As pessoas ao nosso redor começaram a nos olhar de forma assustada, como se eu tivesse recebido um diagnóstico muito ruim. Amanda me envolveu em seus braços, beijando meus cabelos e me apertou contra seu peito.

- Meu amor, o que houve?

Eu não consegui responder. Ter um filho era a última coisa que queria naquele momento. O mundo cruel em que vivíamos não era o palco mais agradável para colocar um filho nele.

- Eu preciso fazer um exame de sangue. – Disse enxugando minhas lágrimas. 

- O que a médica te falou? É grave o que você tem?

- Depende do ponto de vista. – Respondi.

- Duda, pelo amor de Deus, o que ela te disse?

- Ela... acha... quer dizer... precisa confirmar ainda... ela não tem certeza... ai vou fazer um exame e....

- Amor... – Ela levantou meu rosto. – Fala logo. O que ta acontecendo?

Eu respirei fundo. Ela ia precisar saber mais cedo ou mais tarde. Então soltei:

- Ela acha que tô grávida.

Amanda ficou paralisada olhando para mim, imóvel, sem reação alguma.

- É sério? Isso é impossível. Não tem como. 

- Eu sei, eu disse isso. Eu expliquei tudo pra ela. Falei dos seus hormônios e tudo mais.

- Você tem certeza?

- Não, mas todos os sintomas são de início de gravidez...

- Eu não estou acreditando. 

- Eu também não.

- Não é possível que seja meu...

Assim que aquela frase saiu por sua boca, uma onda de raiva e tristeza me atingiu profundamente. Como era possível ela falar algo desse tipo? Eu dei as costas e sai andando para longe, pra fora dali, para longe de tudo aquilo. Que se foda.

- Amor... espera! – Ela segurou meu ombro.

- Como você se atreve a falar um negócio desses? Depois que tudo que passamos?

As lágrimas escorriam furiosamente por meus olhos. Eu me desvenciliei dela indo até o carro no estacionamento. Eu andava a passos largos. Ela estava atrás de mim, tentando me alcançar. Chutei o pneu, tomada pela fúria. Senti então seus braços me envolvendo de maneira carinhosa e firme. Eu tentei me soltar, mas ela me segurou contra seu peito.

- Me perdoa... Me perdoa... Eu sei disso, meu amor. Eu só estou muito surpresa. Muito. 

- Não significou nada pra você? Tudo o que fizemos? – Perguntei ainda tentando me soltar. – Você sabe de todos meus bloqueios... Você acha que eu seria capaz de deitar com outra pessoa qualquer por aí e fazer metade das coisas que fizemos? Você não consegue perceber o quão absurdo isso é? Cogitar uma merd* dessas de mim? Porr*, Amanda!

Ela continuou me segurando de forma doce, carinhosa, pedindo desculpas. As lágrimas escorriam como uma cachoeira por meu rosto.

-Eu tô muito magoada com você. De verdade. Eu quero ir pra casa.

- Mas e o exame?

- Que se foda. Eu só quero sair daqui. Me solta.

Senti meu celular vibrar em meu bolso. Era só o que me faltava. Tinha certeza de quem era do outro lado, mesmo sem atender. Amanda afrouxou o abraço, eu vi o visor escrito “Mãe”.

- Não pode acontecer nada que já vem ela me ligar.

Eu ignorei a chamada.

O celular de Amanda começou a tocar na sequência.

- Não atende. – Mandei, mas ela me ignorou e atendeu.

Ela então se afastou, andando de um lado pro outro com o telefone no ouvido. A ligação demorou um pouco. Fiquei encostada contra o carro, de braços cruzados, pensando no que ia fazer da vida se eu realmente estivesse grávida. Enxuguei minhas lágrimas. Aqueles minutos foram cruciais para que eu conseguisse respirar fundo e colocar as idéias no lugar.

Ela desligou o telefone e caminhou até mim.

 - Ela só queria saber se chegamos bem de viagem. Por eu ser nova de carta, essas coisas. Perguntou se você estava bem, disse que estava um pouco indisposta.

- E ela acreditou?

- Sim. – Ela respondeu e eu revirei os olhos, ainda de braços cruzados contra o carro. - Não deixa de ser verdade.

Ela se aproximou e tentou me beijar, eu virei o rosto, magoada. Descruzou meus braços, me trazendo em direção ao seu peito. Deixei-me ser abraçada, deixei de relutar, porque acima de tudo eu precisava muito dela, precisava muito daquilo e toda aquela raiva foi se evanescendo. Meus braços também a envolveram e as lágrimas voltaram. 

- Me perdoa, amorzinho. Eu só estou realmente muito surpresa. Eu não quis falar no sentido de achar que você saiu com outra pessoa, isso jamais, eu confio minha vida a você... Falei no sentido de eu não conseguir acreditar que possa ser verdade. Eu tenho completa consciência de que o que temos é muito especial... É muito puro, real, sincero... Eu só não me expressei direito. Me perdoa, por favor. Eu não quero que fique magoada comigo. Não agora. 

- Tá. – Me limitei a responder, fungando. – Eu quero ir pra casa. 

