Amada Amanda por thays_
Capitulo 10
Os dias seguintes demoraram a passar. Tínhamos marcado de nos encontrar no sábado a noite. Eu a chamei para jantar comigo. Iríamos até uma hamburgueria que eu amava. Eu estava tão ansiosa para vê-la, como se não nos víssemos há muito tempo. Estava me sentindo uma adolescente.
Fui buscá-la em sua casa por volta das 20:00.
Estacionei a moto em frente ao prédio e liguei para ela
- Sobe aqui, ainda não estou pronta. - Ela disse.
Hesitei.
- É melhor não. Te espero aqui em baixo.
- Eu vou demorar ainda.
- E sua mãe?
- O que tem ela? Tá vendo novela.
- Eu não me preparei pra conhecer sua mãe.
- Sobe logo, Maria Eduarda. Ela é super de boa.
Eu desliguei a moto e fui até a portaria com os capacetes nos braços achando que aquilo não era uma boa ideia. O porteiro logo liberou minha entrada. Subi até o 5o andar de elevador e toquei a campainha. Amanda logo veio me receber. Estava com os cabelos molhados. Usava uma roupa confortável, daquelas de ficar em casa. Me deu um sorriso de orelha a orelha, solto, realçando as covinhas em suas bochechas. Ela ficava linda de qualquer jeito.
- Oi.
- Oi. - Meu sorriso também veio solto, fácil, bobo, apaixonado.
- Vem, entra. - Ela abriu a porta para que eu passasse, nossos corpos se encostaram e não perdi a oportunidade de lhe roubar um beijo.
- Você tá cheirosa. - Ela disse baixinho. - Ta uma gracinha com essa camisa. – Arrumou minha gola e eu a beijei novamente.
Ao entrar na sala, vi que sua mãe nos olhava. Eu gelei. Não esperava que ela estivesse ali. Logo ali quando eu entrasse e logo ali me vendo beijar sua filha. Amanda tirou os capacetes de minhas mãos e nem percebi aonde ela os colocou tamanho nervosismo que fiquei com aquela constatação.
Eu não conhecia a mãe de ninguém. Eu nunca era apresentada à família de ninguém. Meus relacionamentos nunca davam esse passo. Nem me referia a eles como um relacionamento pra ser sincera. Era apenas pegação, curtição, sex* fácil. E lá estava eu em frente à mãe de Amanda que tinha acabado de nos ver se beijando. Puta merd*. Será que eu passaria uma boa impressão pra ela?
Ela devia ter por volta da mesma idade que minha mãe, pelo pouco que me lembrei dela, de quando eu era mais nova. Parecia ser alguém que tinha tomado muito sol na vida, sua pele tinha muitas marcas de expressão. Usava uma blusinha de tricô na cor vermelha, sapatos felpudos em seus pés, que tinham meias também de tricô. Os olhos eram os mesmos de Amanda. Tinha o cabelo curtinho e já tomado pelos fios brancos.
Ela se levantou do sofá e se aproximou de nós. Eu me lembrei de tudo que Amanda tinha me contado sobre o quanto o pai tinha feito mal não só a ela, mas a toda família e pensei no quanto isso deveria refletir no físico visivelmente cansado da mãe, aparentando ter bem mais idade do que de fato realmente deveria ter. Criar 4 filhos talvez não tenha sido uma tarefa muito fácil pra ela também.
- Você deve ser a Maria Eduarda que tanto ouvi falar.
Eu sorri um pouco tímida.
- Sim, senhora.
Ela sorriu e segurou em minhas mãos. Eram mãos calejadas de quem devia ter trabalhado muito na vida. Senti seus olhos em meus cabelos, minhas roupas, como se me analisasse. Ainda bem que não tinha vindo de qualquer jeito. Ainda bem que tinha colocado minha melhor camisa. Será que me acharia boa o suficiente para Amanda? Será que se importaria com minha aparência?
- Eu vou terminar de me arrumar. - Amanda disse e simplesmente me largou ali sozinha na sala com sua mãe. Ela simplesmente me abandonou no campo de guerra. O medo tomou conta até de meus ossos naquele momento.
- Você aceita um café? Eu acabei de passar.
