Goiânia, estado de Goiás

 

Jurema estava na sede do Comuna terminando de vistoriar o almoxarifado quando foi surpreendida por uma visita inesperada. – Ora, ora, você por aqui? – olhou para a outra – E pelo que percebo, sem a gargantilha. – reparou – Que beleza, hein? -- brincou

 

Renata sorriu por baixo da máscara. – Agora o pescoço carrega só o colar indígena feminino de luta que uma comuna me deu. – piscou para a professora

 

Sorriu por baixo da máscara também. – Você deu sorte de ter me encontrado aqui, porque desde que a pandemia começou a sede tem ficado a maior parte do tempo vazia. – trancou a porta do almoxarifado – Vim pra terminar de ver se todo o material do protesto que faremos tava devidamente organizado e, graças a Deus, está! – guardou as chaves na bolsa – Mas eu já tava de saída. – reparou no mochilão nas costas da loura – “E pra onde será que ela vai?” – pensou curiosa

 

--Dei sorte mesmo. – passou a mão nos cabelos – Até porque, eu vim te pedir um favor. – afirmou encabulada – Nem sei se você vai topar...

 

--E o que seria? – cruzou os braços desconfiada

 

--Vim direto de Sorocaba pra cá. – colocou as mãos nos bolsos das calças – Queria saber se... – pensava em como dizer – Será que... você pediria uma vaguinha no abrigo da dona Kedima pra mim? – sentiu o rosto queimar – É só enquanto durar esse período de manifestação... – pausou brevemente – E eu tô doida pra participar de tudo isso! – olhou para a outra – Sem nenhum objetivo marqueteiro, eu juro! – dizia a verdade

 

Gastou uns segundos calada antes de responder: -- Pra hoje é meio complicado porque já são – olhou brevemente para o relógio – nove e quarenta da noite. – pausou brevemente – Você dorme na minha casa essa noite e amanhã eu falo com camarada Yara. – decidiu – Não acredito que dona Kedima te negue pouso, mas não garanto no caso da camarada.

 

--Tá, tá beleza! – sorriu – Na sua casa então! Obrigada! – aceitou animada – Pode deixar que me comporto direitinho!

 

--Assim espero. – fez sinal para ir embora – Vamos andando!

 

--Vamos! – concordou – “Essa Jurema é muito da hora!” – pensou – “E bem gostosinha também, puta merd*!” – constatou ao reparar no corpo da indígena – “Porr*, cê tá sem mulher esse tempo todo e tem ido até muito bem. Não vai botar tudo a perder, Renata! Se segura aí!” – aconselhou-se mentalmente

 

***

 

--Então a gente vai fazer dessa forma. – Jurema terminava de explicar o combinado à Renata – Prepare-se que o grande dia é depois de amanhã!

 

--Não vejo a hora! – respondeu que nem criança – Duvido que o pessoal do Monta espere por manifestações dessa ordem em plena pandemia! – esfregou as mãos excitada – Vai ter repercussão até fora do país! – sorriu por baixo da máscara

 

--Assim esperamos! – levantou-se do sofá e foi para o quarto – Vou pegar roupas de cama pra você dormir aí nesse sofá. – falou um pouco mais alto – É confortável e garanto que não vai acordar doída.

 

--Sem crise! – levantou-se também – Você acha que... se eu convocasse o pessoal nas minhas redes sociais... isso ia queimar o filme do protesto? – perguntou humildemente – Afinal de contas, né? Tô mais suja que pau de galinheiro... – assumiu constrangida

 

“Ela realmente mudou!” – pensou -- Eu acho que o saldo final seria positivo. – voltou para a sala trazendo lençol e travesseiro – Você tem seguidores e muita gente passou a te apoiar depois da sua postura na prisão e durante a Deduração Sorteada. – entregou lençol e travesseiro nas mãos da loura – Além do mais você é livre pra protestar. O Comuna e nem ninguém pode te impedir de fazer isso.

 

--Obrigada! – sorriu com gratidão – Você não sabe o quanto suas atitudes sempre me fazem bem! – falava com sinceridade

 

--Por nada. – passou a mão nos cabelos – Agora eu vou dormir. Com licença e boa noite. – preparou-se para voltar para o quarto – Qualquer coisa que precisar, me chama. – deu tchauzinho e foi embora

 

--Boa noite! – acompanhou a indígena com o olhar – “E além de toda boa ela é tão meiguinha...” – continuava reparando – “Se bem que eu desconfio que Yara dá uns pega nessa mina.” – considerou – “É uma merd* que eu sempre perco pra Yara, puta que pariu!” – começou a arrumar uma cama improvisada no sofá – “Deixa eu cuidar de dormir que é o melhor que eu faço!”

 

 

Brasília, Distrito Federal / Goiânia, estado de Goiás

 

A televisão apresentava ao vivo o depoimento de um deputado de esquerda na CPI da CONVIDE. Enquanto isso, na capital federal e em praticamente todas as capitais brasileiras, pessoas se organizavam em uma grande manifestação contra o governo.

 

--Feitas as considerações iniciais pelos membros desta Casa, o que vossa excelência tem a nos dizer sobre a postura do governo federal no combate à grave pandemia da CONVIDE-0, a qual tantas vidas têm ceifado diariamente neste país? – o relator perguntava ao deputado

 

--Além de ter defendido o não uso de máscaras, de ter promovido a adoção de medicamentos sem eficácia comprovada, de ter minimizado a gravidade da pandemia e de ter atrasado a compra de vacinas, o governo federal incorreu em vários outros erros, caracterizando um verdadeiro genocídio e crime de prevaricação!

 

--Eita, que o homem já chegou metendo o pé na porta! – Kedima esfregou as mãozinhas animadamente – É isso aí, bota a boca no trombone! – incentivou -- Quero ver sangue!

 

--Cruzes! – Marcio arregalou os olhos

 

--Senhor deputado, por favor, não cabe à vossa excelência dizer à Comissão qual será a indicação ou conclusões que nossos trabalhos apresentarão. – o relator da CPI advertiu – Para fazer uma afirmação tão taxativa é necessário que vossa excelência apresente provas inequívocas que embasem suas acusações!