- Amor... você precisa saber... eu preciso saber... 

- Eu tô com medo. Eu não sei se quero saber a verdade.

- E vamos adiar até quando? Não sei você, mas eu não vou conseguir dormir até descobrir.

- Você quer fazer um teste de farmácia? – Sugeri. Eu só queria sair correndo de tudo aquilo. 

- Pra que ir até a farmácia se estamos aqui com o pedido na mão? Vem, eu vou contigo. – Ela passou os braços ao redor de meus ombros e lá fomos nós de volta, todos nos olhando de novo, pareciamos a atração daquela noite. Dessa vez fomos direto para a enfermaria e entreguei a guia. Aguardei mais longos minutos até ser chamada para colher a amostra e a enfermeira nos disse que em até duas horas sairia o resultado.

Amanda queria comer alguma coisa, estava super ansiosa, fomos numa barraquinha de cachorro-quente em frente a UPA. Eu não consegui colocar nada na boca de tão nervosa que estava, apenas tomei um gole do seu refrigerante. Minhas mãos estavam tremendo. A noite estava fria. Depois que ela comeu, fomos para o carro para passar o tempo e ficamos por lá em silêncio. Tocava Sade no rádio, Kiss Of Life.

There must have been an angel by my side (Devia haver um anjo ao meu lado)

Something heavenly led me to you (Alguma coisa celestial me conduziu até você)

He led me to you (Ele me conduziu até você)

- Meu chefe vai me matar quando descobrir. Agora sim que ele me manda embora.

Sua feição mudou no mesmo instante.

- Eu já tô por aqui com esse cara. Ele é um ogro narcisista que não tá nem ai com os funcionários, não tá nem aí com você. Não sei como você tá lá tanto tempo agüentando desaforo. Se ele te mandar embora que se foda. Você fala e age como se estivesse sozinha nisso tudo, porr*, eu to contigo, Duda. Eu sou sua mulher. Eu vou me formar agora no final do ano, provavelmente vou ser promovida, meu salário vai melhorar. Eu vou te ajudar com tudo, absolutamente tudo.

Eu me enfiei em seu abraço após ouvir aquelas palavras.

He built a bridge to your heart (Ele construiu uma ponte para o seu coração)

All the way (O caminho todo)

How many tonnes of love inside? (Quantas toneladas de amor por dentro)

I can't say (Eu não sei dizer)

- Isso te deixa tão mal assim? – Ela perguntou num tom de voz baixo. Eu inspirei profundamente seu cheiro de roupa limpa, o perfume gostoso de sua pele, do seu cabelo. – Não te deixa nem um pouquinho feliz? Pensar num bebezinho nosso?

Ela falando daquele jeito... me fez sorrir pela primeira vez naquela noite. E foi como se me desarmasse completamente, por mais absurdo que aquilo parecesse na minha cabeça, a ideia de eu gerar uma criança. 

When I was led to you (Quando eu fui conduzida até você)

I knew you were the one for me (Eu soube que você era a única para mim)

I swear the whole world could feel my heartbeat (Eu juro que o mundo inteiro podia sentir meu coração batendo)

When I lay eyes on you (Quando eu coloquei meus olhos em você)

You wrap me up in (Você me envolveu toda)

The colour of Love (Na cor do amor)

- Eu vou cuidar direitinho de você. – Ela beijou meu cabelo. – Igual tenho cuidado. 

- Eu bebi horrores esses últimos dias... será que vai fazer mal...?

- É só não beber mais nada a partir de agora... não tem problema... você não sabia...

- Quanto tempo será que faz?

- Eu não tenho ideia... Nossa vida sexual anda bem agitada ultimamente... - Beijou meus lábios e dessa vez eu me permiti ser beijada. Suas mãos subiram pelo meu rosto, meu cabelo, depois desceu até minha nuca, num carinho gostoso.

- Você fica animada com essa possibilidade?- Perguntei.

- Você sabe que sou suspeita pra falar... Meu sonho é ser mãe. E ainda mais vivenciar tudo isso com você... – Estremeci com aquelas palavras. – Quer dizer, eu não estava esperando nem um pouco por isso, jamais, eu juro pra você... Se eu soubesse que eu poderia te engravidar eu seria a primeira a falar pra usarmos proteção. Pra mim as chances eram nulas, completamente inexistentes, tanto que estou até pagando um lugar pra se futuramente quisesse poderia ter um filho biológico... Porque eu jurava que jamais seria possível de outra forma. Jamais.

- A culpa não é sua. Aconteceu.

- Você não tá brava comigo por isso?

- Não dá pra chorar pelo leite derramado. Literalmente nesse caso.

Ela riu alto e balançou a cabeça negativamente.

- Só você pra brincar com uma coisa dessas, Duda...

Eu me ajeitei com a cabeça em seu colo e me deixei ficar ali junto a ela, cheirei seu pescoço. Eu precisava tanto, mas tanto dela... Ela ficou ali só me enchendo de carinho.

- Eu adorei aquilo que fizemos... – Ela disse cortando o silêncio, num tom de voz baixo.

- O que?

