Capitulo 8 - De médica, enfermeira e louca...
Eram quase onze e meia da noite. Depois daquela prova dificílima no final do quinto semestre do curso de Enfermagem, Núria só queria tomar um banho e cair na cama, mas o sofá da sala pareceu tentador.
“Só por uns minutinhos. Vou pedir pra Luana me chamar quando ela chegar...”
Mandou uma mensagem para a companheira de apartamento, largou a bolsa na mesinha de centro e caiu de bruços, desmaiada. Ali ficou até quase às nove da manhã do dia seguinte.
“Caralh*... Depois ela vem me pedir favor com aquela cara de pau...”
Desde o início do curso, era a quarta pessoa que dividia o imóvel com Núria, e a quarta decepção. Assim como as outras três anteriores, Luana chegou toda falante, extrovertida, prestativa e curiosa: quatro “qualidades” que Núria passou a odiar.
Não que não gostasse de pessoas cooperativas, mas geralmente, quem sempre chegava dizendo toda peremptória “Pode contar comigo para o que precisar” era, via de regra, a primeira a dar para trás quando Núria pedia um favor simples. Era batata, nunca falhava!
Lavou o rosto, escovou os dentes, juntou suas coisas voando numa grande bolsa, e pegou um pão de queijo frio e duro, uma banana e uma maçã para comer no caminho. Como gostaria de ter Ignez ou Cassia para dividir a quitinete caríssima e minúscula no Jaguaré, mais ou menos perto da universidade! Bem, tudo em São Paulo era caro feito o inferno, ela aprendeu desde cedo.
Retomando a linha de pensamento, bem melhor seria dividir o cafofo com a colega boliviana, ou a descendente de chineses, que eram muito mais quietas, porém, eficientes; faziam tudo sem que nenhuma professora, professor ou veterana pedisse duas vezes, e sem interromper o serviço para ficar no celular ou de conversa fiada.
Núria também era esse tipo de aluna/estagiária e, por isso, só tinha essas duas colegas como uma espécie de “amigas” mais próximas da faculdade. Mas Cassia já vivia com sua abastada família, e Ignez dividia um apartamento com uma irmã e uma conterrânea da Bolívia, o que, para ela, era mais conveniente pela questão cultural e idiomática.
Jurou que essa seria a primeira e a última vez que chegaria atrasada no estágio. E também jurou que seria a última vez que confiaria na “prestimosidade” de Luana, e de outras pessoas falastronas como ela.
Seu telefone tocou, enquanto ela se equilibrava em pé no ônibus, segurando na barra de cima.
“Oi, professora, me desculpe. Já estou a caminho. Estou bem, não aconteceu nada. Sim, está tudo bem, de verdade. Já estou no ônibus, logo mais chego aí. Obrigada. Tchau.”
Quase meia hora depois, ela vestia seu jaleco, colocava o estetoscópio no pescoço, as canetas e o caderninho de anotações na mão, e corria para o centro cirúrgico do hospital.
“A noite deve ter sido boa, hein?” – cutucou uma enfermeira contratada do hospital assim que a viu – “Vamos, a Marcela está te esperando.”
Núria, encarando-a friamente, nem se dignou a retrucar, pois sabia que, pelo menos pela professora, era tida em alta conta. Não mentiria à sua mestra para justificar seu atraso, mas também não daria satisfação a mais ninguém.
Naquela manhã ela não pôde assistir a uma cirurgia, já que chegou durante o andamento da mesma, mas ao menos pôde acompanhar o pós-cirúrgico de vários pacientes.
O dia estava anormalmente agitado. Por motivo nenhum, pacientes tranquilos entraram em crises emocionais; dois que, aparentemente, estavam se recuperando bem de suas cirurgias, foram levados para a UTI, ambos apresentando repentina sepse; médicos cirurgiões discutiram em voz alta entre si, em pleno corredor do centro cirúrgico, quase indo às vias de fato; e um paciente psiquiátrico, que passou por uma apendicectomia durante a madrugada, morreu de hemorragia interna, depois de dar um jeito de escapar da contenção em seu leito na sala de recuperação, bater em duas enfermeiras e derrubar uma terceira – a quem Núria ajudou a se levantar, pois estava bem ao lado.