 

--Perdoe-me o arroubo, excelência, mas tenho tais provas aqui comigo! – abriu sua pasta e colocou vários documentos sobre a mesa – Fui procurado por um ex integrante dos Justiceiros, o qual me municiou com evidências daquilo que estou prestes a lhes informar em detalhes! – falava com propriedade – Tudo isso em adição à minha atuação dedicada e consciente em prol do povo brasileiro! – fez uma auto promoção

 

--Por enquanto o plano tá dando certo... – Goulart falava consigo mesmo enquanto assistia pela televisão – Só mesmo Elza pra me fazer dar um cartaz desse a um deputado de esquerda... – suspirou

 

--O governo federal alega carência de recursos para investir no combate à pandemia! – o deputado continuava seu depoimento – Mas tenho aqui comigo, disponível para apreciação das senhoras e senhores, evidências de que a corrupção é uma das maiores responsáveis por esta pretensa falsa de recursos!

 

Em frente ao Congresso do País, membros de diversos movimentos populares como grupos de mulheres, quilombolas, indígenas, estudantes, LGBTs, o Movimento dos Sem Posses, sindicatos, representantes de diversas categorias profissionais e religiosos de todas as orientações protestavam contra o estado de calamidade no qual o Brasil se encontrava. Partidos políticos de esquerda também marcavam presença.

 

--Cara, tá foda demais! – Renata exclamava animada – Uau!

 

--Mais cheio do que eu pensei! – Jurema respondeu orgulhosa – Droneiros, tá com vocês! – passou mensagem para os pilotos

 

--E não é que Renata veio? – Celeste perguntou surpreendida – Por essa eu não esperava!

 

--Eu não quero nem lembrar desse pequeno detalhe! – Yara respondeu contrafeita – “Pensa no que dona Kedima falou! Pensa nos conselhos do Mestre Jesus! Não julgue!” – a indígena falava mentalmente para si mesma – “Foca no momento!”

 

Pessoas carregavam cartazes com a fotografia de padre Camilo, do estudante militante Marcio Kleber Araújo e da deputada carioca morta em um atentado ainda sem responsabilização de culpados. Fotos de pessoas mortas pela CONVIDE igualmente estampavam as camisetas de muitos.

 

Mulheres vestidas com trajes de orixás seguiam na frente dos manifestantes cantando em voz alta:

 

“Ogum, Ogum, levanta tua espada, Ogum,

Ogum, Ogum, teu povo quer justiça, Ogum...”

 

--Tenho aqui comigo provas da ocorrência de um verdadeiro Propinão da Educação! – o deputado mostrava os documentos – Evidências de várias movimentações financeiras corruptas ocorridas num esquema em que pseudo líderes religiosos evangélicos, sem cargo no governo, cobravam propina para liberar o repasse de verbas do Ministério da Educação às prefeituras de várias cidades brasileiras! – olhava para os demais – E o governo federal tem ciência de tudo isso! – falava com ênfase – Vejam as cifras envolvidas no esquema! – mostrava os números

 

“Teu povo não é qualquer um,

Teu povo quer justiça, Ogum...”

 

--Aqui lhes mostro as emendas do orçamento tornado secretíssimo, as quais permitem a compra de parlamentares em troca de votos favoráveis às pautas do grupo no poder! – o deputado falava em voz bem alta – Foram 18 bilhões de reais destinados só para isso! -- acusava

 

“Teu povo não é qualquer um,

Teu povo quer justiça, Ogum...”

 

A DJ Let Dany iniciava uma batida agitada para que sua esposa Gil do Beco cantasse o rap que impulsionaria a passeata.

 

--"Tem favela, não espera, quem miguela, se rebela, promotora não revela,” – a rapper gesticulava ao microfone – “Quem mandou matar Bela?” – Gil perguntava

 

--Tivemos o superfaturamento na compra de ônibus escolares, -- o deputado apresentava mais denúncias – além do contrato de uma empresa de fachada para pavimentação de vias públicas! – mostrou outro documento – Mais uma vez destaco as cifras envolvidas!

 

--Excelência, por favor, detenha-se no que diz respeito à pandemia! – um dos membros da CPI repreendeu

 

--Mas o governo não disse que faltava verba? – o deputado respondeu com ironia – Eu só mostrava para onde a verba foi destinada, excelência! – olhava para o homem – Só em cartão de crédito corporativo, a presidência gastou cerca de 30 milhões de reais nestes anos de governo! – sorriu – E com o que? -- gesticulou

 

--"O que vocês vão dizer agora? Qual mentira, ver se cola? AI-5, da cartola!” – Gil continuava cantando

 

--Ave Maria, é muita corrupção! – Kedima se escandalizava – E pensar que disseram que votar nesse homem era pra acabar com a roubalheira! Que piada!

 

--Fazia muito tempo que eu não via tanta gente mobilizada! – Omar reparou emocionado – As forças de repressão já vêm se juntando pra pegar todo mundo, mas vão ter trabalho! – sorria por baixo da máscara – Vão ter trabalho!

 

--Eles vêm pra bater e a gente pra resistir! – Yara pegou um microfone também – Segue junto, camarada!

 

--"Sua gente não é gente como a gente, nossa gente não tem medo da sua gente, se laranja alimenta presidente, nossa alma tem Palmares presente!” – Gil cantava em voz bem alta

 

--Aqui eu apresento aos membros desta distinta CPI que tivemos o episódio da compra superfaturada de vacinas do Camboja! – o deputado continuava falando

 

--"Entrega PETROBRAZA, entrega ELETROBRAZA, entrega Previdência, entrega Satanás!” – Yara começava a cantar – “Nacionalismo fake!”

 

–Encerro meu depoimento denunciando a destinação de cerca de 400 mil reais para a compra de remédios para ereç*o masculina, além dos 600 mil reais voltados à compra de duzentas varinhas de condão e quinhentos p*nis de borracha! – o deputado entregou todos os documentos ao relator

 

--Varinha pra que, gente? – Sidney perguntou curioso – Queria uma! Imagina só, que luxo! -- gesticulava

 

--Ai, onde que pega um p*nis desse, hein? Será que tem pra dar no posto de saúde? – Laura perguntou empolgada

 

--Toma vergonha vocês! – Kedima ralhou de cara feia – Eu hein, é tudo tarado!

