responder. – É... pode ser. – balançou a cabeça positivamente – Você sabe, já te disse mais de uma vez que rejeição é a coisa da qual eu mais tenho medo.

 

--E por que elas te rejeitariam, Camilla? – queria fazê-la refletir – Quais motivos teriam?

 

--Se foi uma coisa que a vida me ensinou é que nem tudo precisa de um motivo racional pra acontecer. Mas não vamos ficar especulando. – não queria continuar aquela conversa – Comecei a escrever e isso me faz bem. – abaixou a cabeça brevemente – Vamos ver se elas vão gostar da história! – sorriu – Farei o meu possível!

 

--Também é importante que você faça o seu possível pra voltar a gostar da SUA história. – aconselhou -- Mas não falo da ficção e sim da vida real! Quando você escreve, o controle de tudo que acontece no conto é seu. Na vida, quase nada está sob seu controle, mas a autora das ações e a responsável pelas decisões é você!

 

Camilla ficou apenas pensando no que ouviu.

 

***

 

--Eu quis te dar um tempo pra poder deixar passar a má impressão e acho que agora a gente já pode conversar. – Pombinha dizia – Ficasse um tanto assustada com minha reação naquele dia no jogo, mas é uma coisa que nem eu sei explicar, não sabe? – justificava-se – Eu fico tão envolvida, mas tão envolvida que... – buscava as melhores palavras – Ah, mulher, tem vezes que até a maior das cristãs sai do estado de Graça por causa das coisas do mundo! – olhava para a professora – E Satanás não descansa, ele fica ali rondando e na hora certa vem pra atiçar! – fez cara de cão pidão – Pelas caridade, me perdoe!

 

Acabou rindo um pouco do que ouviu. – Tudo bem, Pombinha, tá perdoada, mas você precisa aprender a se controlar mais! – aconselhou – Em qualquer esporte, um time vai ganhar e perder e não dá pra fazer das derrotas um motivo pra sair por aí gritando e quebrando tudo.

 

--Você tá certa, mas é que eu me envolvo tanto, sou tão apaixonada pela bola que rola e pelo brasão da Estrela Solitária! – falou com ênfase – Nem minha família, nem mesmo mãínha me entendia, por isso que deu no que deu e a gente se afastou. – contava – Em 2017 o Botafogo me fez uma de mestre e fiquei num aperreio doido! – lembrava – Quebrei as louça de mãínha, a cristaleira, rasguei as cortina, botei fogo no sofá... – confessou – Aí não prestou, não sabe?

 

--Ah, então foi por isso que você e sua família estão brigados até hoje?? – surpreendeu-se – “E eu que achei que era intolerância por descobrir que ela é lésbica!” – pensou estupefata

 

--É, por isso... – suspirou – Mas, olha, -- viu as horas rapidamente no visor do celular – quer vir mais eu pra ver se encontro um armário de bom preço lá na Malu Móveis? – convidou – O meu anda meio troncho! – desejava mudar de assunto

 

--Tá bom. – levantou-se e aguardou a outra fazer o mesmo – Vamos lá ver. – olhava para ela – Mas espero que o móvel não esteja troncho por causa de uma eventual má performance do Botafogo. -- brincou

 

As duas mulheres conversavam na praça de alimentação do Shopping Recife.

 

--É não, Camillinha! – levantou-se achando graça – Tá é velho mesmo! – garantiu – Juro que não tem nada a ver com minhas torcida, não sabe?

 

--Menos mal. – respondeu bem humorada

 

***

 

--Desculpe senhora, mas não será possível fazer a venda do móvel à prestação. – o vendedor anunciava com jeito – Acabamos de fazer uma consulta às bases do SPC/SERASA e constatamos que seu nome consta como inadimplente. – olhava receoso para a mulher – Dessa forma a venda só poderá acontecer se o pagamento for à vista.

 

--À vista?? – Pombinha protestou – E quem tem três mil e poucos reais pra dar à vista pra comprar armário, moço? – reclamou de cara feia – Eu sou protética, não sou empresária!

 

--Sinto muito, senhora! – o homem respondeu respeitoso

 

Camilla ficou apenas prestando atenção na conversa.