“Hoje tá um dia de cão! Parece que todo mundo, além daquele paciente, resolveu ficar louco!” – agastou-se a professora Marcela, quase arrancando os cabelos de tanto passar a mão neles.
No fim do estágio, Núria passou em casa, tomou um longo banho, pensando debaixo da água que iria comer tudo o que visse pela frente, antes de ir para a aula. Nem um lanchinho teve tempo de fazer no hospital, mas, mesmo que tivesse, seu dinheiro estava contadíssimo, moeda por moeda, e ela não podia comprar nada pelas imediações.
De alguma forma, ali, sob o chuveiro, sentiu algo meio familiar, como há anos atrás. Algo prestes a quebrar dentro de si.
Amava o curso que fazia, mas encontrava-se ali, naquela selva de pedras cara, quase sem apoio nenhum. O estágio pagava um salário que apenas bastava para suas despesas essenciais, e os pais dela lhe enviavam o que podiam a cada mês, mas fazia dois meses que não mandavam nada.
“Precisamos ajudar sua irmã também, agora que ela vai ter outro filho” – justificaram, apesar da família do pai da criança desta vez ser podre de rica.
Onde foi parar aquela preocupação toda em deixá-la sozinha e desamparada numa megalópole custosa e perigosa, assim que ela se estabeleceu ali e eles voltaram para casa?
Fora a relação cordial e solidária com Ignez e Cassia durante as aulas e estágios, não tinha nenhum amigo de verdade. Isso não era uma novidade em sua vida, mas naquele momento, tudo pareceu ter um peso muito, mas muito maior...
As companheiras de apartamento que vieram antes, foram embora, sem mais nem menos. Uma chegou a alegar o absurdo de que desistiria do curso de Química e voltaria para sua cidade, pensando que Núria seria cega ou burra de não vê-la na mesma sala que a sua, assistindo aulas de algumas matérias em comum, pelos semestres seguintes.
Nenhuma saiu de lá brigada, mas também não escondiam que estavam satisfeitas com isso.
Com Luana era diferente. A estudante de Educação Física era toda cheia de sorrisos e uns papos de que tinha muito em comum com Núria, que ambas eram iguais e não tinham nada a ver com pessoas “normais” – seja lá o que isso significasse. Veio forçando a amizade para valer, não se cansando de louvar, sempre que podia, a inteligência e organização de Núria. Falava muito de si, de seus feitos pequenos e grandes, seus relacionamentos afetivos, seus rolos, seus delírios de grandeza... Aliás, a única coisa que fazia era falar de si!...
“Mas você pode confiar em mim, eu tô aqui para te ouvir, tá? Quero muito ser como uma irmã para você, seria uma honra para mim!” – Luana disse em um tom sério e comovido, segurando as mãos de Núria, que acabou caindo na armadilha.
Abriu-se com ela. Falou um pouco de seus problemas pessoais, sua solidão crônica, uma tristeza constante e opressiva que parecia não deixá-la, mesmo nos melhores dias. Atenciosa a princípio, Luana mencionou a possibilidade de Núria procurar tratamento psicológico.
“Já tentei, uma vez” – Núria sorriu amargamente – “Não deu muito certo, me chamaram de esquizofrênica e mandaram meus pais me internar no hospício. Foi literalmente isso.”
“É que esse pessoal não tem imaginação, nem criatividade, por isso acham que quem pensa diferente deles é louco! Olha só, quando eu tava no ensino médio, gostava de...”
E, o que era para ser uma conversa franca sobre Núria, virou novamente um monólogo de autopromoção do quanto a outra era especial, artística, mais esperta que todo mundo, e de como “sofreu muito mais do que ela, Núria” nas mãos de seus pais malvados, amigas e amigos falsos, e seus ex-namorados abusivos.
A cada dez frases que Luana dizia, oito incluíam a palavra “eu” várias vezes.
Uma vez, a mãe malvada de Luana apareceu para visitá-la. Núria se impressionou: era uma mulher bonita, cheia de poder de sedução e persuasão, nos seus quarenta e quatro anos. Recém-divorciada do pai de Luana, para quem às vezes voltava para um revival, cravou na companheira de apartamento da filha uns olhos de águia.