 

--"O palhaço não fabrica mais piada, a plateia tá ficando irritada, óleo cru derramado não tem graça, o nordeste tá querendo tua carcaça”! – Yara continuava cantando –"Preciso respirar!”

 

--E ele entregou tudo! – Goulart afirmava satisfeito diante da TV – Agora acho que Elza pode respirar aliviada! – sorriu

 

--"Melhor você vazar, Amazônia fica!” – Yara cantava olhando para Gil – “Madeireiro é seu parceiro, índio é o entrave da história, teu discurso estimula mortes!”

 

--Tá dando condição, vamos avançar! – Jurema propôs a invasão da entrada do Congresso – Vambora, pessoal, vamo, vamo! – acenava para a multidão

 

--É sério? – Renata se surpreendeu – SIMBORA, VAMO!!!!!!!!!!! – gritou dando socos no ar – VAMO INVADIR!!!

 

--FORA MONTANAURO!!!!!!! – vários gritavam

 

--“Verme por verme, rato por rato, tudo amarremos no saco!” – Gil e Yara cantavam juntas – “Tua gangue foi além do limite,” – seguiam caminhando com a multidão – “clã, cargo, cabide, pra Ku Klux Klan da CONVIDE!”

 

--"Somos milhões no apetite, gente negra, humilde!” – Gil cantava

 

--"Classe operária em riste!” – Yara cantava dando socos no ar – “Vamos ver quem decide: sovietes ou Auschwitz!”

 

As forças de repressão começaram a agredir os manifestantes. Bombas bestificantes eram arremessadas por toda parte. Tiros com projéteis de borracha e spray de pimenta igualmente castigavam os presentes.

 

“Diga sim,

A quem nos quer acolher,

Mas se for pra nos prender,

Diga não...”

 

Os manifestantes buscavam resistir como podiam.

 

--FORA GENOCIDA!!!!!!! – gritavam

 

“Ninguém vai ser torturado

Com vontade de lutar...”

 

--FORA MONTANAUROOOO!!!!!!! – gritavam

 

“Ninguém vai ser torturado,

Com vontade de lutar...”

Gíria Vermelha ft Luciana Pinheiro e Lenin Akil - Sovietes ou Auschwitz [1] com pequenas adaptações

 

(NOTA DA AUTORA: Essa música marcou um evento de esquerda muito importante do qual participei durante a pandemia, que foi quando tive a oportunidade de conhecer o Gíria Vermelha, Luciana e Lenin. Fico sempre arrepiada ao ouvi-la e recomendo que assistam o clipe. O link está ao final do capítulo)

 

***

 

--Eu não entendi o chamado pra uma reunião de emergência a uma hora dessas da noite! – um funcionário reclamava – Espero que o assessor não tome muito do nosso tempo. – falava para os demais – Um sono... -- bocejou

 

--E não vou tomar! – o homem entrava na sala exasperado – O que tenho a dizer é simples e direto! – olhava para todos – Feche a porta, João! – ordenou ao auxiliar – Já sabemos quem é o nosso traidor! – declarou convicto – Ou melhor, -- olhou para Elza – traidora!

 

A negra sentiu-se a ponto de desmaiar mas se conteve. “Meu Deus, o que é que deu errado no plano do tio Goulart?” – pensou nervosamente – “Fique calada, Elza, fique calada!” – aconselhava-se

 

--Como assim? – outro assessor se levantou indignado – É a senhora, tenente coronel? – olhou para a mulher – A senhora é uma vergonha pra toda... – falava com o dedo em riste

 

--Não é ela! – o assessor principal interrompeu a fala do outro – É a assessora Maria Clara Magalhães! – afirmou enfático

 

“O que??” – Elza pensou em estado de choque

 

--Mas como pode?? – outro funcionário perguntou incrédulo – Maria Clara tá com a gente há anos! – não conseguia aceitar

 

--Falando nela, onde se encontra? – o outro assessor perguntou olhando para todos os lados

 

--Não atendeu à convocação e nem vai atender! – o assessor principal concluiu revoltado – Assinou embaixo que tem culpa no cartório! – falava de cara feia – Canalha! – deu um soco na mesa

 

--Mas... – a militar sentia-se confusa – Por favor, será que alguém poderia nos explicar o que está acontecendo? – pediu buscando disfarçar o nervosismo

 

--Creio que todos estejam cientes do depoimento que o deputado José Minho prestou hoje na CPI da CONVIDE, quando apresentou uma série de denúncias bombásticas contra o governo! – o homem começou a explicar – Ele disse que recebeu o material de um ex Justiceiro! -- destacou -- Não era do conhecimento de todos aqui, mas o deputado Magalhães, marido da assessora, tem ligação com os Justiceiros! – sentia ódio – Então não é preciso explicar mais nada!

 

--Perdoe, assessor, mas há que se tecer algumas considerações. -- Elza novamente falou – De fato, pelo menos eu não sabia disso, mas esse envolvimento do marido dela com os Justiceiros, por si só, não a incrimina. Por que o senhor assume de imediato que ela é a traidora?

 

--Porque a Inteligência tem provas que mostram que o traidor é uma mulher! – respondeu de imediato – E a atitude dela em não comparecer nesta reunião fala por si só! – olhava para Elza – Reparou que hoje ela nem veio trabalhar?

 

“Como se viesse todo dia...” – a militar pensou sem verbalizar

 

--Inocência do nobre colega pensar que aquela vagabunda viria depois de tudo isso! – o outro assessor desceu o nível da conversa – Vamos dispensar os demais e nos reunir na sala do Clã para decidir o que fazer! – propôs

 

--De acordo! – o assessor principal concordou – Os demais estão dispensados. – fez um gesto rápido

 

“Meu Deus...” – Elza pensava angustiada – “Por essa eu não esperava!”