 

--Satanás é debochado, bicho nojento! – a mulher continuava reclamando – Pra me tentar foi até colocar meu nome no SPC, é muito descaramento! – cruzou os braços

 

--Creio que... Satanás de repente faça o mesmo com todos aqueles que realizem compras sem concluir os respectivos pagamentos. – o homem respondeu formalmente – A pesquisa mostrou que a senhora contraiu dívidas não saldadas com cinco lojas de material de construção, três lojas de móveis, quatro de roupas, duas de material esportivo, duas livrarias e mais uma concessionária de automóveis. – olhava para a mulher

 

“Mas Pombinha é cheia de surpresas!” – Camilla pensou surpreendida – “Tá devendo a Deus e o mundo, misericórdia!”

 

--Pois o senhor fique sabendo que sou uma mulher cristã! – afirmou resoluta – Católica apostólica romana, batizada, crismada, consagrada e cheia de Graça! – gesticulou com decisão – Eu não devo nada a ninguém, isso tudo é coisa de Satanás! – deu um soco na mão

 

--Para nossa loja, o que importa são os fatos. – o vendedor continuava impassível – E os fatos são: a senhora tem o nome sujo na praça e seu CPF foi negativado! – falava calmamente – Diante disso, só podemos lhe vender à vista, do contrário, infelizmente nada feito!

 

--Mas isso é um descaramento sem precedentes! – protestou – Eu vou...

 

--Pombinha, -- Camilla interrompeu a fala da outra -- vamos lidar com as traquinagens de Satanás em outro lugar e outo momento. – aconselhou – A regra da loja é clara e não tem mais o que discutir. – levantou-se – Obrigado pela atenção, senhor. – agradeceu ao vendedor

 

--Eu que lhes agradeço. – o homem se levantou também – Mas uma outra solução que pode ser trabalhada é a senhora comprar o móvel e as duas acertarem o pagamento entre si. – propôs

 

Pombinha se levantou olhando cheia de esperança para a morena. – Que acha, querida? – perguntou fazendo cara de quem viu a santinha – Poxa, ia me ajudar tanto...

 

--Infelizmente, sem condições. – recusou gentilmente – Como você sabe, gasto uma fortuna em tratamentos e remédios pra maama e também não sou empresária, mas professora. – fez um gesto para o vendedor – Até mais! – olhou brevemente para a vizinha – Vamos? – preparou-se para sair da loja

 

Pombinha suspirou decepcionada e seguiu a outra. – Vamos, né? Buscar alguma loja que não tenha essas pistingas de consulta de SPC! – resmungou

 

“Deus que me perdoe, mas não tô aqui pra isso!” – Camilla pensou resoluta – “Se Pombinha tá com nome sujo até em livraria não serei eu a me endividar por causa dela!”

 

***

 

--O que aconteceu aqui foi que você montou o servo motor em posição invertida, além de não ter feito a programação das ações que o Arduino deveria executar sempre que o sensor de aproximação registrar um sinal. – Camilla analisava o projeto que uma aluna lhe trouxe – Mesmo se não houvesse problemas com a programação, o servo não faria o braço do robô se movimentar na direção correta. – explicava – O cabo do servo tem que apontar pra fora e pra isso você precisa usar um cabo extensor que te ajude a completar a ligação. – olhou para a jovem – Essa montagem invertida pra não precisar pagar cabo só vai atrapalhar o seu projeto. – devolveu o sistema para a jovem – Também é importante que você se atente às ligações que fez no Arduino. Use sempre uma protoboard pra testar os circuitos em módulos menores antes de montar o completão. – aconselhou

 

--Aff, professora, errei feio, né? – debruçou-se sobre a mesa – Mas tá bom, eu vou fazer tudinho do jeito que a senhora me orientou. – sorriu – Será que um dia eu vou ser assim, do seu jeito? – perguntou admirada – Acho o máximo quando a senhora vem no meio dos homens e fala com propriedade e eles ficam tudo calados ouvindo... Maior moral que tem! – olhava para a morena -- A senhora é muito foda!

