E o tempo vai passando com nossas vidas seguindo da mesma forma. Temos nos apoiado mutuamente, oramos muito e peço sempre a Deus que nos dê toda força e tenacidade que precisamos para enfrentar nossa árdua batalha que ainda não terminou. Continuo me equilibrando entre as mil demandas que tenho e em meio a tudo isso Bianca parece uma leoa demarcando território por causa de Pombinha. Desde que soube da existência da outra, ela tem vindo em minha casa com frequência e faz de tudo para agradar maama. Elzira a considera o máximo, além de muito estilosa. Quanto a nós como um casal, posso dizer que continuamos com nossos altos e baixos: ela toda fofinha quando quer me agradar e me soltando os cachorros quando cisma que a “concorrência” possa estar ganhando terreno. Como maama gosta das visitas de Pombinha, Bianca sabe que não pode me pedir para evitá-las e é exatamente isso que mais a desestabiliza, especialmente em ocasiões como agora, neste final de setembro, em que é obrigada a viajar a serviço.

 

--Eu vou andando muito bem e de repente desembesto! – Suhaila resmungou contrariada – Dá um tangolomango nas pernas e as bicha trava! – franziu o cenho

 

--Andar é treino, maama. – Camilla respondeu calmamente – Continue sempre caminhando, mesmo que devagar, e as pernas vão destravando. – mexeu rapidamente no celular

 

--Eu acho que a senhora já melhorou um tanto, visse? – Pombinha comentou sorridente – Noto a diferença se comparar com a primeira vez que a gente caminhou junta nessa orla.

 

As três mulheres aproveitavam as primeiras horas do sábado para caminhar pela orla de Boa Viagem. Pombinha e Camilla vinham de braços dados com Suhaila.

 

--Quer caminhar com a água molhando as canelas, maama? – ofereceu – É um bom exercício!

 

--Desconjuro! – respondeu de pronto – Pra tubarão vir me comer? Vou nada! – fez cara feia – Já tô toda calambiada, Deus que me livre de ficar perneta!

 

As outras duas acharam graça. – Também não é assim, dona Suhaila. – Pombinha respondeu divertida – Mas enfim, se a senhora tem medo... – balançou a cabeça

 

--Eu nem me lembro da última vez que consegui fazer a senhora tomar banho de mar! – beijou a cabeça da mãe e mexeu novamente no celular

 

--Já eu mal me lembro da última vez que fiz qualquer coisa agradável com mãínha... – lamentou nostálgica – Desde 2017 sem contato com família...

 

--Oxe! – Suhaila se surpreendeu – Menina, você é mulher de religião e tá brigada com a família? – perguntou espantada – Não me diga que é por causa de política? – intrigou-se – Ou o que é pior: por causa de político?

 

Camilla também aguardava a resposta enquanto mexia no celular.

 

--É por isso não... – abaixou a cabeça brevemente – É porque... minha família não se agrada muito de certas coisas em mim e aí... Nem tudo em nós é Graça, não é? – deu um sorriso triste -- Acho que naquele ano foi a gota d’água pra eles, não sabe?

 

“Será que eles descobriram que ela é lésbica e não se conformaram?” – a professora pensou – “Algumas pessoas religiosas são muito intolerantes com o que não entendem.” – considerou – Dê tempo ao tempo, Pombinha. – respondeu mansamente – Deus há de clarear o entendimento de todos vocês e uma reaproximação vai acontecer. – mexia no celular – Confia!

 

--Amém! – a mulher mais velha concordou – Depois me dê os nomes desse povo que boto nas minhas reza. – pediu – Minhas almas vão amansar todos eles! -- garantiu

 

–Dou sim, dona Suhaila, agradecida! -- olhou para a professora -- Mulher, mas e você hein? Esse teu celular não para, Ave Maria! Até em dia de sábado toda hora é gente ligando, mandando mensagem... – comentou

 

--É um encosto que tem na vida dela, isso sim! – Suhaila resmungou em voz alta – A bicha tá doida!