 

***

 

--Eu não entendo, Elza, por que tudo isso? – Goulart perguntava com voz fraca – O plano deu mais certo que o esperado e você aí à beira de uma crise de nervos? – não entendia – Meus contatos conseguiram documentação suficiente pra provar a ocorrência de toda corrupção que você apontou, Benício Lama topou se passar por ex Justiceiro e o deputado José Minho fez o show dele no depoimento à CPI. – resumia os fatos – Você saiu limpinha dessa história toda! – olhava para a negra

 

--Tio Goulart, pelo amor de Deus, me entende! – gesticulava – Eu não esperava que tivesse vazado alguma coisa dos documentos que Castrodeza enviou, não esperava que soubessem que a traição partiu de uma mulher e não esperava que a única mulher além de mim naquele Gabinete tivesse algum tipo de ligação com os Justiceiros! – olhava para o homem – Será que o senhor não vê que uma pessoa inocente agora corre risco de vida por minha causa? – sentia-se mal com a situação

 

--Ora, Elza, pare com isso! – desconsiderou a preocupação – Você acha que duas cobras criadas como Maria Clara e o marido dela são inocentes de alguma forma? – riu brevemente -- Se bobear, enquanto José Minho falava pelos cotovelos junto à CPI, Magalhães ficou sabendo de tudo, foi atrás da mulher e a essa altura, os dois devem estar até fora do país! – especulou

 

--Deus queira! – desejou ao se benzer – Se algum dos dois aparecer morto, eu vou surtar porque a culpa vai ser minha! – andava de um lado a outro

 

--Pare de sofrer por antecipação e veja se controla suas emoções! – aconselhou – Continue se comportando normalmente e interrompa de vez a atuação como informante da esquerda! – pausou para respirar – Depois de tudo que foi vazado até agora, considero que sua missão foi totalmente cumprida!

 

Deu um suspiro profundo e esfregou o rosto com as mãos. – Vou seguir seu conselho e rezar todos os dias pra que nenhum mal aconteça à Maria Clara ou ao marido dela. – pegou o crucifixo do cordão e o beijou – E serei eternamente grata ao senhor pelo que fez! – sorriu para ele – Não deve ter sido nada fácil!

 

--Realmente não foi. – concordou – Especialmente a parte de dar palco pra deputado de esquerda aparecer! – gesticulou – Mas confesso que me decepcionei muito com o governo. Não foi como eu esperava!

 

--Que bom que o senhor se decepcionou! – olhava para o homem – Era triste ver alguém como o senhor apoiando essa ideologia terrível que eles defendem!

 

--E hoje em dia, Elza? – perguntou curioso – Você é de esquerda? – queria entendê-la

 

--Não! – respondeu de pronto – Sou pelo certo e só! – cruzou os braços – “A única coisa da esquerda que me interessa é Yara!” – pensou – “Espero que ela esteja realmente bem e não tenha me enganado quando disse que não se machucou no protesto!”

 

***

 

--Graças a Deus, dessa vez você voltou inteira! – Kedima dizia para a indígena – Não sei por que, mas algo me dizia que você ficaria bem, por isso que dei força pra ir no protesto. – balançou a cabeça pensativa – E eu também botei o distintivo da polícia e o brazão de tudo que é força de repressão no congelador!

 

Achou graça. – E como pode isso? – riu brevemente – Onde a senhora arrumou tanto distintivo e brazão? – a indígena perguntou curiosa

 

--Pedi pros menino procurar na internet e imprimir pra mim. – esclareceu – Pra efeito de reza tá valendo, né? As almas entendem! – gesticulou – Afinal de contas, elas devem acompanhar essa modernidade de algum jeito!

 

Riu novamente. – A senhora tem moral com suas almas... – sorria – Elas protegeram a mim e a Elza, que pelo que deduzo, saiu da mira do clã Montanauro! – benzeu-se – Graças a Deus!

 

--Amém! – a idosa concordou ao se benzer – Agora é pôr um fim nos dias de espiã e aturar quietinha até o fim desse governo horrível! – considerou – Coloquei o nome de Montanauro e de cada filho dele no congelador e não tiro de lá até o resultado das eleições do ano que vem!

 

--Ai, ai... – achava graça -- Mas, deixe lhe perguntar. – pausou brevemente – Renata foi embora ontem, a senhora reparou se sumiu alguma coisa? – questionou desconfiada – Ela fez alguma besteira, ficou sabendo de alguma rata?

 

--Humpf! – fez um bico – Que nada, menina! – fez um gesto despreocupado – Já lhe disse que aquela loura mudou e eu tenho bom olho pra perceber esses trem! – garantiu – Ela realmente mudou!

 

--Tomara que a senhora tenha razão! – respondeu de pronto – É... – olhou para o relógio e se levantou – Agora eu tenho que dar uma aula on line. Depois conversamos! – beijou a testa da idosa – Até logo!

 

--Até logo! – acompanhou a indígena com o olhar

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--Own, que lindinha da tia! Lindinha da tia! – Malu brincava com a criança em seus braços – Mas é uma fofurinha, essa Juju, não é Juju? – sorria por baixo da máscara – Não é Juju?

 

--Garbosa, vossa filha pelo coração é como que banhada em mel! – Machado olhava para a criança – Não há como não se derreter e se apaixonar! – segurou a mãozinha da menina – Juliana, rebento bendito, sejais bem vinda a esta família que vos acolhe! – dizia para ela – Empoderadinha és! Avante, bebê ditoso! Mostrai vossa negritude pueril ao mundo! -- bradou

 

Achou graça. -- A gente não consegue adotar de papel passado e tudo, mas a avó dela garantiu que a menina é nossa! – Fernandão dizia – O pai morreu, a mãe sumiu pelo mundo e ela é uma idosa que não tem mais condição de cuidar de criança!

 

--Também vamos dar uma forcinha pra ela, porque afinal de contas, a mulher é muito pobre! – Alana complementou – Mora num barraco de dar dó!

 

--Eu fiquei muito orgulhosa de vocês, meninas! – Malu olhou para o casal – Adotar uma criança deficiente física e ainda ajudar a avó dela não é atitude pra qualquer pessoa! – considerou – Vocês são incríveis!

