Capitulo 18 - Endorfina
“Não suporto ela! Nossa, por que o Anderson tinha que arrumar alguém tão chata?”
“Parece que quer aparecer, saber mais que todo mundo na mesa!”
“A Grazi nem perguntou nada sobre cólica, e ela já veio se intrometendo, dizendo o que ela devia fazer. E ficava falando dessas coisas na frente dos caras, como se fosse nada!”
“Nossa, me deixou com muita vergonha!”
“Ela quer mostrar, porque ‘ai, nossa, ela é da USSSSSP!’”
“Deve ser aquelas nerdonas chatas que dizem que ter uma boa aparência é coisa de gente fútil... Quem vem pra um lugar destes usando calça jeans e moletom por cima de uma blusa social? Fora aquele cabelo espigado dela.”
“Quero ver na hora de arrumar um emprego se ela for malvestida daquele jeito, não vai passar nem na primeira entrevista. Eles observam até se você faz as unhas direito, senão, dispensam na hora.”
“E devia ir a um cirurgião plástico pra dar um jeito naquela cara de ‘monga’ de nariz achatado...”
As três riram e saíram do banheiro. Tinham o mesmo cabelo loiro platinado longo e liso, com raízes escuras, e usavam vestidos praticamente idênticos, da mesma cor.
Prestes a entrar, Núria ouviu parte do final da conversa. A princípio, não teria ligado o assunto a si mesma, se uma das três, naquele estilo muito típico das mulheres heterossexuais de marcar território em sua rivalidade feminina, não tivesse olhado Núria de cima a baixo e dito “Oi!” sorrindo descaradamente, emulada pelas outras duas.
O problema delas era o mesmo de todas as mulheres héteros padrão e sem autoestima: cada vez que Núria tentava aconselhar alguém, ou mantinha uma conversa de igual para igual com todas e todos em uma roda, colocava na defensiva aquelas que preferiam esconder a própria inteligência e opiniões, jogar os cabelos, e dizer coisas rasas e provocantes para “não assustar” os homens.
Longe de querer a atenção deles para si, Núria apenas dizia o que pensava, nem que para isso, fosse necessário discordar de alguém. Gostava de ouvir a opinião alheia e trocar impressões profundas sobre pontos de vista diversos. Infelizmente, isso soava para essas mulheres como uma forma de “se exibir”.
Esse tipo de cena foi criando uma espécie de esgotamento em Núria, e acabou deprimindo-a ainda mais. Na época em que ela esteve com Anderson, sobreviver no mundo dos amigos dele foi uma tortura sem fim para ela, que foi perdendo cada vez mais sua já escassa disposição e coragem para socializar.
Sabia que, intimamente, aquilo a afetava do mesmo jeito como quando era perseguida na escola. Fizesse o que fizesse, mudasse sua aparência, seu jeito de falar, interagir, e até mesmo de pensar, haveria reprovação e perseguição de todos os lados.
Não tinha sido melhor no mundo lésbico, um ano e meio antes, quase logo após o escândalo causado por Luana. Uma estudante de Medicina chamada Nathalia a procurou, aparentando preocupação com ela.
Dizendo-se indignada contra Luana, simbolicamente “levantando” a bandeira arco-íris, até se dispondo a ouvir e acreditar na versão de Núria sobre os fatos, o que ela procurava de verdade era carne fresca para sua longa “coleção”. Fazia aquele tipo de lésbica predadora, para quem era uma questão de honra não deixar de passar o rodo em ninguém na USP que tivesse pelo menos “um pezinho no brejo”, como ela dizia.
Nathalia foi seu primeiro beijo com uma mulher. Foi avassalador e apaixonante para Núria. Filhinha de papai, Nathalia a cobriu obséquios, levou-a a lugares incríveis, o que, temporariamente, fez bem à autoconfiança da estudante de enfermagem, depois da desilusão com Ingrid. Tão à vontade se sentiu, que cometeu a imprudência de revelar a Nathalia que ainda não tinha feito sex* com ninguém em sua vida.