 

--Como?? – Pombinha não entendeu

 

--Coisas de maama, não tente entender. – a morena disfarçou bem humorada – E Elzira, hein? Será que já acordou ou continua dormindo mais que a cama? – desejava mudar de assunto – “Ave Maria, Bianca me envia 200 mensagens por minuto!” – sentia o celular vibrando junto ao corpo – “E isso porque ela nem imagina quem tá caminhando aqui com a gente!” – pensou

 

***

 

--E aí eu fico me perguntando, sabe? – gesticulou brevemente – Por que antes de Pombinha aparecer ela não ia lá em casa? Por que a gente se via tão pouco e agora a frequência aumentou bastante? – questionava-se em voz alta – É verdade que nossos momentos a sós continuam poucos como estava sendo antes, mas uma relação não é somente construída com base em intimidade, não é? Tem a vida no dia a dia, as coisas que pedem um companheirismo... – pausou brevemente – Ao mesmo tempo que gosto de tê-la por perto, sinto uma certa decepção também. – olhou para a psicóloga – Entende isso, Simone? Entende o que quero dizer? – questionou – Acredita que até um curso remoto e gratuito de Visualização de Dados com Power BI ela arrumou pra Elzira? Nem sei como conseguiu isso!

 

Balançou a cabeça positivamente. – A decepção pode ser traduzida em uma pergunta: por que antes ela não tinha tempo de ser tão presente e agora tem? – concluiu – Fica parecendo que precisou Pombinha aparecer pra que Bianca realmente fizesse um esforço por você, não é?

 

--É... – suspirou – Mas também fica a certeza de que esse esforço é só por causa do medo de me perder pra outra! No dia que Pombinha se afastar de nós, Bianca voltará a ser como estava antes.

 

Simone ficou uns segundos calada até que perguntou: -- E por que você acredita que Pombinha vá se afastar de vocês? – queria saber

 

--Ela é inquilina e isso é natural. – respondeu de imediato – Pode encontrar um lugar mais dentro das expectativas dela e se mudar. Com isso, naturalmente se afastará.

 

--E por que teria que ser assim? Ela não poderia querer continuar próxima a vocês mesmo que viesse a se mudar? – cruzou as pernas – Aliás, por que você está permitindo que ela se aproxime tanto? – provocou – Afinal de contas, ela vai regularmente na sua casa, caminha com você e sua mãe, vai junto no shopping... será que tudo isso é somente porque você sabe que dona Suhaila gosta dela ou você também gosta de ver Bianca enciumada? – reparava na outra – Será que no fundo você também não pensa na possibilidade de um novo relacionamento?

 

A professora refletiu na pergunta antes de responder. – Já pensei sobre isso... – admitiu – Acho que pode ter um pouquinho de tudo que você falou, mas também é a carência, sabe? – mirou um ponto no infinito – Tem vezes que eu me sinto muito só. Como se fosse alguém sem família, sem amigos... É muito difícil encarar essa barra que estamos vivendo sem poder contar com outras pessoas! Elzira só tá junto porque eu pago, ano que vem já vai embora, e na nossa família ninguém parece se importar, ninguém ajuda... – desabafou – Meus amigos se afastaram de mim e hoje em dia as pessoas fazem festa ou uma celebração qualquer e não nos convidam. – reconheceu com mágoa contida – Eu era uma pessoa que vivia cercada de gente, tinha uma vida social bem massa... – riu brevemente – Hoje é como se eu não existisse... – sentiu uma pontada de dor – Pombinha é uma amiga que surgiu, ao menos parece que ela quer ser, e isso me agrada.