- No sofá. Na casa das meninas.

Eu sorri.

- Eu também. – Beijei seus lábios. – Eu nunca pensei que você tivesse coragem de fazer algo assim.

- Eu tava com muito tesão. Não deu pra segurar...

- Eu gosto disso. Quando você toma a iniciativa.

- Acho que estou me sentindo mais confiante agora. 

- Eu gosto de saber disso. Não precisa se segurar comigo...

Ela sorriu e me beijou novamente. You gave me the kiss of life, como na música. Por um momento esqueci de tudo que nos rodeava, todas as preocupações que tinha na cabeça. Me deixei apenas ser levada por ela. E ficamos ali deixando os minutos se arrastarem lentamente. 

Voltamos para a recepção mais tarde, entreguei meu documento e lá foi impresso o resultado para que eu entregasse a médica. Eu não tive coragem de olhar. Entreguei o papel na mão de Amanda. Suas mãos tremiam enquanto corria os olhos pelo exame. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela me abraçou forte, me esmagando. Ela transbordava felicidade.

- E ai? – Perguntei num sopro de voz.

- Deu positivo, meu amor.

O primeiro medo me veio, de muitos que ainda viriam, será que eu seria capaz de cuidar de uma criança? 

Voltei para a sala da médica depois de aguardar mais algum tempo até ser chamada. Amanda entrou comigo dessa vez. Ela estava radiante, seus olhos brilhavam. Eu queria sentir aquela mesma felicidade que ela naquele momento, mas o medo era mais forte do que tudo em minha cabeça. A médica nos encaminhou para procurarmos uma UBS e começarmos o pré-Natal.  

Pronto, dúvida sanada. Mas isso não tinha feito aquela sensação estranha ir embora. Eu fui a viagem toda de volta pra casa em silêncio. Entramos e os cachorros vieram nos receber animados como sempre. Fizeram festa para nós e depois saíram correndo para o quintal. Amanda fechou a porta.

- Vem, amor, vamos pro banho. 

Eu me deixei ser guiada por ela. Tiramos nossas roupas, ela ligou o chuveiro bem quentinho e entramos. Ela lavou meu cabelo, depois ensaboou minhas costas. Virei em direção a ela e ela me beijou.

- Vai dar tudo certo. – Ela disse.

- Eu tô apavorada.

- Eu sei. É completamente normal você se sentir assim. 

- Como você pode estar tão calma?

- Eu não sei. Eu só estou muito feliz.

- Você só tem 25 anos. É isso mesmo que você quer pra sua vida? Ficar comigo? Ter um filho comigo?

- Eu nunca tive tanta certeza de algo em minha vida. Desde que te conheci parece que estou vivendo um sonho... – Ela fez uma pausa. Pensativa. – Você pensa em... tirar? 

- Não. – Respondi prontamente. – Claro que não. Eu só estou com muito medo, mas não a ponto de querer acabar com tudo. É uma junção minha e sua... É um pedacinho seu crescendo dentro de mim... Ainda mais depois de toda ciência dizer que isso não era possível... Eu só não sei se vou ser uma boa mãe. E eu tenho medo também da reação das pessoas. Vamos ter que ficar nos explicando o tempo todo, você se expondo, não sei se você se sente confortável com isso.

- Amor... Pessoas têm filhos. Casais homossexuais com duas pessoas cis também tem filhos. Casais hetero, homo, bi, pan, etc... todo mundo pode ter filhos por inseminação, fertilização, adotados ou até de forma convencional. E nenhuma opção é mais importante ou válida que a outra. Vão nos tratar normalmente. 

- A questão não é exatamente essa.

Nós terminamos nosso banho de higiene, nos enxugamos e fomos pro quarto.

- Você tem medo que as pessoas descubram que eu que te engravidei? Porque você é toda masculina e tudo mais?

- É. – Respondi com vergonha. – Agora todo mundo vai saber. 

- Que eu tenho te comido bem gostoso? – Ela disse num tom baixo, usando aquele tom de voz que ela sabia que mexia demais comigo. Ela se deitou ao meu lado. Eu me virei de costas pra ela e ela me abraçou de conchinha. Beijou meu pescoço arrepiando meu corpo inteiro. Eu me limitei a fechar os olhos, tentando ignorar aquelas sensações entre minhas pernas.

- É. Eu não queria que ninguém soubesse disso. É algo só nosso.

- Ou você não quer que descubram que eu sou trans?

- Não, não tem nada a ver com isso. É só que  o fato de eu gerar uma criança... isso dá uns bugs na minha cabeça, sabe.

- Nem todas as mulheres têm o sonho de ser mãe... e está tudo bem. Eu respeito isso.

- Não é só isso, sabe. É mais que isso. Eu não sei te explicar. É só muito estranho. Meu corpo vai começar a mudar. Meus seios vão crescer. Uma criança vai me chamar de mãe. Isso tudo é muito louco. Parece muita coisa pra minha cabeça.

- Meu amor, um dia de cada vez. Uma angústia por vez. Não esquece que eu to contigo e não vou sair um só segundo do seu lado.

Fim do capítulo