Amada Amanda por thays_
Capitulo 15
No sábado estávamos em uma pista de skate num bairro próximo a casa de Amanda. Ela tentava encaixar umas manobras novas e fazia muito calor naquela manhã. Ela estava com um top preto e uma calça larga com bolsos nas laterais. Eu estava sentada na sombra em cima de um quadrado de concreto a olhando e admirando de longe e pensando em todas as coisas que tinham acontecido até então, desde que nos conhecemos.
Os outros skatistas passavam de um lado pro outro como flechas. A pista era basicamente composta por alguns corrimões, escadas, rampas, alguns elementos que encontramos na rua mesmo. Só o bowl que não tinha, que era aquela piscina gigante. Havia algumas crianças com os pais, mas sua grande maioria eram adolescentes. Tirando Amanda, havia apenas mais uma garota, mas parecia ser muito fechada e tinha cara de poucos amigos.
Senti meu celular vibrar no bolso, desbloqueei a tela com minha digital e vi que era uma mensagem de meu irmão.
Duda... eu fui procurar a Amanda pra adicionar ela no Instagram... e descobri algo sobre ela... você pode me ligar...?
Fiquei um pouco tensa naquele momento. Ele só tinha 14 anos, como será que reagiria? Se bem que os adolescentes atuais estavam muito mais antenados que os da minha época...
Disquei seu número. Ele atendeu logo na primeira chamada.
- Maaaano do céu, eu não to acreditando!
- Bom dia pra você também.
- Sério... eu não tô conseguindo acreditar.
- O que você não está conseguindo acreditar?
Eu já sabia, mas queria saber o que ele de fato sabia sobre isso.
- Que a Amanda... é... trans.
- Sim, ela é. Como você se sente sabendo disso?
- Eu to irritado, você podia ter me contado antes.
Eu gelei.
- Tutu... eu não te contei antes porque isso é algo que só diz respeito a ela e...
Ele continuou, como se não tivesse nem ouvido o que eu falei:
- Estávamos falando justamente sobre isso na escola essa semana! A professora perguntou se conhecíamos alguma pessoa trans e só a Maria Clara levantou a mão. Eu queria ter levantado também, mas semana que vem eu vou contar pra todo mundo que também conheço e que ela namora minha irmã.
Eu ri, de certa forma aliviada com a naturalidade dele em lidar com o assunto, mesmo que fosse apenas pra se gabar com os amigos. Mas ainda precisaria conversar com ele sobre certas coisas…Talvez a abordagem da professora não fosse uma das melhores…
Os meninos começaram a gritar alucinados porque um deles tinha acertado uma manobra difícil.
- Que barulho é esse? Onde você tá?
- To com a Amanda aqui numa pista de skate.
- Você prometeu que ia me levar pra andar com ela, Duda!
- Eu sei, pequeno, mas a gente nem comprou um skate pra você. Você já perguntou pra mamãe se ela autoriza?
- Não, ela provavelmente vai achar que vou quebrar alguma coisa. Igual quando a gente dá um pião de moto.
- Pião?
- Uma volta.
- Ah.
Percebi que estava ficando velha a partir do momento que não conseguia mais entender as gírias do meu irmão.
- Conversa primeiro com ela, de qualquer forma nós vamos almoçar aí com vocês amanhã. Tá bom?
- Tá bom… Manda um beijo pra Amanda e fala pra ela aceitar minha solicitação de amizade.
Nós desligamos.
Amanda logo se aproximou, remando em minha direção. Estava deliciosa com aquele suor escorrendo por seu pescoço, caindo entre seus seios… Minha vontade era de lamber seu corpo inteiro….
- Oi gatinha.
- Oi, meu bem. Vem aqui me dar um beijo…
Ela se aproximou, encaixando-se entre minhas pernas, busquei sua boca, mordiscando seu lábio inferior…
- Estava falando com meu irmão agora sobre você.