 

--Nos momentos de dificuldade, a maioria das pessoas se afasta de nós. Só os verdadeiros amigos ficam junto e estes são muito poucos. – a psicóloga corroborou com o que ouviu –Mas também existe um outro lado nisso tudo: há pessoas que gostam de nós, mas não sabem o que fazer e se afastam por não conseguirem lidar com isso, com o sofrimento alheio. – gesticulou brevemente – Como você também pode ter se afastado gradualmente das pessoas, ainda que sem perceber. – ponderou – Porém Pombinha não parece querer ser somente sua amiga... Será que você não pensa em dar uma chance a ela? Ou será que deseja apenas manter Bianca por perto por causa dela? – insistiu

 

--Eu não sei... – afirmou com sinceridade – Não tenho coragem de terminar com Bianca e não sei se Pombinha e eu... realmente não sei.

 

--Por que você usou a palavra coragem? – destacou o fato – Você tem medo de terminar com Bianca, tentar com a outra moça e não dar certo?

 

--Eu nunca fui bem-sucedida em vida amorosa, Simone! – confessou – Minhas namoradas anteriores, que nem foram tantas assim, me deixaram sem mais nem menos. – passou a mão nos cabelos – Se nem quando eu tava no meu auge, inclusive de forma física, nunca fui interessante o suficiente faz ideia agora! – riu brevemente – Já me surpreendo com o fato de Bianca ter colado em mim e ficado junto até hoje. Ainda mais uma mulher daquelas... – pensava na namorada -- Isso não vai acontecer duas vezes e eu não tô preparada pra encarar um pé na bunda na atualidade! – considerou – Não sei se Pombinha permaneceria ao meu lado depois que passasse a novidade e ela se visse como namorada de uma mulher de cotidiano pesado e sem tempo pra quase nada!

 

A psicóloga ficou calada analisando a morena.

 

***

 

--Chegamos! – Camilla afirmou sorridente ao estacionar o carro – E que engarrafamento, Ave Maria! – olhou para a outra a seu lado – Pensei que a gente não estaria em casa antes das nove!

 

--Também. – Pombinha sentou-se de lado para encarar a morena de frente – Mas se fosse o caso, eu não ficava chateada, visse? – afirmou melosa – Engarrafamento até deixa de ser osso quando se tem companhia tão boa pra conversar! – sorriu

 

--Ah, é. – desviou o olhar envergonhada – Aliás, eu nem imaginava que te veria nas imediações de meu Departamento. – passou a mão nos cabelos – Foi pura sorte que você saía da Biomédica justo na hora em que eu fui pegar o carro pra vir embora!

 

--Eu que o diga! – concordou – Trabalho com uma dentista que tá fazendo tese por lá e ela tava na precisão de me ver, eu também tinha umas próteses pra entregar pra ela... – admirava a professora – Protética é pau pra toda obra, né? A gente se vira em mil e dá jeito pra tudo! – jogava um charme – É que tu ainda não conhecesse essa minha... – mordeu o lábio inferior – faceta!

 

“Ave Maria!” – engoliu em seco – É, eu não conheço não. – ajeitou-se para sair do carro – Bem, já chegamos, é hora de subir e maama me espera. – olhou para outra novamente – Ainda tenho prova pra corrigir, essas coisas de professora, sabe como é.

 

--Sempre correndo... – aproximou-se mais da morena – Eu tive pensando... – segurou uma mecha dos cabelos dela – Nesse final de semana vou pro retiro da igreja mas logo na segunda tem Botafogo e Palmeiras. Vai ser de oito da noite! – pausou brevemente – Quer ir assistir comigo lá em casa? – convidou – Só você mais eu? Você bem que podia chegar lá pelas sete!

 

“Mas que programinha de índio esportivo!” – pensou estranhando – Pombinha... futebol não é muito a minha onda, não sabe? – respondeu com jeito – E numa segunda à noite...

 

--Ah, Elzira nem vai tá de folga e nem de curso. – insistiu manhosa – Aceite, vá? – caprichou nos olhares – Eu preparo um jantarzinho bem massa pra nós... – propôs -- Você me parece alguém que anda tão carente... – deslizou um dedo suavemente pelo rosto da morena – Sempre cuidando de tudo e todos, mas quem cuida de você, hein? – falava com voz hipnótica – Deixe eu te dar um colinho...