- Aceito, sim, senhora.
- Pode me chamar de Rosa, senhora faz com que eu me sinta ainda mais velha do que já sou. – E ela riu de uma forma engraçada e tossiu em seguida, se engasgando consigo mesma. A tosse durou longos e agonizantes segundos.
Perguntei preocupada:
- A senhora está bem?
- Rosa, minha filha, Rosa... A senhora está no céu. - E olhou para uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, em um altar na sala, e fez um sinal da cruz. – Essa tosse já me acompanha há alguns anos, não se preocupe... É só o reflexo dos cigarrinhos que fumei a vida toda... – E ela riu de si mesma, tossindo de novo de uma forma preocupante. - Meu pulmão não é mais de uma menina de 20 anos, sabe como é né? – Ela caminhou lentamente até a cozinha e desapareceu.
Eu estava muito nervosa. Minhas mãos suavam. Ouvia o comercial na televisão sobre a reprise da escola de samba campeã daquele ano. Olhei para um porta-retrato no hack. Três homens, Amanda e dona Rosa. Amanda era a mais nova. Os meninos deveriam ser os irmãos dela. Olhei em volta, havia plantas na sala, vasinhos com flores diversas. Quadros. Livros. Vi uma gata preta vindo em minha direção. Ela sentou-se no sofá, passei os dedos por seu pelo macio e tomei a liberdade de me sentar ao seu lado, olhando em volta com medo de fazer alguma coisa errada e acabar com tudo. Como se qualquer passo em falso tudo pudesse ruir. Eu realmente queria muito passar uma boa impressão pra ela.
A gata começou sua higiene ao meu lado e aquele barulho começou a me deixar mais nervosa do que já estava. Não me lembrava qual das três gatas ela era, se Virgínia, Frida ou Agatha. Tentei chamá-la pelos três nomes, mas ela não me deu a menor bola.
Dona Rosa voltou com duas xícaras, um bule e um açucareiro equilibrando tudo magistralmente em uma bandeja de alumínio. Ouvia o tilintar da louça conforme suas mãos tremiam. Eu a ajudei a pousá-los na mesinha de centro. Minha respiração estava curta. O ar parecia que faltava. Parecia quente. Será que não tinha nenhuma janela aberta naquele apartamento?
Ela se sentou ao meu lado no sofá e colocou duas colheres de açúcar na xícara dela.
- Você está com quantos anos, Maria Eduarda?
- 32. Pode me chamar de Duda.
- Pensei que fosse mais nova.
Não sei se eu deveria encarar aquele comentário como um elogio ou uma crítica.
- Amanda é uma menina muito especial, Duda. - Ela disse em seguida. - Acho que já deve saber da história dela, suponho.
- Sim, senhora... quer dizer, Dona Rosa... – Limpei a garganta de forma um pouco nervosa. – Rosa.
Passei a mão em minha testa, eu estava suando bicas. Puta merd*. Será que Amanda demoraria muito?
Ela sorriu, talvez percebendo meu nervosismo.
- Tome um gole do seu café, vai esfriar.
Eu tinha até me esquecido do café. Fui colocar o açúcar na xícara e não sei como, consegui a proeza de derramar tudo para fora da caneca sujando a mesa de centro e caindo também no tapete. Puta que o pariu, Duda, presta mais atenção no que você está fazendo. Senti-me uma completa idiota. Não era nem capaz de acertar o buraco da xícara.
A senhora riu da minha falta de destreza.
- Desculpe...
- Fique tranquila, depois eu limpo.
Ela riu e eu também comecei a rir, só que novamente daquela forma estranha e ansiosa. Ficamos em silêncio. Eu beberiquei meu café sem açúcar mesmo.
- Eu fiquei feliz quando ela disse que tinha conhecido alguém. – Dona Rosa disse, prestando atenção na novela que eu não fazia ideia de qual era. Nem conhecia os atores. - Ela me disse que você é a filha mais velha da Hilda e do Raul. Eu me lembro de você, de sua família, sempre foram boas pessoas. Sua mãe sempre me deu ótimos conselhos. Eu fiquei feliz quando soube que era você. Bastante surpresa... mas aliviada.