 

--Que é isso, tia? – Alana respondeu timidamente – Além do mais sou fisioterapeuta, né? – sorriu – Juju não tem uma perninha, mas eu vou dar todo jeito pra vida dela ser muito boa apesar disso!

 

--E eu tô junto pro que der e vier! – Fernandão afirmou com a verdade

 

--Igualmente meu peito se enche de orgulho jubiloso diante de vós, garbosa! – Machado concordava com a esposa – Vós sois a luz do mundo! Mostrai o bom exemplo militar a toda gente!

 

Ficou toda prosa com o que ouviu. -- É ótimo que os dois tenham gostado tanto dela, porque na verdade viemos aqui convidá-los pra ser os padrinhos da Juju! – a sargento fez o convite

 

--E não aceitamos resposta negativa! – Alana olhava para os dois

 

BUFF! – um som brusco se fez ouvir

 

--Meu Deus, ele desmaiou! – Malu arregalou os olhos – Ajuda, gente, faz alguma coisa! – pediu desesperada com a menina nos braços

 

--Eu acho que isso foi um sim, né? – Fernandão perguntou para a esposa olhando para Machado estatelado no chão

 

 

Brasília, Distrito Federal / Sorocaba, estado de São Paulo

 

--Um abrigo para pessoas LGBT, localizado na cidade de Goiânia, viveu horas de terror no início da noite de hoje. – o repórter anunciava solene – Direto no local, a repórter Denise Lyra traz mais informações.

 

--O que?? – Elza corria nervosamente para a sala – Tio Goulart, aumenta, aumenta! – pediu olhando para a TV – Só pode ser o abrigo de Yara! – deduziu – Ai, meu Deus! – segurou o crucifixo do cordão

 

--Hein? – o homem pegou o controle e aumentou o volume – Calma, Elzinha, vamos ouvir. – pediu

 

--Por volta das 19h do dia de hoje, segundo relato de testemunhas, um grupo de três homens encapuçados tentou incendiar o casarão do Abrigo Ibtisaama, localizado na Alameda dos Buritis, Setor Oeste de Goiânia. – a repórter narrava olhando para a câmera – Felizmente, no entanto, os fortes ventos que atipicamente sopravam na capital de Goiás desviaram a direção das chamas e os residentes do abrigo conseguiram debelar o incêndio antes mesmo do Corpo de Bombeiros chegar. – informava os fatos – Ninguém saiu ferido mas o abrigo amargou severos prejuízos materiais.

 

--Eu sabia que era o abrigo dela! – Elza olhava penalizada para as imagens – Mas que inferno, não se pode ter um minuto de paz? – cruzou os braços agoniada

 

--Meu, é o abrigo! – Renata arregalou os olhos

 

--Você dormiu lá, não foi? – Jaqueline perguntou preocupada

 

--Minha colega Mary e eu távamos chegando do mercadinho quando a gente viu os três bandidos jogando gasolina nos fundos do abrigo. – Paulo dava entrevista – Aí eu gritei: “pega ladrão!”, porque não sabia o que falar, né? – gesticulava -- Um deles jogou um coquetel voronoff na poça de gasolina e todo mundo saiu correndo, só que esse que jogou o trem, tropeçou na raiz de uma árvore na calçada e caiu com as fuça no chão! Os outros dois entraram num carro. – narrava o que viu – Aí, de repente, quando dei por mim, vi que Yarinha tava agarrada na canela do bofe e conseguiu tirar o capuz dele. Só que o peste se desvencilhou e correu pro carro que saiu cantando pneu! – encerrou sua versão dos fatos – E te contar, viu? Bichinho feio!

 

--Gente, será que ele machucou Yara?? – Elza perguntava mal contendo a aflição – Meu Deus... – os olhos marejaram

 

Goulart observava a sobrinha sem nada dizer.

 

--Eu tava indo jogar o lixo fora quando ouvi aquela gritaria e dei de cara com as labaredas nos fundos da casa. – Yara dava entrevista – Quando vi o homem tentando se levantar, corri até ele e o agarrei pelo tornozelo. – segurava um saco de gelo sobre o rosto – Arranquei o capuz e vi muito bem de quem se tratava: -- olhava para a câmera – justiceiro Hilton Viejo, o assassino de padre Camilo! -- acusou

 

Elza caiu sentada sobre o sofá. – Ai, meu Deus! – cobriu o rosto com as duas mãos – Esse homem não vai descansar enquanto não acabar com a vida dela! – começou a chorar

 

--Calma, Elzinha... – Goulart sentou-se ao lado dela e a abraçou – Calma... – não sabia o dizer

 

--Condenado como o responsável pelo assassinato do padre Camilo Roldó e pelo primeiro atentado contra a professora universitária Yara Saraíba, -- a repórter voltava a falar -- o justiceiro Hilton Viejo havia sido preso em 2019, -- mostrou-se a foto do homem -- mas teve sua pena reduzida em função de uma Deduração Sorteada em que forneceu informações valiosas sobre o esquema das Quebradinhas, no Rio de Janeiro, envolvendo os sete filhos do presidente Montanauro. – olhava para a câmera

 

--Porr*, é muita injustiça nesse país! – Renata se revoltava – O cara é um assassino e já tá solto na rua fazendo merd*! – reclamou – E agora, como essas criaturas vão ficar, meu Deus?

 

Jaqueline notou que a filha se importava e gostou do que percebeu. – Talvez seja sua hora de fazer alguma coisa, não? – perguntou olhando para a loura

 

Renata olhou para a mãe com olhos receosos.

 

--Chega de ver isso! – o brigadeiro decidiu ao desligar a TV – Notícia de televisão só serve pra azucrinar o juízo da gente! – falou com voz fraca

 

--Ai, tio Goulart, eu ando a ponto de ter um troço! – desvencilhou-se devagar e se levantou – Primeiro foi aquele estresse todo pra me tirar da mira do pessoal do Gabinete e agora isso! – andava de um lado a outro – Eles só esperaram passar um mês pra ir perseguir Yara! – secou os olhos com as mãos – Imagina se tivessem conseguido incendiar o abrigo! Quanta gente inocente seria morta de um jeito horrível!