Certo dia, um sábado, chamou-a para um passeio. Era um dia de folga para Núria, e Luana tinha uma aula extra. Se até então só apenas desconfiava, desta vez Núria teve certeza: a mulher estava flertando com ela.
O que ela foi inocente demais para perceber, é que mãe e filha eram idênticas: assim como Luana, Ingrid gostava de ter um séquito de admiradores apaixonados ao seu redor para se gabar, mas os deixava a uma distância calculada para que não fossem ousados demais, e ainda assim, nunca desistirem da esperança de ela, um dia, dar uma chance para eles.
Esses passeios se sucederam, até que, inevitavelmente, Núria se viu envolvida pela enigmática e elegante mulher. Seu perfume caro, assim como as roupas, os sapatos e as joias, os toques macios quando Ingrid pegava-lhe o braço e olhava-a profundamente, contando algum segredo ou desabafo sobre seu casamento falido – aliás, toques em outras partes também, sempre no limite entre o maternal-amigo-sedutor: deslizava uma mão para cima e para baixo, suavemente, nas costas de Núria, nos ombros, na curva de sua cintura quando andavam juntas, lado a lado, e a maneira como segurava e pressionava calidamente sua mão.
Ingrid também se aproveitou muito da carência e da falta de figuras parentais na vida da jovem, mas de um jeito diferente do da filha.
Núria escreveu uma carta, confessando seus sentimentos. Decidiu que a entregaria na próxima visita, na qual Ingrid havia prometido que iriam juntas ao shopping, no período de aula de Luana.
Qual não foi sua surpresa quando Ingrid apareceu de braços dados com um garotão marombado, de vinte e oito anos de idade, bombeiro, um bronzeado e um sorriso de capa de revista. Apresentou-o toda alegre a Núria como seu novo namorado. E ainda teve o requinte de crueldade de manter em pé o passeio ao shopping, agora a três.
Sentados em uma mesa da praça de alimentação, enquanto comiam iguarias asiáticas – a jovem mal tocava em seu prato, na verdade, o peito e o estômago pesavam de desgosto e ciúmes –, Ingrid aproximou sua cadeira da de Núria e abaixou a voz:
“O Joílson me disse que gostou de você também.”
“O quê?”
“Ele também gosta de garotas com cara de novinhas, que parecem menores de idade, assim como você. O que acha?”
Núria olhou estarrecida para o cara, que a mediu de cima a baixo com um sorriso predador. Um pavor indefinido tomou-a de chofre.
“O que está acontecendo aqui?” – tentou manter a calma na voz, franzindo as sobrancelhas para Ingrid.
“Ah, Núria, você tem cara de menininha, mas não é boba, eu sei muito bem. E sei também que você gosta de ‘cortar para os dois lados’. A Luana já havia me dado algumas indiretas, e com o tempo, eu confirmei minhas suspeitas. Não vai bancar a ingênua agora, vai?”
Núria permaneceu olhando para os dois, sem conseguir emitir um único som. As lágrimas vieram naturalmente.
“Ih, deixa quieto, ela não vai querer...” – o cara disse displicente.
“Calma” – Ingrid sorriu para ele, e estendeu a mão para acariciar o rosto e os cabelos da jovem – “Eu gosto muito de você, Núria. Gosto mesmo. A gente pode fazer muitas coisas deliciosas juntas. Ninguém precisa saber, nem a Lu! O Joílson é super discreto, carinhoso, tem uma pegada irresistível, você vai amar!”
A pobre menina, a cada palavra, sentia-se menos que os dejetos que a equipe de limpeza recolhia das mesas. Suas lágrimas tornaram-se ainda mais abundantes. Aturdida, ela se levantou, pediu licença sem olhar nos olhos de ninguém, e praticamente correu até o banheiro, que ficava ali perto.
Não soube dizer quanto tempo esteve lá chorando, sem se importar com quem saía ou entrava. Depois, limpou os restos de maquiagem que escorreram de seus olhos, assoou o nariz, e saiu.
Esperava que, depois dessa, o pervertido casal tivesse ido embora, mas eles ainda estavam lá, para sua surpresa e vergonha. Foi até eles a passos lentos, morta por dentro, e anunciou em voz baixa e rouca:
“Eu não estou muito bem, me desculpem. Vou pra casa.”
