São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--E vamos ver se ficou bom! – Fernandão girava para um lado e outro o seletor de luminosidade da sala do apartamento onde morava – Escurinho prum lado e brilhosão pro outro! – sorria – Perfeito! – olhou para Elza – Sabia que eu andava com saudades de fazer esses projetinhos práticos junto com você?

 

--Tipo instalar um resistor não ôhmico pra fazer uma gracinha na luminosidade da sala? – a engenheira respondeu bem humorada – Eu também! – aproximou-se mais da outra – Especialmente a gente que não é chegada a essa coisa ôhmica, né? – riram – Mas fazer o que? Inventaram que a unidade de resistência elétrica tinha que se chamar ohm... -- brincou

 

--Pois é! – escolheu a luminosidade que desejava e se sentou no sofá – Agora, falando nessa coisa não ôhmica... – olhava para a outra – Senta aqui pra falarmos de mulher! – indicou o lugar – O que tá acontecendo entre você e Yara, hein? – perguntou preocupada – Não te achei muito animada nesse retorno de viagem. – falava com jeito – Nem parece que você saiu daqui pra viver uma pequena lua de mel na Bahia!

 

Suspirou. – Tem razão, não voltei animada... – sentou-se no sofá – Tivemos uma discussão séria no final da viagem... – cruzou as pernas – Estávamos indo pro aeroporto de Salvador, aí ouvimos na rádio sobre a pressão pelo impeachment da Vilma, Yara fez um comentário que não gostei e confesso que desci os cachorros em cima dela. – pausou brevemente – A gente mal se falou depois disso, foi cada uma prum lado e ainda não procurei por ela na internet.

 

Fernandão balançou a cabeça contrariada. – Elza, pelo amor de Deus! Não é cabível jogar um relacionamento fora por causa dessas coisas, você não acha?

 

--Eu sei que você tem razão! Mas alguma coisa mudou, sabe? – mirou um ponto no infinito – Desde que ela foi presa no protesto contra aquele maldito leilão a gente vira a mexe tem sido muito intolerante uma com a outra, muito grossa... – considerou – Depois daquilo tivemos inúmeras brigas pela internet e só nos vimos duas vezes... uma em Campos do Jordão e agora essa na Bahia.

 

--Pois é! E brigaram em Campos do Jordão e na Bahia! – destacou – O que é isso, Elza? – não entendia -- Cês vão celebrar os dois anos de aniversário da briga inicial quando chegar outubro, é isso mesmo? – provocou

 

--Claro que não! – levantou-se do sofá – Eu não quero marcar esse ano de 2015 com desavenças e sim com nosso aniversário de 15 anos juntas! – caminhou um pouco pela sala – Sabe? Eu acho que o que tá acontecendo é que o Brasil tá polarizando demais e a gente sente que mais cedo ou mais tarde vai ter que assumir um lado nessa história! – olhou para a outra – Nossos contextos de vida assim exigem! – pausou brevemente – E com isso ficamos cada vez mais tensas e metemos os pés pelas mãos! -- deduzia

 

--Só que não precisa ser assim! – levantou-se também – Pô, Elza, desculpe a franqueza, mas a vida de vocês não pode ser condicionada a isso, faça-me o favor! – gesticulou – A política que se lasque! O importante é ser feliz!

 

Balançou a cabeça pensativa. – Concordo parcialmente com você. – colocou as mãos na cintura – Mas eu já pensei muito sobre tudo isso e vou ter uma conversa séria com Yara durante a viagem do nosso aniversário. – decidiu – Tô disposta a resolver isso de uma vez por todas! Mudar de estratégia, sabe? Só depende dela!

 

--Estratégia? – não entendeu a escolha da palavra – Bem, se vocês não se matarem até lá, já vão tá no lucro! – considerou – “Eu não entendo o que tá acontecendo com as pessoas nos dias de hoje, sinceramente!” – pensou estranhando

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Renata acabava de se arrumar para sair quando ouve pesadas batidas na porta da sala. “Meu Deus!” – fechou os olhos brevemente e respirou fundo – “Se o porteiro nem interfonou pra anunciar... são eles! É agora!” – deduziu antes de abrir a porta – Pois não? – deu de cara com vários homens vestidos de preto

 

--Deputada Renata Vilani? – um dos homens perguntou de cara feia

 

--Sim, senhor. – juntou forças para responder – No que posso lhes ser útil? – não sabia o que fazer

 

--A senhora está presa por suspeita de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e evasão de divisas para o exterior! – apresentou o distintivo da Polícia

 

A loura derramou uma lágrima e não opôs qualquer resistência.