Eu respirei de forma profunda, sentindo meus músculos relaxarem um pouco após essas palavras. Então falei num impulso, sentindo-me confiante:
- Eu tenho as melhores intenções com sua filha, dona Rosa. Isso a senhora pode ter certeza. Quero algo sério com ela. Não quero brincadeira. Eu a respeito muito.
Ela segurou o gato em seu colo e começou a fazer carinho nele. Ela não disse mais nada. Ficamos em um silêncio completamente desconfortável e aquelas minhas palavras ficaram no ar. Fiquei recapitulando elas em minha cabeça como se tivesse dito algo muito errado. Aquilo me travou completamente. Tomei o restante do café que já estava frio, amargando minha boca. Coloquei a xícara na mesa de centro, apoiei minhas mãos em minhas coxas e fiquei ali imóvel. Contando os segundos pra Amanda retornar.
Quando ela voltou, e eu a vi, até parei de respirar por breves segundos. Aquela mulher estava... Deslumbrante. Não estava com suas roupas habituais, largas de sempre... Nunca a tinha visto maquiada... Nem com roupas tão... justas e... que deixavam suas curvas perfeitamente expostas... e aquele decote... Foi difícil manter a compostura.
O sorriso bobo em meu rosto foi inevitável.
- Estou pronta. Vamos?
Levantei-me prontamente, esbarrando o joelho de forma destrambelhada na borda da bandeja de alumínio fazendo um barulho alto das louças se chocando. Dei Graças a Deus, e a Virgem Maria que estava de testemunha na parede daquela sala, por não ter quebrado nada e por não ter mais café em nenhuma xícara pra piorar a situação do tapete. Dona Rosa levou a mão à boca e começou a rir - e a tossir. Amanda também foi contagiada pela risada e nós três então começamos a rir.
Dona Rosa se levantou.
- Espero que você dirija melhor essa moto do que toma seu café. Toma cuidado. Cuida bem da minha menina.
Achei tão fofo ela falando daquela forma de Amanda.
- Pode deixar, eu dirijo direitinho. Vou cuidar muito bem dela.
Amanda pegou os capacetes e beijou sua mãe.
- Qualquer coisa eu to com o celular, tá mãe?
- Aproveita, filha. Esquece sua mãe um pouco. Sou velha, mas vou demorar muito pra morrer ainda.
Amanda abriu a porta de entrada.
- Foi um prazer rever a senhora - Disse à mãe de Amanda. Não sabia se deveria me aproximar e beijar seu rosto, ela não me deu abertura, então fiquei parada igual uma estaca. Amanda entrelaçou suas mãos às minhas e me puxou, como se eu fosse um cachorro que estava empacado no caminho e precisa de um empurrão.
- Vão com Deus. Tomem cuidado.
Entramos no elevador. Eu respirei fundo. Aliviada. Sentindo o ar entrando pelas minhas narinas novamente. Limpei o suor de minha testa.
- Está tudo bem com você? – Ela me perguntou divertida. – O que aconteceu?
- Sim.... Eu só... – E então olhei novamente pra ela me perdendo nos meus pensamentos, me perdendo no meu raciocínio. Queria memorizar cada detalhe de seu rosto. Busquei seus lábios num impulso. Grudei-a contra a parede de metal com certo entusiasmo que talvez ela não estivesse esperando.
Ela riu, satisfeita.
- Não sei se vou dar conta de sair com você... – Disse entre beijos.
- Ah, não? Por quê?
Fez-se de desentendida.
- Queria te levar direto pra minha cama...
Minha mão livre percorreu toda a extensão de seu corpo, pegando-a pela bunda, trazendo-a perto. Respondeu de forma doce, segurando meu rosto, fazendo um carinho no lóbulo de minha orelha.
- Se acalma, linda. Temos a noite toda.
Aquele ‘linda’ no final da frase me arrepiou inteira. Era um tesão absurdo que eu sentia por aquela mulher. Um desejo que parecia não ter fim. A porta se abriu e me desencostei, libertando-a de meus braços ansiosos. Segurei em sua mão e caminhamos até a moto.
- Foi tudo bem com minha mãe?
- Eu acho que ela me odiou. Eu estraguei tudo. Eu sujei todo o tapete dela.