 

--Pombinha... – sentia-se perturbada com aquela proximidade – Eu não tô solteira e não acho honesto de minha parte que...

 

--Eu já percebi que aquela advogada é muito mais que só tua amiga. – interrompeu a fala da outra – Mas ela pode ser bonitona e chique à vontade porque mais amor pra dar do que eu, com certeza ela não tem! – afirmou resoluta – E posso provar isso agora! – tocou o rosto da morena e preparou-se para beijá-la

 

--Queima, Satanás!! – as duas mulheres levaram um susto -- Aqui não! – Sibele gritava ao chicotear – Queima! – e tome de chicotear

 

--Ave Maria! – Pombinha deu um pulo no assento do carro – Será que ela viu alguma coisa? – perguntou apavorada – Ai, eu não quero apanhar de chicote, não!

 

--Vidros filmados, ela não tem como ver nada aqui! – Camilla se recompôs – E definitivamente é hora da gente subir! – decidiu ao abrir a porta – De mais a mais, não tenho paciência pra ver dona Sibele achar que usando um chicote pode incendiar os vírus do prédio! – saiu do carro – “E o pior é que se ela não chegasse o que ia acabar incendiando era Pombinha e eu!” -- pensou

 

--Cristo Santo! – benzeu-se antes de sair do carro também – Mas...– fechou a porta e ajeitou os cabelos – Pense na minha proposta. Segunda que vem te espero! – sorriu

 

Camilla deu um suspiro e nada respondeu.

 

***

 

--E então, amore? O que é que você fez hoje? – Bianca perguntava ao telefone – Quero o relatório completo! – brincou – Por essa hora sua maama tá dormindo ou ainda não conseguiu?

 

--Graças a Deus, hoje parece que teremos uma noite tranquila. Elzira já tá no quinto sono! – pausou brevemente -- Bianca, escuta... – sentou-se na cama – Não é de hoje que eu venho tentando conversar sobre nosso relacionamento e você sempre evita, mas realmente é necessário. – pensava em como falar – A gente não tá bem!

 

--Não é bem assim! – discordou de pronto – Estávamos terminadas, veio uma pandemia que mudou tudo, sua vida girou de ponta cabeça... claro que não é rápido e nem fácil entrar nos eixos. – expunha seu ponto de vista – Mas a gente até que tá se acertando... o que atrapalha é aquela mariposa espevitada que atende pela infeliz alcunha de Pombinha! – falou o nome da outra com desprezo

 

--E ela não teria espaço se não houvesse uma lacuna entre nós! – sentiu a tensão da namorada do outro lado da linha – Nada aconteceu e nem acontece entre ela e eu, mas não vou negar que não sou indiferente.

 

--Eu sabia! Eu sabia! – protestou furiosa do outro lado – Essa mulherzinha tanto que fez que acabou te deixando atiçada! – reclamou – Onde foi que eu errei, me diz? Como pode querer me trocar por uma beata gordinha e atarracada? É só por que ela tem a bunda grande, qual é o borogodó daquela passarinha oferecida?

 

--Não é nada disso! – retrucou de imediato – Nosso relacionamento perdeu o sentido, será que você não vê? – controlava-se para não falar mais alto – Vivemos meia hora de calmaria pra cinco horas de estresse por causa desse seu ciúme doentio e da minha incapacidade em saber lidar com isso! – levantou-se da cama – Algo entre nós se perdeu e eu não sei se dá pra recuperar!

 

--Você, que diz e escreve nos seus contos que o Amor supera tudo? – respondeu com mágoa – Que hipocrisia!

 

--E supera mesmo, só que talvez a gente não saiba amar, já pensou nisso? – argumentou – Eu não acredito que você esteja feliz vivendo como a gente tem vivido!