 

O militar olhava para a negra e se sentia muito mal. “E pensar que tudo isso começou por minha causa...” – pensava com remorso

 

--Não foi anteontem que Montanauro fez aquele discurso dizendo que nunca teve nada com os Justiceiros, que repudiava eles e tal? – Elza continuava pensando em voz alta – A opinião pública já andava contra eles e agora depois dessa ruptura da parte do governo, os caras enlouqueceram! – balançava a cabeça contrariada – Eles tão aí pra aloprar!

 

--Se acontecesse algo com Yara... – Goulart perguntava titubeante – Você não suportaria, não é? – prestava atenção na reação

 

--Eu preferiria morrer a ver algo de ruim acontecendo com ela! – respondeu de imediato – Se Yara for assassinada... – não queria nem pensar – Acho que uma parte de mim morrerá junto com ela!

 

O homem ficou pensando sem nada responder.

 

 

Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro

 

Jonas chorava emocionado com o bebê em seus braços. – Nosso filho, amor... – debruçou-se sobre o leito da esposa – Nosso garotinho... – sorriu com os olhos úmidos – Perdemos duas pessoas amadas, -- referia-se à sogra e à cunhada – mas Deus nos trouxe mais duas! – chorava – Nosso filho e nossa sobrinha! – pensava na pequena Juliana

 

--É verdade... – Alessandra chorava também – E nós vamos cuidar muito bem deles... – olhava para o bebê – Da nossa Juju e do nosso Emmanuel! – olhou para o marido

 

--É o nome que você quer pra ele? – sorriu – Então assim será! – concordou – Bem vindo ao mundo, Emmanuel! – saudou o filho que chegava

 

Alessandra sentia-se, mais que nunca, renovada em sua esperança diante da vida. “Agora eu sou mãe, tenho por obrigação lutar contra qualquer tristeza que me domine!” – pensava – “E fazer do meu filho um homem bem diferente desse modelo tosco de macho que o montanaurismo representa!”

 

 

Guarulhos, estado de São Paulo

 

--Senhores, antes deste pequeno grupo se desfazer de vez, ainda temos uma última missão! – Goulart dizia aos demais – Os Justiceiros precisam ser anulados de uma vez por todas!

 

--Essa porr* nunca vai ter fim, Goulart! – um dos homens protestou – O que são os Justiceiros senão um bando de homens ultra radicais que acham que podem fazer justiça com as próprias mãos e ao preço que for? – considerou – Gente assim está em toda parte!

 

--Sei disso, mas depois da ruptura que Montanauro promoveu e das prisões que já aconteceram, o grupo dos Justiceiros ficou quase acéfalo! – respondeu de pronto – Esse mês de setembro foi marcado por mais manifestações contra o governo e a CPI da CONVIDE provavelmente termina seus trabalhos agora em outubro. – pausou para respirar – Claro que cabeças vão rolar pra tentar apaziguar a situação, por isso temos que aproveitar o momento pra localizar Hilton Viejo e os outros dois que tentaram incendiar o abrigo de Goiânia! – falava com a maior ênfase com que poderia – Esses homens têm que ser presos e anulados!

 

--Então agora você tá interessado no bem estar da índia comuna e dos LGBTs, como é isso? – outro homem perguntou desconfiado – Cada vez menos te entendo, Goulart!

 

--Eu comecei essa treta! – o brigadeiro assumiu – Eu tenho que dar um fim nela! – olhou para os demais – Pelo passado que tivemos os senhores me devem e essa dívida estou cobrando agora!

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Yara e os demais residentes do abrigo de Kedima trabalhavam num sábado de outubro para reconstruir o casarão. Desde a tentativa de incêndio, ocorrida em agosto, o grupo seguia ajudado pelos membros do Comuna, porém os prejuízos eram consideráveis e a recuperação total do casarão exigia ainda muito trabalho.

 

--Dá até tristeza! – Jurema comentava com Celeste – Quanto mais a gente trabalha, parece que mais longe o fim está!

 

--Verdade, camarada! – a mulher concordou – Mas não podemos desistir!

 

--Eu fico triste de ver vocês trabalhando que nem burro de carga e eu aqui sem fazer nada! – Kedima lamentava – Desde agosto essa labutação e eu aqui, só espiando! – reclamou

 

--A senhora é idosa e já fez muito por nós! – Yara respondeu com brandura – Deixe que desse trabalho pesado a gente cuida!

 

--Confia, amore! – Telma respondeu afetada – Teus filhos têm poder! – piscou para a idosa

 

--Eu achei super massa que Gil do Beco e a esposa dela tivessem dado uma força depositando uma graninha na conta da dona Kedima! – João comentou enquanto trabalhava – Gostei de ver que Gil não negou as origens. Afinal de contas namorou Yara e teve uma história nesse abrigo!

 

--Solidariedade entre as cantoras, meu bem! – Maria piscou para o marido

 

--Quem vem chegando ali? – Omar perguntou ao reparar em um carro que parava – Ih, e não é que...? – reconheceu a mulher

 

--Renata?? – Yara perguntou incrédula – E vem de mala e cuia? – constatou ao observar – Ela tá pensando o que??

 

--Salve, pessoal! – a loura se aproximava cumprimentando os demais – Cheguei bem na hora da labuta, né? – deu um sorriso tímido – É só o tempo de juntar meus treco num canto que já venho pra somar também!

 

--Você tá pensando o que? – Yara aproximou-se da loura – Sabe que o abrigo tá no maior perrengue e ainda veio pra cá pra que? – falava de cara feia – Pra morar? – parou diante da mulher – Você já fez o seu showzinho no dia do protesto, agora não é mais o momento pra isso!