- Não acredito... Esse tapete é de herança de minha avó, ela trouxe da Itália.
- O que?!
Que merd*! Eu realmente tinha estragado tudo. Eu tinha estragado TUDO. Ela realmente devia me odiar. Puta merd*. O que eu ia fazer?
Amanda então começou a rir de meu desespero.
- Você tinha que ver sua cara... Eu estou brincando, meu bem... É só um tapete.
Eu levei a mão ao coração.
- Eu quase tive um treco aqui, Amanda.
Ela continuou rindo e aquela risada dela era tão gostosa... Que me fez beijá-la novamente... beijar aquele sorriso… beijar aquela risada.
- Ela já gostava de você mesmo antes de hoje. Fica tranquila.
- Por quê?
- Por que você acha?
- Porque ela gostava dos conselhos da minha mãe?
- Não. Porque você me faz feliz... - Ela disse de uma vez abalando todas as minhas estruturas. - Porque eu não me divirto assim há sei lá quanto tempo... - Sua mão direita em meu pescoço, minha nuca. - Tudo com você é leve... e... Você é um amor comigo, Duda... E eu to gostando demais de você... E ela tá vendo tudo isso...
Meus olhos ficaram marejados naquele exato momento. O barulho dos carros passando na rua próxima a nós naquela noite agitada de sábado silenciou. Tudo sumiu em volta de nós. Eu não conseguia tirar meus olhos dos dela. Não conseguia. Ela me beijou, mordiscou meu lábio inferior. Tirou o capacete da minha mão e colocou na minha cabeça fazendo-me voltar à realidade.
- Vamos, estou morta de fome. Presta atenção no trânsito. Parece que você ta no mundo da lua hoje.
Eu subi primeiro na moto ainda rindo da situação toda, ela sentou na garupa, colocou também o seu capacete, me envolveu a cintura e então saímos. Chegamos por volta de vinte minutos ao nosso ponto de destino. Era uma hamburgueria estilo vintage, que vendia lanches e cervejas artesanais. Sentamos bem próximas, praticamente grudadas uma na outra. Escolhemos uma mesa um pouco afastada, bem no fundo da lanchonete, o que nos deu certa privacidade.
Uma energia leve nos envolvia.
Eu pedi uma Coca, ela tomou um suco de morango. Pedimos dois lanches com um nome gourmetizado e batata frita.
O garçom se aproximou.
- Ta pontinho, chefe. - O garçom colocou o prato em minha mesa, depois serviu Amanda na sequência. - Vocês desejam mais alguma coisa?
- Não, grande, qualquer coisa te chamo.
Ele agradeceu e se afastou. Eu sempre achei curiosa a forma como os homens se tratavam, sempre enaltecendo uns aos outros. Grande, chefe, campeão, amigo, parceiro, irmão… Enquanto havia uma competição enorme entre as mulheres. Eu, por ter a aparência que tinha, conseguia transitar facilmente entre esses dois mundos.
- Isso não te incomoda? - Ela perguntou.
Eu dei de ombros.
- Estou acostumada. É normal.
- Às vezes é como se você fosse eu, só que ao contrário... Quer dizer, não quero que você se sinta ofendida... Só acho isso muito legal, é como se de certa forma, mesmo que sendo diferentes as duas coisas, você conseguisse entender.
Tudo aquilo que a minha mãe tinha me dito sobre nós parece que veio à tona naquele exato instante em minha cabeça. Eu tinha certeza que não era de agora que nós nos conhecíamos, exatamente por isso eu me sentia tão em casa com ela. Acho que a gente se completa, Amanda. Pensei comigo mesma, mas não tive coragem de falar, achei que soaria piegas demais. Emocionado demais. Apaixonado demais. E eu não queria que ela me achasse nada disso. Apenas me aproximei e beijei seus lábios. Seu beijo tinha gosto de suco de morango. Demorei longos minutos apenas aproveitando seu sabor.
- Você ta linda nessa camisa. - Ela disse, ajeitando minha gola novamente, igual como tinha feito quando me viu. Dessa vez abriu três botões, fazendo-me sentir o contato de sua pele na minha. - Assim fica mais sexy, você tava muito certinha. - Beijou meus lábios e depois ficou alguns segundos em silêncio.