Ao irem juntas pela primeira vez a um bar de classe média-alta só para mulheres, Núria estranhou os olhares de algumas amigas de Nathalia sobre si: mediam-na de cima a baixo, com um sorriso de canto de boca, e meneavam a cabeça. Os convites para dançar ou para ir a um canto mais reservado começaram a pipocar, do nada. Nathalia se aborreceu, a atmosfera começou a ficar tensa, a ponto de haver desentendimento entre a estudante e uma amiga, que alegou que Núria não era namorada, nem propriedade de Nathalia.
“Você tá fazendo isso porque tá doida pra ser a primeira a comer ela!” – a tal amiga atirou de chofre na mesa, diante de todas ali sentadas.
“Cala a boca, Isadora!” – Nathalia se irritou, mas havia algo de apreensivo em seu olhar, que Núria compreendeu imediatamente.
Ultrajada, desapontada, Núria não era capaz de traduzir em palavras o que estava sentindo. Baixou a cabeça, enquanto forte discussão rolava ao seu redor.
Não havia clima, nem oportunidade de tirar satisfação com Nathalia, ou com a amiga que a delatou, pois as duas pareciam empenhadas em trocar ofensas naquele instante. Só queria sumir dali o mais rápido possível. Núria se levantou e saiu de fininho.
Só parou de correr quando chegou à calçada, do lado de fora. Trincava os dentes de raiva, vergonha, e a velha sensação de ter sido passada para trás de novo. Logo em seguida, quem apareceu para consolá-la foi justamente Isadora, que também se ofereceu para levá-la para casa em seu carro.
“E por que eu deveria ir com você?” – Núria respondeu, irritada.
“Eu não vou me aproveitar de você. Fica em paz. Não concordo com o que a Nathalia fez. Acabei de brigar feio com ela por causa de nossas diferenças, você viu.”
“Não. Melhor eu ir sozinha. Valeu.”
“Você que sabe. Mas, pelo menos peça pra alguém da recepção da casa chamar um táxi de confiança, porque é perigoso ficar esperando aqui fora.”
Esse conselho Núria pelo menos decidiu seguir. Mas, no fim, o preço que o taxista estava cobrando era três vezes mais caro do que o normal. Era pelo horário e pelo fato de ir buscar alguém possivelmente bêbada ou alterada, disse ele ao telefone para a recepcionista.
“Mas eu praticamente nem terminei minha primeira bebida” – protestou Núria. O homem ao telefone foi irredutível. A recepcionista a olhava sem jeito, como se quisesse pedir perdão pelo inconveniente.
No fim, a contragosto, Núria acabou aceitando a carona.
A certa altura do caminho, pararam num posto de gasolina para abastecer. Isadora agia de maneira tão solícita, séria e respeitosa, que Núria sentiu uma pontada de remorso por passar a viagem muda e de cara amarrada. Insistiu em pagar metade do valor, mas Isadora, sorrindo benevolente, não aceitou.
Findaram o restante da madrugada conversando no carro, na garagem do prédio onde Isadora morava, em Higienópolis. A essa altura, Núria já dividia espaço com Ignez e suas patrícias, e não queria que a colega, toda certinha, a visse naquele estado, transtornada. A verdade é que Núria ficou bebendo quase todo o fardo de latas de cerveja que comprou na conveniência do posto, e Isadora – que pediu para ser chamada apenas de Isa – ouvindo seus desabafos contra Nathalia e contra o mundo.
Os primeiros raios de sol nasciam, quando Isa sugeriu que Núria subisse com ela para seu apartamento e descansasse. A estudante de enfermagem se recusou ebriamente, mas Isa apaziguou-a:
“Já disse que não sou como Nathalia. Além disso, moro com meus pais e meus irmãos, e não sou assumida.”