- Em relação ao que?
- Ele quer usar você pra ganhar popularidade na escola.
- Como assim?
Expliquei toda a história pra ela. Ela se sentou ao meu lado e ficou animada pela reação dele.
- Quem dera na minha época as coisas fossem assim também... – Eu disse, me lembrando das coisas que tinha passado por intolerância, preconceito e mal preparo dos professores e direção da escola que estudava. – Hoje até se fala sobre esse assunto nas escolas… Quer dizer, ao menos algumas, né?
- Apesar de tudo, acho que a situação ainda é bem problemática... Pra você ver, só em 2018 o conselho de psicologia orientou os profissionais a não tratarem nós trans como doentes, a não nos verem como alguém com uma patologia a ser curada.
- O que?! 2018?! É muito recente. Foi tipo ontem.
- Muito. Sabe qual a expectativa de vida de uma pessoa trans?
- Não tenho ideia.
- 35 anos. - Ficamos em silêncio e uma angústia profunda se alojou em meu peito. - Rezo todos os dias quando piso fora de casa… Sei que como sou passável consigo passar ilesa de muitas situações de violência do dia a dia… Mas eu tenho medo mesmo assim, quero muito superar essa expectativa, quero envelhecer, viver minha vida em paz como qualquer outra pessoa.
- Mas porque tão baixa?
- Tantos fatores… pra você ter ideia, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, quase a grande maioria são mulheres como eu.
- Acho que os caras devem sentir tesão como sentem por uma mulher cis, aí quando descobrem que muitas vezes têm um órgão diferente do que eles esperam, gera tipo raiva, sei lá… é isso?
- Acho que sim, mas não acho que seja só pela vergonha do desejo, embora isso possa ocorrer. Mas acho que o ódio pelos nossos corpos é a principal causa. O ódio por si só. Ali, puro e simples ódio.
Senti um misto de ira, angústia, tristeza e revolta ao mesmo tempo. Meus olhos se encheram de lágrimas lembrando-me do meu sonho. Ela me beijou, percebendo a mudança em meu semblante.
- Gatinha... se acalma, não vai acontecer nada. Eu só estou te mostrando como é a verdadeira realidade. E olha que sou uma pessoa privilegiada por ter ao menos uma mãe que me apoia. Se eu tivesse ido parar na rua, ter sido expulsa de casa, como é a realidade de muitas mulheres pelo mundo aí fora, o cenário ia ser mil vezes pior... Se os homens matam mulheres na segurança de seus próprios lares, imagina uma mulher trans em situação de vulnerabilidade na rua…
Eu sentia uma ira crescente dentro de mim.
- Eu nunca vou deixar nada de ruim acontecer com você. Nunca. Disso você pode ter certeza. Eu não me importo de ir presa se for pra te defender. Se alguém encostar um dedo sequer em você eu persigo essa pessoa até o inferno.
Amanda ficou paralisada me olhando.
- Eu tenho medo quando você fala desse jeito, Duda… De verdade.
- Só pra você saber que eu não estou pra brincadeira.. Eu realmente vou te proteger de qualquer coisa.. Não me importo de perder meu réu primário se for por alguma boa causa. - Ela balançava negativamente a cabeça de um lado pro outro, achando aquilo tudo um absurdo. Eu continuei - Você precisa me falar se aquele tal de Guilherme continuar te enchendo o saco... Eu converso com o Rafa... A gente dá um susto nele e...
Ela me cortou. Seu tom de voz foi um pouco mais alto do que eu esperava.