Então perguntou um pouco insegura:
- Você gostou da minha roupa?
Eu sorri, abaixei os olhos. Era óbvio que eu tinha gostado. Eu tinha amado. E principalmente por saber que ela tinha se arrumado daquele jeito pra mim. Só pra mim. Que tinha escolhido peça por peça pensando em mim, no que eu acharia, se eu a acharia gostosa, bonita...
- O que você acha?
- Não sei... por isso estou te perguntando.
Rocei suavemente meus lábios nos dela. Sussurrei em sua boca:
- Fiquei toda molhada quando te vi.
Seus olhos se fecharam no mesmo instante. Eu tinha ouvido um gemido...? Ela então deitou sua cabeça em meu ombro, mordiscou meu pescoço, sua mão veio de encontro a minha cintura, me apertando. Disse com a voz rouca:
- Você acaba comigo quando fala desse jeito...
Eu estava adorando aquilo. Continuei com o jogo.
- Sabe o que mais eu pensei quando te vi?
- Hum...
- Como você ficaria ainda mais gostosa na minha cama... Eu tirando peça por peça de sua roupa… beijando cada pedaço de seu corpo…
Ela se contorceu, olhos fechados, dominada pelo tesão.
- Tô louca pra te comer por horas e horas sem parar...
Ela então me beijou de forma quente, urgente. Eu estava me agradecendo mentalmente por termos escolhido uma mesa de canto, bem afastada. Corri as mãos por suas coxas, apertei.
- Não faz isso comigo...
Eu ri.
- Por quê? Não gosta?
- Como acha que vou sair daqui, depois disso tudo, com essa calça?
Eu demorei alguns segundos até entender o que ela queria me dizer e depois que entendi comecei a rir. Então algo que seria muito, mas muito divertido passou pela minha cabeça:
- Quer ir ao banheiro comigo...?
Sua feição então mudou, como se eu tivesse jogado um balde de água fria nela.
- Não, é melhor não.
Ela se ajeitou na mesa, tomou um gole de seu suco, comeu uma batata.
- Desculpe... eu falei algo errado?
Ela respirou fundo. Então revelou:
- Banheiro é algo que só entro em casos de extrema necessidade. Já passei por situações muito constrangedoras... que não gosto nem de lembrar.
- Já chamaram um segurança porque pensaram que eu era um cara. Foi muito desagradável também.
- Mas você não é um cara, sabe? Você é uma mulher num banheiro feminino, o que poderiam fazer com você? Nada. Agora imagina eu... Ainda no começo da transição, morrendo de vontade de fazer xixi... Foi muito humilhante. Não me deixavam entrar nem no masculino, nem no feminino... Como se eu fosse um cara vestido de mulher que entrava no feminino pra assediar as mulheres. E eu só queria fazer xixi, só isso. Acho que existe uma preocupação excessiva sobre o que as pessoas carregam no meio das pernas. Acho que o ser humano é muito mais complexo do que apenas um órgão sexual.
- Até porque existem homens cis que perderam o p*nis por conta de alguma intercorrência da vida e isso não faz deles menos homens.
- Isso! Exatamente. Enfim...
Ela enfiou outra batata na boca, um pouco desanimada com o rumo que aquela conversa tinha tomado. Eu envolvi seus ombros com meus braços a trazendo pra perto, encaixando-a em meu abraço.
- Desculpa... eu não quis te trazer lembranças ruins. - Beijei seu rosto de forma doce, carinhosa.
- Foi só um gatilho.
Colocou outra batata em sua boca. Depois colocou uma na minha. Eu sorri.
- Vamos comer? – Perguntei.
Eu pedi outra Coca. Ela agora pediu uma cerveja Colorado que o garçom disse ser a mais pedida dentre as artesanais que eles tinham. Começamos a comer em meio a toques, beijos e carinhos e aquele clima de tensão foi embora.
- Como foi seu dia? - Ela perguntou.
- Entrou um funcionário novo, estou ensinando várias coisas pra ele. Ainda bem que ele aprende rápido. Se a pessoa for meio lerda não consegue dar conta.