De fato, Isa apenas a levou para cima, deu-lhe roupas suas de dormir para que ela vestisse depois de um banho, e deixou que ela dormisse à vontade em sua cama, enquanto Isa deitou em um colchão no chão, ao lado. Ofereceu um café da tarde e um remédio para ressaca, assim que Núria despertou.
Temendo ter falado o que não devia enquanto tagarelava bêbada e chorosa para Isa, Núria não teve muita disposição para conversar desta vez. Além disso, Isa a olhava com um carinho especial inegável, que Núria não se sentiu compelida a retribuir. Despediu-se, depois de terminar e vestir a própria roupa de volta:
“Obrigada , e desculpe qualquer coisa...”
“Imagine! Estou aqui sempre que precisar.”
Dois dias depois, Isa seguiu-a no Instagram. Logo iniciou um chat, perguntando como Núria estava. Pediu seu whatsapp. Era sempre muito presente e atenciosa, e fazia Núria não se sentir tão só no dia a dia, com as bobagens engraçadinhas que conversavam, e memes que trocavam.
Apesar de agradecida, Núria não sentia nada além pela garota de família árabe. E foi só por esse sentimento de gratidão que aceitou, depois de muita insistência de Isa, sair com ela.
Em uma dessas vezes, chope vai, tequila vem, Núria ouvia respeitosamente a outra falar de si e de diversos assuntos. Isa era uma moça até interessante, sensível, cheia de energia, planos para toda a vida. Porém, um tanto precipitada e emocionada demais para o gosto de Núria.
Mesmo assim, levada pelas sempre inconvenientes sensações de solidão, desfeita, e pela necessidade desesperada de confiar em alguém, após mais algumas doses de tequila, foi com ela para o carro, e lá trocaram alguns beijos e carícias. Isa sugeriu que terminassem aquilo em um motel, mas Núria argumentou que ainda era cedo demais pra ela. Isa aquiesceu.
Nos dias seguintes, recebeu sem parar mensagens carinhosas de Isa no whatsapp. Ela dizia ter sentido uma conexão diferente e especial com Núria, que respondia o mais laconicamente educada possível.
Então Isa tomou uma atitude drástica: fez um post dissecando a etimologia do nome de Núria, algo do tipo: “’Nur’ (algumas letras árabes ilegíveis) significa ‘Luz’. Meus olhos se encheram com sua luminosidade desde que te conheci, (mais letras árabes que, jogadas no Google Tradutor, liam-se ‘minha Nouriya’)!”.
Núria, pega de surpresa após dias fora das redes sociais, ocupada com provas e estágios, estapeou a própria testa, abismada. E como se não bastasse tanta vergonha alheia, algumas das amigas, presentes na noite da confusão com Nathalia, colocavam lenha na fogueira nos comentários. Uma delas teve a audácia de marcar o arroba de Núria, fazendo piadinhas e exigindo dela uma resposta à altura.
Núria foi imediatamente para o whatsapp:
“Isa, o que é isso?”
“Desculpa. Já apaguei o comentário e pedi pra Michele parar de te marcar, porque alguém da minha família também pode ver”.
“Esse não é o ponto. Quero saber pra quê tudo isso?”
“Eu gosto de você.”
“Meu Deus do céu...”
“Olha, desculpa. É que eu queria dizer o que eu sinto de algum jeito, porque você nunca me dá abertura. Eu pensei que, naquele dia, você finalmente tinha me dado, mas você anda tão fria ultimamente.”
“A gente só saiu algumas vezes, só rolou uns beijos uma vez, eu não te pedi em casamento!”
“(emoji triste).”
“Eu acho você uma pessoa incrível, uma menina maravilhosa, e sou eternamente grata por ter feito por mim o que fez quando eu mais precisava. Mas não sinto a mesma coisa que você. Não tenho intenção de seguir adiante nisso. Me desculpe.”