- De que adianta você presa e eu aqui fora? Nada. Não gosto quando tem essas explosões de querer partir pra cima dos outros... Eu sei que você só quer me defender, mas às vezes nossa melhor arma é simplesmente ignorar e continuar seguindo nossa vida para o nosso próprio bem.. A gente não tem que esfregar na cara de ninguém que estamos certos, porque embora estejamos vai entrar por um ouvido e sair pelo outro e nada vai mudar. Da mesma forma que você quer me proteger eu também quero te proteger, não quero você se envolvendo em briga por minha causa. Você tá me ouvindo? Você acha que você também não corre risco de topar com algum intolerante por aí? Já pensou que algum desses caras que você já se atracou por aí tivesse armado e te desse um tiro na cara? Do que ia adiantar essa coragem toda e essa revolta toda que você tem? Você ia acabar me deixando sozinha de qualquer forma... é isso que você quer?
Eu fiquei em silêncio, completamente paralisada com as palavras de Amanda. Só consegui balançar cabeça de um lado pro outro, negativamente.
- Pois pare de querer arrumar briga em todo lugar. Tá me ouvindo?
Eu ouvia e concordava, mas na minha cabeça era difícil compreender. Porque eu sabia que se alguém se metesse com Amanda, eu lutaria com unhas e dentes por ela e não estaria nem aí para as consequências.
Mais tarde nesse mesmo dia fui almoçar com ela e sua mãe no apartamento das duas. Dona Rosa parecia um pouco mais confortável comigo (ou talvez eu que estivesse mais confortável com ela). Ela perguntou se eu não poderia arrumar algumas coisas que estavam precisando de concerto na casa delas e eu adorei a oportunidade de poder fazer uma média com ela.
Arrumei a prateleira da cozinha que tinha desabado há algum tempo atrás.. Nada que alguns parafusos e buchas novas não resolvessem. Seu guarda roupa tinha caído uma porta, tinha algumas dobradiças em minha caixa de ferramentas e também foi fácil consertar. E por último, troquei a resistência da torneira da cozinha, que no inverno, era muito custoso para ela lavar a louça na água gelada. Ela me elogiou como se eu fosse uma super engenheira (e eu amei), sendo que eram coisas super simples que aprendi desde nova com meu pai.
Fui para o quarto de Amanda, ela tinha acabado de tirar as coisas da sua cômoda e estavam todas empilhadas em cima de sua cama, tinham muitos papéis e algumas blusas de frio.. Pedi sua ajuda para afastarmos ela da parede e quando o fizemos ela desabou toda em minha mão, como se aquele fosse seu último suspiro. Era de um material muito frágil e foi fácil empilhar as placas no corredor, para depois jogar em uma caçamba de lixo encostada ao prédio. Quando estava juntando os pedaços, vi um panfleto caído no chão, que parecia estar ali há algum tempo.. Eu o peguei na mão.
Neo Vita. Reprodução humana e saúde reprodutiva.
Simplesmente fingi que ignorei aquela informação, mas aquilo me deixou com uma pulga por trás da orelha. Continuei meu serviço e Amanda me ajudou a montar a estante nova. Foi muito divertido fazer aquilo com ela. Mais tarde, depois de tudo arrumado, descemos com a estante velha (ou o que tinha sobrado dela) no elevador e jogamos dentro da caçamba de lixo.
Amanda e eu ficamos alguns minutos lá embaixo olhando para a lua. A noite estava muito bonita.
- Você quer ter filhos? – Perguntei pra ela.
- Oi?
Ela pareceu um pouco surpresa com minha pergunta. Então respondeu, após alguns segundos:
- Não sei, no futuro talvez. Sou muito nova ainda pra ser mãe. Quero fazer muitas coisas ainda antes de pensar em ter filhos.
- O que é essa clínica Neo Vita? Eu achei um panfleto dela caído no seu quarto... Quer dizer... Não quero invadir sua privacidade nem nada... embora eu já esteja invadindo... quer dizer... Se não quiser falar sobre isso não tem problema nenhum...
- Antes de começar a transição fui orientada a procurar algum lugar que fizesse congelamento, essas coisas, você sabe... Com a terapia hormonal fiquei praticamente infértil.
Ficamos novamente em silêncio. Eu fiquei pensando naquela informação.