 

Ficou chateada com o que ouviu. – Eu não fiz showzinho no dia do protesto e nem tô fazendo agora! – Renata encarou a indígena – Eu vim pra cá pra morar, pra ajudar e só saio daqui se dona Kedima me mandar embora! – olhava nos olhos

 

--Gente, calma, não precisa disso! – Jurema se aproximava das mulheres

 

--Essa conversa é entre nós! – Yara respondeu sem desviar o olhar da loura

 

--É entre nós, sim, Yara! – Renata concordou – E eu te peço perdão por tudo que fiz! – pediu com muita verdade – Não posso mudar o passado mas tô aqui pra me redimir! – os olhos marejaram – Desde que ganhei liberdade tava em Sorocaba, trabalhando no negócio da uva Itália que minha família toca, mas a luta me chamou! – desabafava – Minha mãe me disse que eu deveria seguir o que meu coração mandasse e ele me mandou vir pra cá! Eu quero viver no abrigo, com vocês, e encampar a luta como nunca fiz na vida! – derramou uma lágrima – Então deixei tudo redondo em Sorocaba, vim pra cá, tenho recursos, posso ajudar e quero ajudar! – pausou brevemente – Por favor!

 

Jurema se emocionou com o que ouviu. – Yara... – olhava para a amiga

 

--Filha? – Kedima chamou e ela olhou – Todos merecem uma chance. – falava com brandura – Eu quero que ela fique. Você não?

 

Yara deu um suspiro profundo e olhou de volta para Renata. – Você fica! – percebeu a felicidade da outra – Mas se fizer uma sacanagenzinha que seja... – advertiu

 

--Não farei! – interrompeu a fala da outra – Tem minha palavra! – garantiu – E Renata Vilani tem palavra! Você e todo mundo aqui vai ver isso!

 

--Então aproveita pra juntar teus trem ali naquele canto e vai ajudar a limpar as vidraças, tá legal? – Jurema se intrometeu para quebrar o clima de tensão

 

Renata concordou e se preparou para fazer exatamente como Jurema disse. Yara gastou uns segundos calada olhando para a amiga.

 

--Tá interessada, Jurema Pataxó? – perguntou com um sorriso malicioso nos lábios – Notei uma preocupação meio diferenciada aqui.

 

--Não sei, Yara Saraíba! – respondeu no mesmo tom – E se estiver? – piscou para a outra e se afastou

 

Renata se ajoelhou diante de Kedima e beijou a mão da idosa. – Obrigada! – agradeceu de coração – Eu juro que não vou decepcionar a senhora! – dizia a verdade – Eu errei, errei feio, errei muito, mas dessa vez vou acertar!

 

--Tenho certeza que vai, minha filha! – sorria – Tenho certeza! – a idosa concordava – Apenas quem nunca errou pode negar uma segunda chance a alguém. E assim como você, mas de outras maneiras, também errei muito e luto diariamente pra me redimir! – admitiu

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

--E pela primeira vez desde o início da pandemia o Brasil registra uma desaceleração do número de mortes por CONVIDE! – o repórter anunciava enfático – A ocupação dos leitos hospitalares em todo país caiu para menos de 80%, ao contrário do que vinha acontecendo desde outubro do ano passado!

 

--CPI da CONVIDE-0 encerra seus trabalhos com dois meses de atraso e pede o indiciamento de 80 pessoas, dentre elas o presidente Valcy Montanauro e seus filhos Uno, Due, Tre, Quattro, Cinque, Sei e Sette Montanauro! – a repórter falava com ênfase

 

--Era mais fácil dizer: Valcy Montanauro e os numerais! – Elza dizia para a televisão – Até pra escolher nome de filho esse homem me deixa passada! – revirou os olhos

 

Goulart se despedia do enfermeiro na portaria do condomínio. – Eu agradeço muito por todo esse tempo em que pude contar com seus serviços, senhor Otton, mas agora já posso ficar totalmente por mim mesmo. – sorria por baixo da máscara – Muito obrigado! Sempre lhe recomendarei muito bem pra qualquer pessoa que me pergunte por um enfermeiro! – estendeu a mão

 

--Eu fico muito feliz em ouvir isso e mais feliz ainda em vê-lo tão bem! – Otton apertou a mão do ex paciente – O senhor foi ficando cada vez mais independente, andou até fazendo suas viagens sozinho... – brincou e eles riram – E agora sei que pode ficar por si sem problema algum! – falava satisfeito – Foi um prazer e qualquer coisa que precise, pode contar comigo! – sorriu por baixo da máscara

 

Um homem espreitava escondido por trás de uma árvore. Esperou o enfermeiro partir e na sequência observou Goulart entrando. “Perfeito! O brigadeiro agora vai ficar sozinho!” – pensou mal intencionado

 

“A gente vai ficando velho, parece que vai ficando carente!” – Goulart pensou enquanto caminhava para sua casa – “Já tava acostumado com a companhia do Otton ou da Elza aqui comigo”. – ajeitou a gola da camisa – “Dormir sozinho hoje vai ser estranho!” – chegou na porta da casa e a abriu para entrar

 

O desconhecido entrou no condomínio com facilidade. Já havia subornado um funcionário.

 

“Acho que vou pegar um bom livro e ficar lendo no quarto até o sono me vencer.” – Goulart decidiu ao seguir para o quarto

 

Buscando invadir o quintal com discrição, o homem contornou a casa para tentar entrar pela cozinha.

 

Goulart tomou um banho rápido, vestiu um pijama e se deitou na cama com o livro na mão. Antes, decidiu ligar para Elza.

 

--Tio Goulart, tudo bem? – a militar atendeu rapidamente – Tá precisando de alguma coisa?

 

--Não... – respondeu com tranquilidade – Só queria te dizer que hoje foi o último dia do Otton comigo e tô estranhando dormir sem mais ninguém em casa. – riu brevemente – Vou reler aquele livro que você me deu sobre a História da Aeronáutica. -- sorriu

 

--Quer que eu vá praí? – a mulher se ofereceu – Tava assistindo o telejornal e agora tô ouvindo uma musiquinha. Não me custa preparar as coisas e ir aí pra lhe fazer companhia.