 

Ficou sem graça com o elogio. – Ah, -- sorriu timidamente – eu sou mais velha e experiente que você, Danielle, é natural que esteja na sua frente hoje. Mas você tem todas as condições de ser igual ou melhor que eu na sua vida profissional. – olhava para a jovem – É só estudar e se dedicar!

 

--E eu estudo... – admirava o rosto da professora – Além de adorar a possibilidade de estar com alguém mais velha e mais experiente. – sorriu – Tô mais que disposta a aprender tudo que a senhora quiser me ensinar!

 

--Que bom. – não sabia o que dizer

 

--Com licença. – uma voz conhecida se fez ouvir – Professora Camilla Isfahan, boa tarde. – cumprimentou formalmente -- Será que poderíamos conversar sobre seu processo? – olhou para a jovem – Em particular, devo destacar.

 

--Ah, sim. – Danielle levantou-se de um pulo – Vou deixar vocês a sós. – catou seus pertences rapidamente – Obrigada, professora. Tchauzinho! – despediu-se

 

--Tchau. – acompanhou a partida de sua aluna com o olhar – Agora somos nós, advogada Bianca Hamid. – levantou-se da mesa e se aproximou da outra – Sobre qual processo a senhora quer conversar? – cruzou os braços

 

--Você sabe muito bem que falo de nós! – respondeu seriamente em voz mais baixa – Mas a julgar pelo clima de sedução que vi aqui, deduzo que não cheguei em boa hora, né, habibem? – perguntou com ironia

 

Achou graça. – Pensei que você havia terminado comigo e me dito que eu não deveria esperar que você ficasse sozinha. – falou baixo também – Agora vem aqui do nada, depois de sumir por mais de duas semanas e fica toda de cara feia porque me viu tirando dúvidas de uma aluna? – balançou a cabeça – Não te entendo, Bianca!

 

--Eu que não me entendo de insistir com você mesmo sabendo que a senhora é uma grandessíssima barba ruiva! – retrucou – Como se não bastasse planejar de morar com aquela Pombinha roliça que conheceu outro dia, ainda tem a cara de pau de ficar seduzindo aluna com papinho cibernético! – acusou – Isso porque a mãe tá doente, imagine!

 

--Oi?? – não entendeu – Da onde você tirou tudo isso, menina? – olhou rapidamente para o relógio – Tá na minha hora, então vamos sair daqui e no caminho a gente conversa civilizadamente, pode ser? – propôs

 

--Vim de carro, amore! Não dá pra ir conversando pelo caminho se você também está de carro. – passou a mão nos cabelos – Me segue que eu tenho um lugar pra gente conversar sem ser importunada por ninguém e é pertinho de sua casa. Elzira e sua maama nem vão notar o seu atraso.

 

“Por que será que algo que me diz que essa conversa não vai prestar??” – Camilla pensou receosa

 

***

 

--É um belo apartamento! – a professora elogiou – Não sabia que você havia se mudado pra cá. – reparava o ambiente

 

--Eu continuo morando no mesmo lugar, habibem. – pegou dois copos – Quem mora aqui é minha irmã, que pretende juntar os trapinhos com o namorado e deu o primeiro passo mobiliando o apartamento. – contava -- Os dois estão viajando nesse momento e acho que é ela quem tá bancando tudo sozinha. Fazer o que, né? – olhou para a outra – Aceita uma bebida? Tem água de coco! – ofereceu

 

--Aceito, obrigada. – caminhou até a janela e olhou para fora – “Se Barbara soubesse que Bianca me trouxe pra cá ia ter um troço!” – pensou com vontade de rir

 

--Tintim! – entregou o copo cheio à ex namorada e deu uma leve batidinha nele antes de beber um gole – Agora eu quero entender direitinho o que tá acontecendo, Camilla Isfahan! – cobrou – Eu tava no shopping Recife com Barbara quanto te vi entrar numa loja de móveis toda no melhor estilo casalzinho com aquela Pomba gira despenada! – relembrava da cena – Só não fui tomar satisfações porque Barbara não deixou! – olhava para a outra – E hoje vou te ver no Departamento e dou de cara com aquela tua sedução nerd robótica com a aluninha lá! – franziu o cenho – O que é te deu, Camilla Isfahan? Só porque a gente terminou você caiu nessa de pipa voada no frevo? – queria satisfações – O que é que tá acontecendo com você?