Ingrid e o namorado se entreolharam. Em tom seco, de quem não aceitava recusa, a mulher disse:
“Vamos, a gente te leva.”
“Não precisa...”
“Vamos. Ninguém vai te comer, fica tranquila” – ironizou Ingrid, pegando a bolsa e se levantando, e seu namorado fez o mesmo. Pelo jeito, eles já haviam pagado a conta também.
A viagem de volta não podia ter sido mais desconfortável. Joílson ligou o som e colocou em uma rádio que só tocava sertanejo universitário. Trocava algumas palavras com Ingrid, que lhe respondia tranquila, embora sua expressão fosse de profundo desagrado. Ambos agiam como se não dessem pela presença de Núria no banco de trás.
Ao sair do carro, Ingrid a chamou de volta.
“Nenhuma palavra sobre isso à Lu. Já sabe, né?”
Evidente que era uma ameaça. A truculência fria, porém discreta, naqueles olhos de rapina, observando Núria por cima dos óculos escuros, não deixaram dúvidas. Ao contrário das outras ocasiões, Ingrid arrancou com o carro, cantando um pouco os pneus: não dormiria na quitinete da filha daquela vez.
Naquela noite, aos prantos, Núria deu à sua pobre carta de amor o mesmo destino que dera à carta de pedido de perdão cheia de falsos juramentos do pai, anos antes.
As consequências desse funesto encontro logo se fizeram sentir. Luana andava mal-humorada, e não raro, impertinente com a colega. Se antes, executava de bom grado as tarefas domésticas que lhe competiam, de repente passou a procrastinar. Caso Núria comentasse qualquer coisa a esse respeito, respondia com certa grosseria:
“Calma, eu já vou! Eu disse que vou lavar a louça hoje, não disse?”
Muitas das vezes acabava não cumprindo o que prometia. E, para surpresa de Núria, a colega fitava-a às vezes em silêncio, com algo que se parecia muito com ressentimento, ou desprezo.
Luana passou a dar um tratamento de silêncio à outra, que durava dias, às vezes uma semana. Depois retornava mais ou menos às boas, sem jamais se desculpar pela sua atitude ou pelo que deixava de fazer, como se nada de errado tivesse acontecido.
A gota d’água foi justamente nesse dia do atraso. Núria saiu do banho se enxugando, e percebeu que Luana estava em algum lugar na quitinete, pelo barulho. Foi até seu quarto, vestiu-se, e já com o coração opresso, foi até a colega, que a recebeu com um cumprimento indiferente.
“Você não viu minhas mensagens?” – os dois tiques azuis estavam lá, mas Núria ainda não queria partir para um confronto.
“Ai, cê me desculpa, Núria. Eu cheguei muito tarde, bebi demais, esqueci. Foi mal.”
Fosse verdade ou não a bebedeira e o chegar tarde, era óbvio que o restante foi dito em tom de quem não se importava se a outra acreditaria ou não.
A visão de Luana mexendo no próprio celular, não dando a mínima para a questão, redobrou a raiva de Núria. Não só pela desconsideração, mas porque, como uma avalanche, vieram as lembranças das palavras e do olhar intimidador de Ingrid.
Por alguma razão indecifrável, Núria também pensou, angustiada, no paciente psiquiátrico que falecera durante aquela manhã.
Crack! Mais uma rachadura dentro de seu cérebro.
Quando Núria menos percebeu, sua mão parecia ter ganhado vida própria. Saiu, segurou a maçaneta da porta do quarto da colega e bateu-a com toda a força.
Luana deixou cair o celular no chão, pulando de susto e soltando um pequeno grito.
“Você tá louca, é?” – Núria ouviu a voz dela alterada através da porta fechada.
Luana saiu logo atrás, enquanto Núria foi até a sala, já com o olhar desvairado, respirando freneticamente.
“Núria, eu não vou admitir...”
“Qual é a sua, hein, garota???”
Ninguém nunca tinha ouvido Núria gritar daquela maneira, nem visto em sua fisionomia uma expressão tão animalesca.
Luana engoliu em seco. Primeiro, assustou-se com essas reações da colega, para ela, inéditas. Depois, recuperou-se e dirigiu a Núria aquele odiento esgar desdenhoso que ela vinha exibindo ultimamente.