“Estar lá quando você precisava inclui também ser uma boca pra você beijar porque estava carente, sozinha e abandonada, como você sempre diz?”
Essa doeu em Núria, porque era não mais que a verdade nua e crua. Sentiu-se ainda pior, e não sabia como prosseguir com a embaraçosa conversa.
“Eu não quis dizer isso...”
Mas não adiantava tentar se justificar. Isa tinha razão. O orgulho ferido, o temperamento antissocial e instável, a necessidade de se autoafirmar como mulher depois da humilhação causada por Nathalia, por Ingrid – e por toda uma vida –, a tinham feito deliberadamente ajudar a construir os castelos de areia que a outra criou.
Só lhe restou ler calada a torrente de acusações e lamúrias que Isa verteu até a última gota. Ao fim de tudo, Núria só teve cara para escrever: “Eu sinto muito. Espero que você fique bem, de verdade. Se puder, me perdoe. Se não puder, respeito sua escolha. Seja feliz.”
Bloqueou e excluiu Isa de seus contatos, e deu um tempo nas redes sociais depois desses incidentes. Talvez esse fosse um dos motivos pelos quais, um ano e meio depois, Núria deu uma chance a um relacionamento sério com um homem.
Jordana iniciou uma rotina de exercícios intensos, até mesmo para ir ao trabalho. Andava de bicicleta cerca de sete quilômetros de sua casa até o hospital psiquiátrico, e depois que saía do trabalho, dava uma imensa volta, repetindo para si mesma a frase que ouvira de um bodybuilder, dependente também em tratamento: “Quer cocaína? Toma endorfina!”
Algumas vezes por semana ia até o CAPS AD se encontrar com Núria no fim de expediente da namorada – e para dar um alô a alguns seus velhos conhecidos que ainda trabalhavam ou se tratavam lá. Prendia então sua bicicleta a um suporte que Núria mandou adaptar ao para-choque de seu carro, e saíam juntas.
No dia seguinte à sua alta, Jordana foi levada para conhecer o espaço pessoal de Núria. Encantou-se com a simplicidade e o bom gosto do pequeno apartamento. Achou muito engraçado quando foi orientada a tirar os calçados e escolher entre um par de pantufas e um par de chinelos de borracha para circular dentro da quitinete.
“É para poupar meu tempo de ter que limpar a toda hora qualquer sujeira vinda de fora” – explicou Núria.
“Estou vendo que vou ter que sambar miúdo aqui com essa mulher cheia de mania de limpeza e organização” – Jordana abraçou-a por trás e beijou-lhe o pescoço, brincalhona.
“Ué, e com sua mãe não é a mesma coisa? Ela é super organizada e limpa, que eu sei muito bem...”
“Ai ai... eu achava que era besteira de psicólogo essa coisa de Freud, mas parece que estou namorando com minha mãe mesmo...” – Jordana debochou afetivamente – “Ela só não exige que a gente tire os sapatos...”
“Isso incomoda você?” – Núria virou-se de frente para ela, ainda dentro do abraço, com um beicinho preocupado.
“Não, meu amor. Sua casa, suas regras. Eu respeito isso, e acho até inteligente. É que eu não sei se dona Fátima iria aderir à ideia de ficar trocando de sapato, ela é meio impaciente. Ela iria preferir limpar várias vezes por dia o chão, como ela faz, aliás.”
“E a senhorita, ajuda ela, ou só ajuda a sujar mesmo?”
“Sempre estou na lida ao lado dela, nos meus dias de folga. Pode perguntar pra ela: a gente se junta, eu, ela, meu irmão, e faz um faxinão, do teto ao chão. Aí, rimou!”
Núria quedou-se imóvel, embevecida por aqueles olhos castanhos brilhantes e aquele riso doce. Não pôde conter seus dedos de acariciar os lábios perfeitamente desenhados, um pouco mais claros que a cútis suave de sua namorada.
Jordana também parou, seduzida.