 

Bebeu calmamente a água de coco antes de responder: – Eu simplesmente acompanhei Pombinha, que queria comprar um armário novo e nem conseguiu. Quanto à aluna, zero porcento de sedução ali. Você sabe muito bem que nunca me envolvi com pessoas relacionadas ao meu trabalho. – bebeu o resto que sobrou da água – No mais, você quer saber o que tá acontecendo comigo? Então eu vou te dizer. – caminhou para perto da mesa da sala e deixou o copo sobre ela – Tô vivendo a pior fase de minha vida inteira! – olhou para a advogada – Minha maama, a pessoa que eu amo demais, o único ser humano que me ama de verdade e ainda vive, tá se despedindo de mim dia a dia, sofrendo como nem sei dizer, e eu me sinto absolutamente sozinha pra cuidar dela! Eu me sinto impotente, incompetente, incapaz... Faço de tudo, mas nada parece suficiente pra superar o que tá acontecendo! – os olhos marejaram – Tenho irmãos, cunhadas, uma família inteira, mas é como se não tivesse! Tenho amigos, ou ao menos julguei ter, e praticamente nenhum se lembra de mim! – aproximou-se da outra – Eu me viro em mil pra atender às demandas de todos os compartimentos da vida e mal tenho tempo de cuidar de mim. Minha saúde se degrada também, sinto dores que nunca senti, abri mão de um monte de coisas e ainda assim parece que sou incapaz de ter tempo pra retomar minha vida! – derramou uma lágrima – Eu sinto saudades de mim, você entende uma coisa dessas? – olhava nos olhos – E no meio de tudo isso, a mulher que eu amo, a única que eu realmente desejo, só consegue se dedicar a duas coisas: trabalhar e buscar motivos pra ter ciúmes e brigar comigo! – acusou

 

--Amore, eu... – sentiu-se perturbada com aquelas palavras

 

--Você não tem sido companheira, Bianca! – acusou mais uma vez – Talvez porque o peso que eu carrego hoje em dia seja demais pra você e quanto a isso eu não posso te exigir nada. A cruz é só minha!

 

--Não é isso, habibem! – emocionou-se – Eu também tenho minhas inseguranças e... acabo fazendo tudo errado!

 

--De repente fez o certo quando terminou comigo pela milionésima vez! – secou os olhos com as mãos – Olha, minha linda, eu tô cansada de viver girando em círculos com você e por você! – respirou fundo – E no mais, maama me espera, tenho trabalho de alunos pra corrigir e o tempo não para! – decidiu partir – A vida segue seu rumo, independentemente das minhas batalhas.

 

--Camilla, eu sei que não tenho sido muito legal, eu refleti e...

 

--Também refleti! – interrompeu a fala da outra – Acho que nunca refleti tanto quanto nos dias de hoje. – pegou a bolsa em cima do sofá e seguiu até a porta da sala – Cuide-se, minha linda! – abriu a porta – Boa noite! – não esperou resposta e foi embora

 

Depois daquela noite, Bianca novamente desapareceu. Mas eu também não queria vê-la. Sentia-me cansada e ela era só mais uma a somar problemas para mim.

Pombinha voltou a frequentar minha casa, mas algo havia mudado. Ela parecia ter desistido de mim e eu também notei que havia me desinteressado por algo mais que uma amizade com ela. No entanto, a presença dela nos fazia bem e maama continuava gostando de suas visitas quase diárias. Quando o Botafogo jogava, no entanto, ela sumia mas ouvíamos seus gritos e grunhidos reverberando pelo condomínio. Por causa disso dona Sibele acabou se convertendo em uma inimiga de Pombinha e vivia buscando motivos para aplicar multas a ela.

A vida foi seguindo seu rumo e quando me dei conta já estávamos em dezembro, a três dias do natal.