“Não vem descontar sua raivinha em mim só porque minha mãe não é sapatão que nem você!”
Núria respirou com dificuldade e esbugalhou os olhos.
“O que você disse???”
“Minha mãe me falou da vergonha que você fez ela e o Joílson passarem no shopping. Eu é que pergunto, qual é a sua? Tá pensando que todo mundo é igual a você?”
Aproveitando que Núria tremia de cima a baixo, Luana continuou, aumentando o tom de voz:
“Se você quer fazer safadeza com mulheres, é problema seu! Mas não meta minha mãe no meio! Tem graça agora, fica dando em cima dela na frente do namorado, e ainda acha ruim comigo porque eu não sou obrigada a concordar com suas sem-vergonhices!”
“Foi isso que ela disse pra você?”
“Ela pensava que você era uma boa companhia pra mim, no começo. Mas mesmo agora que viu quem você é de verdade, pediu para eu não te dizer nada! Mas eu não fico quieta não! Eu sou muito boazinha, mas mexe com alguém da minha família, pra você ver!”
‘Você... – Núria ria e respirava cada vez mais com dificuldade, em meio à ira – “Não, você não é boazinha PORRA NENHUMA! Nunca foi!”
Antes que Luana abrisse a boca para responder, Núria cortou-a, a raiva jorrando a plenos pulmões:
“Você e ela são iguaizinhas! São duas narcisistas escrotas, que usam os outros para se autopromover, para pagarem de gostosas e posarem de boas samaritanas! E quando não precisam mais, descartam e dão um jeito de fazer parecer que os outros é que são maldosos ingratos que se aproveitaram da suposta bondade de vocês! Sem-vergonha é ela e aquele cara nojento, que inventaram essa história só porque eu não aceitei ir pra cama com eles dois! Aliás, a maior sem-vergonha e filha da puta aqui é você, que não tinha nada que contar da minha vida pessoal para ela! Ao contrário de você e dela, eu nunca trepei com ninguém na minha vida! É isso mesmo, não vem se fazer de vítima pra cima de mim, não! Foi só você abrir essa matraca de que eu gosto de meninas também, e ela veio com aquele gigolô dela me propor putaria, me tratando como se eu fosse uma vagabunda! VÃO SE FODER TODOS VOCÊS!!!”
Luana ainda tentou dizer alguma coisa, chocada e irada que estava, mas Núria apanhou um grande bibelô de vidro na mesinha de centro e arremessou-o violentamente contra uma parede, a dois metros de distância de onde a Luana estava. Esta se abaixou com os braços sobre a cabeça, para se proteger. Sem coragem de dizer mais nada, correu para a porta da sala e saiu, levando a chave que estava na fechadura. Não voltou mais essa noite.
No dia seguinte, quando Núria retornou do estágio, o quarto de Luana estava completamente vazio. Também foram levados alguns pequenos móveis, utensílios, e aparelhos que ela tinha trazido na ocasião de ter vindo morar com Núria. Nem Luana, menos ainda Ingrid, entraram mais em contato: as burocracias relativas à saída da outra do imóvel foram todas repassadas pela imobiliária.
Os restos do bibelô arredondado abstrato, que era transparente em cima e azul-royal embaixo, ainda jaziam no mesmo lugar.
As fofocas levaram apenas metade de um dia para correr por boa parte do campus. Alguns estudantes, vizinhos do mesmo prédio, se encarregaram de contar suas próprias versões do que depreenderam da gritaria de Núria na véspera.
O saldo depois do ocorrido foi o seguinte: embora Núria não fosse a pessoa mais legal e querida do lugar – na verdade, ela era praticamente invisível para a esmagadora maioria ali, até esse incidente – somente quem não conhecia Luana é que a comprava. A moça, que arrastava esse curso de Educação Física sabe Deus há quanto tempo, por causa das constantes dependências, tinha um considerável número de desafetos. Era conhecida por sua fama de se gabar, exagerar, e mentir descaradamente para incrementar suas histórias, na sua eterna síndrome de protagonista.