- O que você faz basicamente lá? – Ela perguntou.
- Eu cuido de toda a parte financeira da fábrica, cuido da compra e venda de matéria prima, faço contato com os revendedores, fecho acordos, essas coisas burocráticas.
- Sempre trabalhou nessa área?
- Na verdade não, eu entrei lá como peão mesmo. Fazia o serviço mais operacional. Passei pra encarregada. Os caras não gostavam muito de ter uma mulher mandando neles. Acho que ser assim do jeito que sou ajudou muito eles me respeitarem, nunca fizeram gracinha, sabe? Depois a empresa foi dando treinamento, fui subindo de cargo, passei nas entrevistas, nos testes e fui melhorando aos poucos ali de vida. Hoje eles me incentivam a fazer um superior, queriam me mandar pra outro pólo lá em Cubatão, eu ia ganhar mais, mas não sei se quero isso pra mim...
- Por quê?
- Se onde eu estou eles já me cobram horrores... Acho que eu não ia ter mais paz. Estou com a função hoje de duas pessoas. Esse carinha que estou treinando é teoricamente pra me ajudar, sabe? Estou torcendo pra ele se adaptar.
- Ta há quanto tempo lá?
- Sete anos, mais ou menos.
- Nossa... é bastante tempo... Há sete anos eu estava completando 18 anos.
Nós sorrimos.
- Você é bem novinha... Às vezes me esqueço disso.
- Eu gosto...
Ela me beijou.
- Do que ? De ser novinha?
- De você ser mais velha que eu.
- Ah é?
- Gosto de você com essa sua pose de mulher bem resolvida, meio marrenta, durona... mas que no fundo é doce... carinhosa... Às vezes parece que tô sonhando por estar com alguém como você do meu lado...
Eu sorri de forma tímida. Ninguém nunca tinha se referido a mim com esses adjetivos. Talvez porque eu nunca tivesse deixado mostrar esse meu lado a ninguém. Acho que nunca ninguém tinha me permitido me sentir tão à vontade para eu poder ser eu mesma, sem ressalvas. Acho que aquela era a verdadeira Duda.
- Amanda, Amanda... – Disse pensativa.
- O que?
- Eu queria poder tirar toda essa dor que você tem dentro de você...
- Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.
- Já ouvi essa frase antes.
- É da Clarice Lispector.
- A... a escritora da gata. Ela praticamente me ignorou hoje lá na sala.
Ela riu.
- Aquela era a Agatha.
- Agatha a gata.
Ela revirou os olhos e rimos de uma forma boba.
Nós rimos de forma boba.
- Vamos embora? – Ela perguntou com o olhar cheio de desejos, promessas.
- Vamos.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 24/03/2023
Complicado!
thays_
Em: 27/03/2023
Autora da história
Demais!
[Faça o login para poder comentar]
jakerj2709
Em: 24/03/2023
Amando cada vez mais a estória porém acho q ainda teremos problemas pela frente....parabéns autora....
thays_
Em: 27/03/2023
Autora da história
Oi jakerj! Obrigada!! Talvez teremos alguns percalços pelo caminho, mas nada muito grave, acho que Amanda já passou por coisas demais nessa vida! Quero algo mais leve e divertido!
[Faça o login para poder comentar]
Billie Ramone
Em: 24/03/2023
"Eu sempre achei curiosa a forma como os homens se tratavam, sempre enaltecendo uns aos outros. Grande, chefe, campeão, amigo, parceiro, irmão… Enquanto havia uma competição enorme entre as mulheres." - essa frase dói muito... por causa disso estou virando praticamente uma misantropa, não suporto macho heterotop se gabando do que não fazem e não são, e não suporto as loiras-odonto de unha de gel tratando umas às outras como inimigas...
thays_
Em: 27/03/2023
Autora da história
Oi Billie!
Quando a gente começa a problematizar as coisas parece que a convivência com as pessoas vai ficando cada vez mais seletiva, não é mesmo?
Obrigada por estar acompanhando!!
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
thays_ Em: 08/04/2023 Autora da história
Adorei essa parte kkk
Amanda é uma sobrevivente perante a tudo que ela já vivenciou nessa vida.