 

--Ave Maria que o tempo voou! Dormi e acordei e taí o natal pra chegar! – Elzira exclamou enquanto observava o robô circulando pela sala – Lá vai ele todo faceiro, espia! – apontou divertida

 

--Num gosto desse bicho! – Suhaila reclamou – Só quero ver se Camilla não vai desligar essa peste no natal!

 

--Ei, eu tô ouvindo isso aí! – a professora voltava da cozinha sendo seguida pelo robô – Pode deixar que durante o meu recesso de final de ano ele vai ficar de férias. – sentou-se no sofá – Amanhã vou fazer umas comprinhas pra garantir nossa ceia! – sorriu – Quer me ajudar a preparar maama? A senhora pode fazer a salada de frutas, que tal? – propôs – O resto eu faço junto com Elzira! – olhou para a prima

 

--Eu quero! – a mulher mais velha concordou – Mas se começar com dor vou ter que parar, não sabe? – comentou entristecida

 

--Não pense em dor, tia! – Elzira aconselhou meio sem graça – Vai dar tudo certo e a senhora vai passar um bom natal! – sorriu -- Além do mais que a prima descobriu uma clínica especialista em dor que vai lhe atender na sexta!

 

--Milagre encontrar uma clínica que vai trabalhar em plena sexta, dia 23! – a professora comentou – Mas e então, prima, vai me ajudar com a culinária ou não? – brincou

 

--Então... – pensava em como falar – Eu achava que vocês iam querer passar as festas em Triunfo... – afirmou constrangida – Tava querendo ir pra lá...

 

Suhaila deu um suspiro profundo. – Você quer ir pra lá, então pode ir. – olhou para a sobrinha – Fico aqui mais Camilla e tá tudo certo! – decidiu – Não quero fazer uma viagem longa e cansativa pra passar festa com quem não me deu bola nesse tempo todo! – afirmou com mágoa

 

--Concordo, maama. – ficou um pouco decepcionada com a prima – Você quer ir, pode ir Elzira. Ficaremos bem aqui.

 

Elzira nada respondeu e abaixou a cabeça envergonhada.

 

***

 

--Será que vai dar certo isso, mulher? – Pombinha perguntou receosa – Depois de tanto tempo arriscar a ir passar natal mais mãínha, meus parentes... – olhava para a professora – E se eles me botarem pra correr? – estava preocupada

 

--Isso não vai acontecer! – segurou as duas mãos da outra – Você não pode perder o contato com as pessoas importantes de sua vida por causa de um time de futebol! – olhava para a vizinha – Chegue humilde, peça perdão, diga como se sente e eles vão lhe dar abrigo. Tenho certeza! – sorriu

 

Sorriu também. – Ai, Camilla, você é uma pessoa tão maravilhosa! – abraçou-a com força – A melhor coisa que me aconteceu nesse ano foi ter te conhecido e também a dona Suhaila! – beijou-lhe o rosto – Também gosto muito de Elzira! – admirava o rosto da professora – Vou pedir a Deus que no ano que vem me dê jeito de te conquistar, visse? – piscou – Você vai ver que sou bem melhor que a advogada! – brincou

 

Ficou meio sem graça. – Deixe de trololó e vá cuidar da vida! – beijou-lhe a testa – Reconquiste a família primeiro e o resto vem depois!

 

--Amém! – postou as mãos e olhou para cima

 

***

 

Camilla desceu para jogar o lixo fora e levou um susto com o que viu no hall do prédio: quatro papais Noel de tamanho mediano rebol*vam pelos cantos, uma árvore de natal branca e azul adornava a entrada principal e um imenso calendário com o rosto de Sibele marcava presença na portaria. Guirlandas azuis e brancas enfeitavam as paredes e uma rena de arame, iluminada por LEDs azuis, estava de frente para o elevador com um papagaio de pelúcia na cabeça.

 

--Eu hein! – a morena resmungou sozinha – Dona Sibele me arruma cada coisa! – foi para as lixeiras depositar os sacos

 

--Feliz nataaal! Aleluia! – o papagaio falou – Feliz nataa! Glória Deus!