“Que foi, nunca me viu antes?” – tentou diminuir com um gracejo a gostosa tensão que se fez.
“Vi, mas é como se visse pela primeira vez, todas as vezes!” – murmurou Núria.
Sem que sentissem, foram andando juntas, abraçadas, como numa dança lenta, até o sofá da sala conjugada.
Com toda a naturalidade, Núria deixou seu corpo se estender, enquanto Jordana pairou acima dela, meio ajoelhada entre as pernas de Núria, um cotovelo na beirada do sofá e uma mão apoiada no encosto.
“Eu vou ter que quebrar minhas próprias regras e te contar meu segredo...”
Jordana apenas ergueu as sobrancelhas, interrogativa. Núria deixou escapar um risinho acanhado.
“Você até agora nem mesmo se perguntou por que a gente não... cê sabe né?”
“Na verdade, me pergunto isso o tempo todo. Afinal, você praticamente queria isso toda vez que ia me visitar, que eu até achei estranho que não estivesse com esse fogo todo agora que a gente pode...” – Jordana respondeu suavemente.
“Está bem” – Núria assumiu um ar solene, de brincadeira – “Eu, Núria Salvattore Guerra, tenho vinte e dois anos de idade, e declaro que sou oficialmente virgem.”
De início, Jordana apenas quedou boquiaberta, buscando nas expressões de Núria qualquer mínimo sinal de blefe. Ao se dar conta de que era sério, sua mente só pôde pensar em mais uma piada para responder:
“Só pra constar: a gente não tá falando de horóscopo aqui não, né?”
“Claro que não!” – Núria explodiu num riso de alívio – “É que... ai, vou ter que te contar o porquê de não ter dito isso antes...”
E foi sincera. Mencionou cada experiência afetiva e quase sexual que teve, as tentativas malsucedidas com o ex-namorado, e até a alusão de sua antiga psicóloga a um possível abuso recalcado no fundo de suas memórias – apesar de Núria não acreditar muito nessa teoria. Era a primeira vez que se abria a esse ponto a alguém que não fosse profissional de saúde mental.
Haviam puxado o assento retrátil do sofá. Nesse momento, Jordana a ouvia deitada de lado, um cotovelo dobrado sobre o estofado, a cabeça contra a palma da mão. Núria permaneceu de barriga para cima, falando e falando, os olhos, ora em Jordana, ora no teto.
“Uau...” – Jordana murmurou ao fim de tudo.
Núria mordeu os lábios, desconfortável.
“Eu adorava te provocar, mas era pra ver se você... quer dizer, se eu era... capaz de ser sexy pra alguém sendo eu mesma, sem que essa pessoa ficasse, de repente, afoita pra destruir meu cabaço, me ganhar como um troféu. Se nem mesmo com mulheres eu tive sorte... Eu não era vista como um ser humano por ninguém com quem me envolvi, entende? Bem, teve a Isa, mas não gostei da ideia de fazer isso com alguém que não me atraía, só por fazer. Mas, não se sinta ofendida, por favor.”
Jordana sorriu de leve, a testa franzida, balançando a cabeça.
“Isso não me ofende de jeito nenhum. É que... nossa, a sua vida e a minha são tão diferentes! Eu tô até me sentindo meio mal agora, porque eu já fui essa ‘caçadora’ de mulheres. E no meu caminho, encontrei algumas virgens. Isso sem contar as héteros curiosas que queriam saber como era com outra mulher... Enfim...”
“Você deve tá me achando uma caretona agora, né?”
Tomando a mão de Núria, Jordana beijou-lhe as pontas dos dedos e a palma, e disse, muito séria:
“Pelo contrário: eu sinto que agora, mais do que nunca, tenho que ter responsabilidade com os seus sentimentos. Quero que essa experiência, se você quiser me dar a honra de compartilhá-la comigo, seja a melhor possível. Sem pressão, sem ‘forçação’ de barra. Isso não é caretice.”