- Então você não poderia me engravidar se a gente... sei lá?
Ela sorriu de uma forma divertida, com um sorriso safado nos lábios.
- A gente o que?
- Você sabe.
- Não sei não.
- Claro que sabe, não se faça se boba.
- Eu só estou adorando você toda vermelha. Nem sabia que você cogitava essa possibilidade.
- Eu não estou cogitando nada... eu só... fiquei curiosa.
(Eu cogitava)
- Não, nada de bebês. Eu teria que parar com os hormônios durante um tempo, mas ainda sim é um pouco arriscado, por isso optei pelo congelamento.
Ficamos em silêncio. Ela devolveu a pergunta:
- Mas e você? Quer ter filhos?
- Não sei, eu não me imagino gerando uma criança... bem que podia ser o contrário...
- Tipo o que? Você me engravidar?
- É.
Beijei seus lábios de forma carinhosa, porém, senti certa tristeza em seu tom de voz quando me respondeu:
- Só em outra vida, meu bem. – Nos beijamos novamente. - Você ia ficar linda grávida de qualquer maneira... - Pousou uma mão em minha barriga.
Eu a afastei, rindo.
- Para com isso. Isso nunca vai acontecer.
- Não mesmo. Você nem me pediu em namoro e já quer falar sobre filhos.
E eu fiquei muito surpresa.
- Pra mim já estávamos namorando...
- Ah, é?
- É. Ou não?
- Não sei.
- Você não quer?
- Ninguém me perguntou.
Eu sorri. Limpei minha garganta:
- Você quer ser minha namorada?
- Não sei, vou pensar no seu caso. - Ela então colocou as mãos por cima de meus ombros, daquele jeito que me deixava ainda mais apaixonada por ela. - É claro que quero sua boba.
Fim do capítulo
Pessoas lindas, só queria deixar claro uma dúvida que talvez tenha sido gerada pelo sonho de Duda há alguns capítulos atrás e talvez por também esse, fiquem tranquilos, não vai acontecer nada com a Amanda, ok? Podem continuar lendo sem medo de acontecer alguma coisa muito triste, gosto de histórias com finais felizes, só pra deixar claro :) Queria agradecer imensamente a vocês que estão acompanhando, estou gostando muito de escrever essa história. Obrigada de coração.
Comentar este capítulo:
Billie Ramone
Em: 05/04/2023
Muito obrigada por esse aviso pq eu já tô cansada de histórias tristes sobre pessoas trans. A realidade é dura, mas vamos pelo menos na ficção criar um mundo cheio de amor, pq é disso que todes estamos precisando! <3
thays_
Em: 07/04/2023
Autora da história
Oi Billie! Também estou cansada de histórias tristes, já perdi a conta de quantos filmes lbgbqiap+ comecei a ver e larguei no meio do caminho porque começaram a ter tragédia demais. Obrigada por estar acompanhando!
[Faça o login para poder comentar]
alexvause
Em: 05/04/2023
Elas são mto fofinhas juntas, amo isso nelas. To muito apaixonada pela Amanda ? Fico muito aliviada por saber que você não vai dar um final trágico a ela, ia ser muito doloroso e confesso que eu me frustraria muito com a história se isso acontecesse... fico feliz por você estar mantendo a sequencia das postagens também... amando essa história cada vez mais
thays_
Em: 07/04/2023
Autora da história
Oi alex, obrigada por sempre estar presente por aqui!
Você sabia que sempre que revejo azul é a cor mais quente eu paro na metade só pra não ter que lidar com o final? Queria um final alternativo pra esse filme que gosto tanto!
[Faça o login para poder comentar]
Marta Andrade dos Santos
Em: 05/04/2023
Achei que iria acontecer algo com Amanda agora estou Relex.
thays_
Em: 07/04/2023
Autora da história
Pode ficar de boa :DDD
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
thays_ Em: 09/04/2023 Autora da história
demais ;)