 

--E ainda fala com a voz dela, não faltava mais nada! – achou graça e voltou para o elevador – Será que alguém acreditaria nisso se eu contasse? – conversava consigo mesma ao apertar o botão do seu andar

 

--Feliz nataal! Queima CONVIDE! – o papagaio continuava – Feliz nataal! Sai Satanáás!

 

***

 

--Vamos fazer nossas orações, maama? – Camilla pegou o celular – Conheci uma música muito bonita e acho que poderia nos embalar nessa noite especial. – selecionou a canção

 

--Vamos, minha filha! – concordou – Eu quero rezar! – pediu

 

“Você é bem-vindo aqui,

A casa é Sua, pode entrar,

Me esvazio de mim,

Me esvazio de mim...”

 

Ajoelhou-se diante da mãe e segurou as duas mãos dela. – Aconteça o que acontecer, saiba que mesmo quando eu perco a paciência e reclamo, acredite que eu a amo muito! – declarou-se – E isso nunca vai mudar! – emocionou-se – A senhora é meu mais precioso tesouro!

 

--Você é a coisa mais bonita de minha vida, menina! – respondeu com os olhos marejados

 

“Sopra o Teu vento aqui,

Toma o Teu trono, vem reinar;

Nós queremos Te ouvir;

Nós queremos Te ouvir...”

 

Encostou testa com testa e fechou os olhos. – Vamos pedir pra Jesus habitar em nós, maama!

 

--Ora, vem Senhor! – a mulher respondeu ao fechar os olhos

 

“Essa casa é Sua casa,

Nós deixamos ela pra Você,

Jesus...”

 

O que é o natal, para além do apelo comercial e dos compromissos que pipocam nas agendas ao final do ano? O que o natal poderia representar em nossas vidas?

 

“Essa casa é Sua casa,

Nós deixamos ela pra Você,

Jesus...”

 

Qual o objetivo desta vida cheia de dificuldades, expiações e provas? Por que às vezes parece que o Mal e as injustiças são mais fortes que o Bem?

 

“Apareça,

Que o Teu nome cresça,

Enche este lugar,

Enche este lugar...”

 

A Humanidade progrediu, ainda que exista muito mal acontecendo em todos os lugares. Mas é inegável que as mentalidades evoluíram e coisas que antes eram naturalizadas ou invisibilizadas hoje são discutidas e tratadas com mais seriedade. Esse é um caminho sem volta.

 

“Apareça,

Que o Teu nome cresça,

Vem me incendiar;

Vem me incendiar...”

 

Nós plantamos o que semeamos ao longo de tantas encarnações e o amargo que venhamos a provar é o remédio que precisamos para curar nossas dores, visíveis ou ocultas nos recônditos da alma.

 

“Apareça,

Que o Teu nome cresça,

Enche este lugar,

Enche este lugar...”

 

Nenhuma dor dura para sempre. Nenhum sofrimento é eterno. O que nos maltrata hoje também vai passar.

 

“Apareça,

Que o Teu nome cresça,

Vem me incendiar;

Vem me incendiar...”

 

Não estamos nessa Terra por outra razão senão para nos cuidar. Não sejamos ingênuas a ponto de nos deixar explorar, mas sejamos companheiras das pessoas e espalhemos todo Bem que pudermos enquanto estivermos aqui.

 

“Essa casa é Sua casa,

Nós deixamos ela pra Você,

Jesus...”

A Casa É Sua. Intérpretes: Casa Worship. Compositores: Felipe Rodrigues / Helena Albernaz / Julliany Souza / Leo Brandão / Ricardinho. In: A Casa É Sua. Apple Music (?), 2019. 1 CD, faixa 1 (9min23)

 

Eu, a autora real, a mulher por trás do fake, lhes desejo de todo coração que Jesus habite no espírito de cada um (a) de vocês e que seja natal em todos os dias do ano! Natal no sentido de nascer e renascer diante de cada dificuldade que tire um pouquinho de nós por essas estradas da vida.

Sem demagogias ou falsidades, amo vocês! Obrigada pelo carinho que me devolvem!

جاسين سوليتودين

 

Fim do capítulo