“Se eu quiser?” – Núria teve um meio sorriso incrédulo.
“Sim, se você quiser. Eu nunca passei por essas fitas pesadas que você passou, mas se tem uma coisa que eu entendo bem é que muitas mulheres são incentivadas a fazer o que não gostam, só pra agradar. Isso também acontece em relacionamento lésbico. É bem mais raro, mas acontece. Nesse sentindo, não me sinto tão culpada de ter servido de válvula de escape pra algumas delas, tá ligada? Homem tem muito isso de querer que elas atendam os desejos dele, mas não tá nem aí pros delas.”
“Mas você continuaria comigo, mesmo se eu não quisesse?”, Núria quase deixou escapar, mas calou-se.
Aquela mulher, de sorriso franco, digno de uma capa de revista, tinha em seus olhos de âmbar escuro algo de gentil, e ao mesmo tempo, misterioso e fugidio, que fascinava Núria. Era como se Jordana, com sua beleza impecável, sua capacidade espontânea de conquistar todos ao redor em seu estado sóbrio e natural, fosse, às vezes, um ser inatingível para ela. Como se qualquer outra mulher, muito melhor que ela, Núria, – alguém mais descolada, equilibrada, sem os transtornos mal resolvidos que Núria ainda não tinha coragem de revelar – fosse arrebatar-lhe a namorada a qualquer momento.
Ou ainda pior: e se Núria fracassasse, sobrecarregasse sua amada com seu destempero emocional, seus dramas, suas crises, sua melancolia e sua agressividade latente, e Jordana sucumbisse ao vício de novo?...
Sentiu uma súbita vontade de chorar. Não deixou as lágrimas que marejavam-lhe os olhos caírem.
“Ah, Jordana, será que eu sou a melhor escolha para estar ao seu lado nesse caminho de pedras que você vai percorrer lá fora e aí dentro de você? Se você soubesse como eu sempre tive medo do mundo... E agora tenho mais ainda de um mundo sem você!...”
Jordana notou imediatamente a dor nos olhos molhados da amada e segurou-lhe uma mão, enquanto deslizava os dedos pela bochecha de Núria.
“O que foi?”
“É que eu... nunca tive alguém que mostrasse tanta consideração por mim desse jeito... nunca... desculpa! Eu...” – Núria tentava sorrir para disfarçar.
Sem pensar, Jordana fechou-a em um abraço.
“Antes de se preocupar em se entregar para mim, saiba que eu estou entregue a você. O mundo maltrata, derruba, leva a gente até o inferno às vezes, mas é aqui e agora que a gente vai começar a se reconstruir para enfrentá-lo. Juntas. Fazer amor não tem que ser uma obrigação, nem um trauma pra você. Certo?”
Fez uma pausa, as respirações sincronizadas, e continuou:
“Você sabe melhor do que ninguém o que eu, como adicta, estou enfrentando desde que comecei a ficar limpa. Lugares, pessoas, qualquer coisa que me puxe feito um diabo para o vício, eu tô me esquivando, fugindo. E é na sua força de estar aqui, viva, corajosa, afetuosa, apesar de tanto perrengue que cê passou nessa vida, que eu também me inspiro. Quero que saiba disso.”
“Tem coisas que eu ainda nem tenho coragem de te contar...”
“Tudo na hora certa. Não precisa, se não quiser.”
Núria virou-se de lado, ficando frente a frente com a namorada. Enlaçou-lhe a cintura e aconchegou-se na curva entre o pescoço e o ombro de Jordana, roçando-lhe o nariz e os lábios na pele.
E assim, encontravam-se por alguns dias durante a semana, e passavam os finais juntas, na casa de uma ou de outra, assistindo filmes e séries nos streamings, como em um ninho suave e confortável. Toques sub-reptícios nos seios de uma, entre as pernas de outra, beijos molhados e demorados na boca e em regiões inexploradas e não tão óbvias dos corpos, iam, passo a passo, abrindo o caminho que ambas desejavam percorrer sem pressa e sem pudor. Era como saborear um fruto proibido apenas com a ponta da língua.