 

--Não, filha. Descanse aí na sua casa em segurança. – recomendou – Não se incomode com um velho carente. – brincou e eles riram – Tá tudo bem. Boa noite, querida! – despediu-se

 

--Boa noite, tio Goulart. – pausou por uns instantes – Eu te amo! – afirmou espontaneamente

 

Ficou feliz ao ouvir. – Também te amo, filha. Muito! – declarou-se com sentimento – Tchau. Fique com Deus. – desligou o telefone e ficou olhando para o teto – Acho que finalmente nos reconciliamos. – falou para si mesmo – Graças a Deus!

 

O militar colocou o livro sobre a barriga e ficou rememorando fatos do passado recente.

 

--Aqueles caras são bandidos ao extremo! – o homem dizia aos demais – Os próprios Justiceiros deram cabo do Hilton Viejo, na certa porque foi visto durante a tentativa de incêndio e já tava manjado desde que se meteu naquela de Deduração Sorteada. – falava sobre o que descobriu – Sinceramente, até me surpreende que tenha vivido tanto depois de entregar o esquema das Quebradinhas. – considerou – Os Justiceiros dizem não admitir dedurações.

 

--E os outros dois? – Goulart perguntou – Descobrimos quem são?

 

--Por sorte fiquei sabendo que um homem causou tumulto num posto de gasolina no centro de Goiânia. Foi bem no dia da tentativa de incêndio. – outro homem respondeu – As imagens das câmeras revelaram se tratar de Leandro Xerxes, o braço direito do Hilton. -- olhava para Goulart – O motorista do carro em que ele estava tinha traços orientais. Se não for muita coincidência, seria Ney Takahashi, um Justiceiro conhecido por investir em técnicas incendiárias.

 

--E onde estão esses miseráveis? – o brigadeiro perguntou agoniado

 

--Serão presos amanhã. – mais outro homem afirmou – Acompanhe pelos telejornais e esqueça que a gente existe. – piscou para o colega

 

“E os miseráveis foram mesmo presos com direito a toda pompa que a imprensa adora!” – Goulart pensava com satisfação – “Montanauro ainda aproveitou a deixa pra marcar uma presença...” – sorriu – “Acho que finalmente aquela Yara vai ficar livre desses malditos Justiceiros!” – considerou – “E com isso, Elzinha ficará feliz!” – sentia-se confiante

 

Sem que o militar suspeitasse, sua casa acabava de ser invadida pelo desconhecido que vinha sorrateiro pela cozinha. O homem portava um revólver com silenciador escondido por baixo do colete preto.

 

E de repente, um barulho.

 

Goulart sentou-se rapidamente. “Tem alguém aqui??” – o coração disparou – “Minha bolsa de golfe!” – levantou-se devagar e abriu o armário para pegar o taco

 

O desconhecido deixou uns minutos se passarem e seguiu lentamente para o quarto de Goulart. Percebeu que a porta estava encostada e viu o homem encolhido sob os lençóis. “Melhor assim!” – pensou ao entrar no cômodo apontando o revólver para a cama

 

Rapidamente o brigadeiro golpeou o homem com toda força que podia usando seu taco de golfe. Vendo-o cair no chão, seguiu para a sala tentando correr e gritar. – Socorro!! – não tinha muito fôlego – Socorro!!

 

Antes de chegar na porta, sentiu que alguém lhe puxava pelo tornozelo fazendo-o cair. – Ah! – gem*u de dor

 

Alheia a tudo isso, longe dali, Elza buscava espairecer ouvindo música em seu quarto.

 

“Mãe, tire o distintivo de mim,

Que eu não posso mais usá-lo...”

 

--Você bate como uma moça! – o homem sentou-se sobre as costas de Goulart – Eu ia te dar um tiro mas desisti! – removeu o próprio capuz e buscou asfixiar o brigadeiro com ele – Morra com falta de ar! – pressionava o tecido contra o rosto do militar

 

“Deus, me ajude por piedade...” – Goulart pensou em agonia

 

“Está escuro demais pra ver,

Me sinto até batendo na porta do céu...”

 

--Vocês não me enganaram em momento algum! Sei que a traição veio de você e da sua sobrinha sapatão! – falava enquanto esganava o adversário – Graças a vocês os Justiceiros se fuderam! – rosnava com ódio – Agora eu vou fuder os dois!

 

O brigadeiro escutava a voz do homem, mas não conseguia entender o que dizia.

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

 

Goulart sentia o corpo convulsionar.

 

--Morra, desgraçado! – esganava com mais força

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

 

--Venha, querido. – uma doce voz de mulher se fez ouvir – Já está na hora de partir. -- sorriu

 

--Graça? – o militar encheu-se de esperança e levantou a cabeça – Você vai me levar? – sorriu também

 

“Mãe, guarde esses revólveres pra mim,

Com eles, nunca mais vou atirar...”

 

--Confie em mim e venha! – estendeu a mão

 

“A grande nuvem escura já me envolveu,

Me sinto até batendo na porta do céu...”

 

--Então... – levantou-se devagar e aproximou-se da mulher – Eu não vou pro Inferno? – não entendia – O que aconteceu? Eu morri, o que é isso? – olhou para trás e viu um homem sentado sobre seu corpo inerte

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

 

--Sim, você desencarnou e não vai pro Inferno porque ele não existe. – esclareceu – Mas não está livre de colher os frutos daquilo que plantou. – falava com carinho – Você apenas consegue ter mais paz agora, porque usou todo seu tempo desde que levou alta da CONVIDE para se redimir.

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

 

--E quanto a Elza? – perguntou preocupado – E Yara? – pensava nas mulheres – Esse assassino irá atrás delas e...

 

--Shii... – silenciou o homem com gentileza – O tempo dele também se esgota. Fique tranquilo. – buscava acalmá-lo – Venha comigo e crê em Deus! – pediu

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

 

O desconhecido levantou-se de sobre o corpo de Goulart e saiu da casa do homem o mais rápido que pôde.

 

“Bate, bate, bate na porta do céu,

Bate, bate, bate na porta do céu...”

Zé Ramalho – Batendo na Porta do Céu [2]

 

Minutos depois, dirigindo seu carro sob uma dor de cabeça intensa em função do golpe que recebera de Goulart, o assassino desconcentrou-se e bateu com o veículo num poste, desencarnando imediatamente.

 

 

 

Fim do capítulo