 

--Lógico que a vida não tá como eu gostaria! – reclamou – Sua vida tá osso, a gente não tem tempo pra se curtir, a OIT nunca que diz se eu tô dentro ou não, as coisas no escritório tão uma correria só, uma merd*, mas nada disso é pra sempre! – afirmou enfática – Tudo vai se resolver, a OIT vai me convocar e eu quero você do meu lado quando for embora pra Suíça! Vamos recomeçar e refazer a nossa vida lá!

 

--O futuro não entrega o que a gente não constrói no presente, querida! – objetou – Não sairemos desse círculo vicioso simplesmente se mudarmos de país! – pausou brevemente – E sinceramente não sei se realmente desejo isso...

 

--Eu sei o que você deseja, habibem, e é uma passarinha roliça que tá doida pra te arreganhar as asinhas não é de hoje! – afirmou com raiva – Vai caçar tua pombinha que eu tô fora! – respondeu desaforada – Só não espere que eu fique solteira enquanto isso! – desligou o telefone

 

Camilla deixou o celular em cima da mesinha e caminhou até a janela do quarto. Mirava sem ver a paisagem diante de si. “Meu Deus, eu me sinto tão perdida, tão insegura e confusa...” – desabafava mentalmente – “Os problemas de maama não se resolvem e nossas vidas parecem rodar em círculos sem avançar...” – fechou os olhos e respirou fundo – “Eu Lhe suplico, Pai, nos ajude! Dai-nos força e sabedoria!” – orava mentalmente

 

***

 

--Sabe que eu ainda não entendi por que Elzira saiu correndo desvairada pra Triunfo em plena sexta-feira à tarde? -- Camilla dizia enquanto servia o jantar – E eu ainda peguei um engarrafamento pra voltar da faculdade que quase fez Pombinha perder a hora de ir viajar com o pessoal da igreja dela! – olhou para a mãe – O que foi que Xarid pediu dessa vez em nome dos filhos pra causar toda essa sangria desatada?

 

--Eu não sei, porque ela não me disse nada. – Suhaila respondeu de pronto – Seu irmão me ligou, perguntou sobre como eu tava e logo pediu pra falar com sua prima. – pegou a colher -- Aí ficaram proseando por uns 20 minutos e quando ela me devolveu o celular, chega tava num aperreio doido! – contava – Subiu correndo atrás de Pombinha e pediu pra ela ficar mais eu enquanto você não chegava. Aí arrumou as trouxa e foi, mas disse que domingo à noite tá de volta. – começou a comer

 

--Eu hein! – sentou-se à mesa e preparou-se para comer – Quando ela chegar, vamos conversar sobre isso. – decidiu – Sei que Elzira é mulher adulta mas não aprovo dela se meter em dívida de novo pra satisfazer os devaneios de Xarid e Aline Maria. – deu uma garfada

 

--Vocês duas têm jeito mais não! – Suhaila afirmou convicta – Ela é feita de besta por ser madrinha de menino e você é feita de besta por aquela advogada de porta de cadeia! – deu uma colherada

 

--Não é isso, maama. – limpou os lábios com guardanapo – Ou é, nem sei! Minha cabeça também anda numa confusão só! – deu outra garfada

 

--E não vá me arrumar ainda mais confusão se envolvendo com Pombinha sem pensar se é isso mesmo que você quer! – aconselhou – Ela é muito fofinha, boazinha, mas todo mundo é assim quando tá de olho em alguém. É que nem campanha eleitoral! – filosofava -- Depois que dá o bote certeiro é que se conhece de fato quem tá do outro lado, eu bem sei! – voltou a comer

 

--Bote certeiro... – achou graça – Tudo bem, maama, não tenha medo que não tô agindo no impulso. – garantiu – E se eu me animar de assistir o jogo na casa dela não vai ser nada mais que isso: assistir uma partida de futebol. – deu uma garfada

 