Ou como voltar à adolescência e às primeiras experiências eróticas mais uma vez.
Já fazia pouco mais de duas semanas desde a alta de Jordana.
Às vezes, caso não estivesse muito ocupada com o mestrado que acabara de iniciar, ou muito cansada pelo trabalho, Núria acompanhava a namorada em seus passeios de bicicleta pela cidade.
Em um fim de tarde, numa de suas várias andanças, Jordana parou para descansar e comprar uma garrafa de água em uma cafeteria. Escutou, vindos de uma porta aberta logo ao lado, gritos de comando ritmados e barulhos sincronizados. Logo entendeu: era uma academia de artes marciais.
Por curiosidade, ao sair, olhou a placa acima da porta do imóvel ao lado da cafeteria, e viu:
박운호도장- 태권도
Dojang Park Woon Ho - Taekwondo
Sejam bem-vindos.
Como ainda tinha um tempo até dar a hora de se encontrar com Núria, retirou uma toalha da mochila e enxugou o rosto, o pescoço e os braços suados. Em seguida, entrou no local.
Um recepcionista a cumprimentou cortês e animado. Ela perguntou se podia guardar a bicicleta ali e dar uma olhada na aula.
“Fique à vontade. Coloque sua bike ali perto daquelas outras dos alunos.”
Atrás de uma divisória de vidro emoldurada em madeira, adolescentes e jovens adultos repetiam movimentos rápidos, vigorosos e precisos com os braços, e principalmente com as pernas, recebendo ordens em coreano de um mestre. Alguns chegavam a dar chutes no ar em um ângulo quase vertical.
Jordana sentou-se em um dos bancos colocados ali justamente para que visitantes pudessem assistir aos treinos. Tão impressionada ficou, que nem viu o tempo passar. Seu celular tocou.
“Oi, meu anjinho! Calma, não me esqueci de você. É que, neste exato momento eu estou vendo algo incrível!...”
Fim do capítulo
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thays_
Em: 16/06/2023
Que capítulo mais gostoso de ler! Amo essas duas juntas e como as duas se acolhem e cuidam uma da outra, da muito quentinho no coração. Estou adorando essa nova fase da Jordana, acho que se ela se "viciar" em atividades físicas será uma forma dela mudar o foco. Embora, tal como ela disse uma vez, vai ser algo que ela a vida toda vai ter que lidar, um fantasma q fica ali a espreita a qualquer deslize. Estou amando essa história! Ando sumida porque estou em obras por aqui, com a mão na massa literalmente kkk estou montando meu espaço pra trabalhar sozinha, sem chefe me enchendo o saco e mandando em mim. Sinto que esse é o momento da minha vida em que os humilhados serão exaltados kkkkk ansiosa para o próximo capítulo! Até breve!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 12/06/2023
Legal né " Mente Sã num corpo são."
Billie Ramone
Em: 13/06/2023
Autora da história
Corpo são sim, mente sã.... ainda tem um caminho a percorrer kakakaka!
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Billie Ramone Em: 17/06/2023 Autora da história
Bom saber que o sumiço foi por razão de "pedreiragem" kakakaka... nem sei se essa palavra existe, mas agora tá aí :))))))))) meus parabéns por demitir esse chefe chato, a propósito. e que os humilhados não sejam execrados, nem assaltados kakakakakakakakakakaka (quem viu os memes sabe).
Mais do que viciar a Jordana em atividades físicas, tenho planos ainda maiores e gloriosos pra ela. quem viver, verá... (fazendo a misteriosa). e, pra mim, cuidado, acolhimento e lealdade, mesmo se as personagens não tivessem os problemas de saúde que têm, são fundamentais, no matter what.
que tudo dê certo pra vc nessa sua nova fase! :)))))))))))))))))))