Mesmo que ela espalhasse para o campus todo que Núria era uma louca esquizofrênica, que teve delírios sobre um suposto assédio de sua mãe, e tentou matar Luana com o bibelô, no fim, outras versões cada vez mais distorcidas surgiram e prevaleceram. A mais contada foi que Luana teria tentado seduzir Núria, sem sucesso, porque esta era apaixonada pela mãe de Luana, mas não era correspondida. As colegas de apartamento tiveram uma briga feia, e Núria perdeu o controle, quebrando tudo dentro de casa.
As três companheiras de apartamento anteriores de Núria reapareceram para “esquentar” mais as intrigas, apenas acrescentando que Núria era meio estranha, “na dela”, exigente e ranzinza, mas nunca tinha dado em cima delas, nem tinha tido um relacionamento com ninguém, ao que sabiam. Saíram de lá... “Ah, porque a gente queria uma pessoa mais legal e animada pra acompanhar a gente nos rolês. Ela parecia uma Madre Superiora, uma Sargentona de cinquenta anos de idade, com aquela mania de limpeza, organização, cumprir horários, Deus me livre! Mas ela não parecia desequilibrada, nem sapatona não. Vai saber, a gente nunca conhece as pessoas direito, né?”
Não consolou Núria o fato de que logo outras fofocas mais quentes atraíram o interesse da fervilhante Universidade Federal de São Paulo, e o seu caso foi esquecido. A estudante de Enfermagem decaía cada vez mais em um poço sem fundo: não se alimentava direito, dormia mal, emagrecia a olhos vistos, e teve certa queda em seu rendimento no estágio e nas notas, a ponto de preocupar alguns professores e suas colegas mais próximas, Ignez e Cassia.
As duas ainda tinham essa qualidade: não estavam nem aí para rumores e escândalos, como ótimas alunas que eram. Ao ver que a colega não tinha condições de bancar sozinha a quitinete, Ignez deu um jeito de conseguir um espaço em seu apartamento para acolhê-la. Além disso, ela e Cassia aconselharam Núria a procurar ajuda na unidade de Psicologia.
“No é porque você é loca, nada disso. É justamente para permaneceres sana que deves ir buscar ayuda na psicoterapia” – disse Ignez, carinhosa e séria.
“Não encare isso como um tabu. Aqui tem vários profissionais de alta qualidade. E, se você não gostar, pode ficar sossegada, que ninguém vai te julgar ou condenar, e você pode sair, se quiser” – completou Cassia segurando-lhe a mão descorada e gelada.
Fazia um calor de rachar, mas Núria parecia ter saído de uma gaveta do necrotério após ficar lá por horas. A palidez, as olheiras e a coloração quase cianótica de seus lábios aumentavam mais ainda a triste impressão. Seus olhos, a cabeça e o corpo mal alimentado e sem descanso doíam.
Ela revia em suas memórias aquele paciente morto depois de tirar o apêndice: mesmo magro e um tanto idoso, tinha a força e o comportamento de um gorila enfurecido. A porta da frente do hospital estava visivelmente aberta a poucos metros dele, que insistiu em fugir do jeito mais difícil, sabe Deus por quê. Pulou e tentou escalar uma janela fechada, a quatro metros de altura, na sala de espera, o que ocasionou o rompimento de seus pontos internos e a subsequente hemorragia.
Além do mais, Núria teve contato suficiente com outros pacientes psiquiátricos em seus estágios, além do conhecimento teórico ministrado em aula, para compreender que o que suas amigas diziam era verdadeiro.
“Bem, talvez eu seja um pouco louca mesmo, mas a essa altura, que diferença faz? O melhor é procurar ajuda para essa dor que sinto com quem entende de verdade, e não com uma psicologazinha meia-boca e pau-mandada dos meus pais, formada em alguma instituição de quinta categoria...”, meditou, com um meio sorriso triste. Suspirou.
“Alguém de vocês duas teria um tempinho pra me levar lá amanhã?”
Fim do capítulo
O próximo capítulo vai ser mais leve, pra aliviar o peso deste. Vai ter até sequência de lovezinho kakakaka!
Bom feriado a todes! <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
Billie Ramone Em: 04/05/2023 Autora da história
Eu que o diga... povo acha que só pq é bissexual, gosta de sacanagem com qualquer um que aparece. Nada contra quem gosta, mas é chato pra caramba carregar esse rótulo e ainda ser desrespeitada.
Sempre muito feliz de te ver por aqui! :)))))))))))