--Humpf! – fez um bico – Só peço uma coisa: não fique de resfulengo na base do escândalo porque não quero ficar aqui ouvindo as duas acasalando em cima de minha cabeça! – deu uma colherada

 

Riu mais uma vez. – Eu hein, maama? – balançou a cabeça divertida

 

***

 

--Eu sabia que você viria! – Pombinha abriu a porta da sala animadamente – Bem-vinda! -- sorriu

 

--Boa noite, querida. Obrigada. – entrou na sala – Nossa! Você realmente entra no clima! – reparou no ambiente

 

Flâmulas do Botafogo ornavam todas as paredes, balões de gás preto e branco haviam sido pendurados nos móveis, as poltronas estavam revestidas com bandeiras do time e um imenso escudo com a estrela solitária havia sido colocado atrás da TV de tela plana. Pombinha usava um vestido oficial do time e sandálias pretas enfeitadas com estrelinhas brancas.

 

--Como te falei um dia: pense numa torcedora! – abriu os braços brevemente -- Preparei uma saladinha verde com feijão fradinho e salmão defumado que vai te fazer lamber os beiços! – aproximou-se da outra – Vamos aproveitar e jantar antes do jogo começar? – propôs

 

--Vamos. – sorriu – Posso usar o banheiro pra lavar as mãos? – pediu

 

--Claro! – concordou de pronto – Enquanto isso preparo a mesa! – seguiu até a cozinha – Eu costumava a assistir os jogos na casa de uma das amigas do futebol lá no Pina, mas rolou uma zica com o grupo e por isso vou começar a assistir aqui em casa mesmo. – falava mais alto – Vai que você se empolga também e vira minha companheira de torcida?

 

A professora achou graça e nada respondeu.

 

***

 

--E desde então eu tô completamente solteira, não sabe? -- gesticulava gentilmente -- Não é fácil encontrar mulheres que amam mulheres e quando a gente encontra, só dá descrente, ateia, mulher de mandinga, maluca das forrozeiras... – ponderou -- Pra mim foi um verdadeiro achado vir morar num prédio onde temos uma professora renomada, de família, divertida, culta, educada, temente a Deus e devota da Virgem Maria... -- flertava com a morena ao final do jantar – Além de tudo ainda sabe fazer de tudo numa casa, gente? Era tudo que eu queria... – suspirou

 

“Eita, que hoje ela tá direta e reta!” – pensou meio encabulada – Apesar desses meses de convívio a gente ainda não se conhece muito bem, Pombinha. – respondeu gentilmente – Eu não sou tudo isso que você vê. – pausou brevemente – Vamos nos conhecendo melhor, sem pressa, pra que a gente se veja como realmente somos. – sorriu – E quanto a categoria de “mulher de mandinga”, – fez aspas com os dedos – eu sou kardecista, então não sei se isso é algo que você considere ruim. Aliás respeito muito os praticantes da umbanda e do candomblé, mesmo não sendo minha linha de estudo.

 

Fez um gesto despreocupado. – Que nada! Problema nenhum! – sorriu – Kardecista é gente do espiritualismo cult. – ajeitou os cabelos – Eu gosto!

 

Achou graça. – Então, sendo assim... – sorria também

 

--Início de jogo e a bola rola no estádio Nilton Santos no Rio de Janeiro! – o locutor anunciava animado – Botafogo e Palmeiras, um jogão pelo Campeonato Brasileiro!

 

--Ai meu Deus, glória ao Pai! – Pombinha levantou-se de um pulo – Vem, mulher, hora de assistir! – correu e parou diante da TV – Deixe tudo praí na mesa e venha! – fixou os olhos no telão – Abençoa o time, Pai Amado! – benzeu-se – Vai, Botafogo, vamos vencer! – pegou o terço em cima da mesinha de centro e ajoelhou-se no chão

 

Levantou-se da mesa também e seguiu até o sofá. – Vamos assistir isso aí. – concordou – “Nunca tive um encontro como esse!” – pensou divertida

 

--O QUE??? CARTÃO AMARELO PRO MEU ZAGUEIRO?? – Pombinha gritou revoltada – NÃO, NÃO, NÃO!!! – levantou-se apavorada – JUIZ LADRÃO, MISERÁVEL!! – chacoalhava o terço

 

Camilla achou graça da reação. – Relaxa, menina! – aconselhou brincalhona – Ainda tem muito jogo pela frente!

 

A mulher ignorou o comentário e continuou com os olhos fixos acompanhando a partida. – GOL!! – deu um pulo -- É GOL, É GOL, É GOL, FOGOOOOOOOO!!!!!!!!!!!!! – correu até a professora e a puxou para que se levantasse – GOOOOOOL!!!!!!! – gritou novamente – AHAHAHAH, TIQUINHOOOO!!!! – pulava quem pulga

 

--Eita, meu Pai! – pulava abraçada com a vizinha – Já começou bem! – achava graça

 

--Foco, foco, não pode perder o foco! – desvencilhou-se da morena e novamente se ajoelhou diante da TV – Minha Nossa Senhora, faz a gente vencer esse jogo! – clamou

 

--E tome de torcer! – Camilla sentou-se novamente – “Se dona Sibele tá ouvindo isso, daqui a pouco vem aqui pedir silêncio!” – pensou achando graça – Vai, Botafogo, mostra tua raça! – brincou para incentivar – Mostra tudo aí!

 

--O QUE??? PENALTI??? – Pombinha levantou-se mais uma vez – AH, NÃO, MEU DEUS!! – clamou desesperada – FECHA ESSE GOL, MEU PAI!!! NÃO DEIXA O PALMEIRAS MARCAR! NÃO DEIXA!!!

 

--GOOOL!!! – o narrador gritou – Ééééé do Palmeiras! Gustavo Scarpa marcando aos 26 minutos do primeiro tempo!

 

--NÃOOO!!!!!!!!! – gritou como porco à beira do abate – PUTA QUE PARIU, PORRA!!!! GOL DO PALMEIRAS NÃO, CARALHOO!!!

 

--Oxe? – surpreendeu-se – Calma, mulher, que é isso?

 

Pombinha andava de um lado a outro da sala rezando o terço sem tirar os olhos do telão. Cerca de 10 minutos depois o Palmeiras marca o segundo gol.

 

--PORRAAA!!!!! – subiu em cima do sofá e arrancou o vestido – PUTA QUE PARIU, CARALHO!!! – jogou o terço no chão com ódio – QUE MERDA, PORRAAA!!! – gritava – SATANÁS TÁ COM O PALMEIRAS, CARALHOOO!!!

 

--É... – levantou-se do sofá – Você não acha que tá exagerando, não? – Camilla perguntou receosa

 

--AHAHAHAHAH!!!!!!! – deu um tapa no abajur e o derrubou no chão – PORRA, PORRAAA!!! – avançou em alguns balões de gás e os apertou até estourar – CARALHOOO!!!!!! -- gritou

 

--Olha, eu vou indo nessa e depois a gente se fala, tá? – a professora correu até a porta da sala – Vai assistindo aí e fica mansa que daqui a pouco o Botafogo empata. – abriu a porta

 

--QUE??? VAI DAR CARTÃO AMARELO PRO MEIO DE CAMPO??? – Pombinha berrava possuída – JUIZ COMPRADO, LADRÃO, VEADO MALDITO!!! – puxou uma das bandeiras que cobria o sofá – PORRA, CARALHO, MERDAAAA!!! – agitava-se endiabradamente

 

--Deus me defenda! – fugiu do apartamento da vizinha – Nem em seus piores momentos de barraco Bianca chega perto disso aí! – descia as escadas apavorada – Que pistinga dos infernos!

 

--PORRAAAAAAA!!!!!!!!! – gritos ensandecidos repercutiam por todo condomínio

 

Fim do capítulo