 

***

 

--A Polícia Federal prendeu hoje, na manhã deste sábado, sete suspeitos, dentre eles a deputada federal pelo Partido dos Labutadores, Renata Vilani, e cumpriu mandados de busca e apreensão e condução coercitiva nos estados de Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Distrito Federal. – o repórter anunciava no rádio – Os mandados foram cumpridos na 13ª fase da Caça Rato, batizada de Operação Chicote de Fogo.

 

--Ô, minha cruz do calvário, por essa eu não esperava! – Yara exclamou enquanto dirigia – Que Renata é uma tremenda picareta eu já sabia, mas a ponto de cair até no pente fino dessa Caça Rato, me surpreendeu! – olhou rapidamente para os outros no carro – Tendo em vista o histórico da figura, tenho dificuldade em pensar que seja engano. Mas, o Direito diz que todo mundo é inocente até que se prove o contrário, né?

 

--Nossa, fiquei besta! – Jurema exclamou – Também não esperava por isso! – olhou para Yara – Mas na atualidade, a presunção de inocência tem sido quebrada a depender do partido da pessoa acusada. – considerou

 

--E sabem qual é o outro grande problema de uma coisa assim? – Celeste interferiu -- Ela é mulher, de esquerda, lésbica assumida e super queridinha por um monte de eleitores! – considerou – Prato feito pros conservadores de plantão!

 

--Renata surfou na onda da representativade, camaradas! – Omar respondeu – É sabido que mulheres, lésbicas, negros, indígenas têm menos assento na política. Ela se aproveitou do fato de se enquadrar em alguns desses grupos e foi! Soube vender o próprio peixe! – considerou

 

--É verdade! – Yara concordou – Ainda mais que muita gente pensa que toda mulher, negro, indígena ou LGBT que se candidatar é mais honesto, ela aproveitou a onda! – balançou a cabeça contrariada – Se ela é culpada, que se faça justiça. Mas, quer saber? – continuava dirigindo – Aposto que tá é servindo de bucha de canhão pra algum ou alguns peixes grandes!

 

--Bem por aí... – Jurema concordava com o que ouvia – Mas, falando em Caça Rato, prisão e coisas do gênero, é mesmo seguro a gente começar a usar drones na militância? – perguntou para Yara

 

Sorriu. -- Camarada Jurema, nós compramos dois drones, pagamos os impostos e estamos indo recolhê-los no aeroporto. – Yara respondia tranquilamente – Agora vamos registrá-los segundo o que mandam as agências regulatórias pertinentes e teremos duas pessoas do Partido, bem pouco conhecidas, devidamente treinadas pra pilotá-los. – esclarecia – Os drones serão úteis pra gente ver da onde vem a polícia durante nossas manifestações e evitarmos de sermos presos ou apanharmos à toa! – prestava atenção no trânsito – Antes de voar, seguiremos os cuidados conforme rege a lei e tá tranquilo! – sorria

 

--Tenho gostado das suas ideias de inserir tecnologia na militância, especialmente contando com alunos voluntários de diversos cursos da UFG, mas não corremos o risco de termos esses drones derrubados ou apreendidos, camarada? – Omar perguntou curioso

 

--Sim. – respondeu simplesmente – E se acontecer a gente compra outros de novo. – passou a mão nos cabelos – Esses baratinhos não vão gerar problema de caixa pro Partido.

 

--E os pilotos, não têm risco de serem presos? – Celeste olhava para a indígena através do retrovisor

 

--Tem, se eventualmente eles voarem em situação diferente do que manda a lei e forem pegos em flagrante. – continuava dirigindo – Mas, durante o treinamento, eles aprenderão sobre a legislação pertinente também. – pausou brevemente – Confiem, camaradas. Confiem! – pediu bem humorada

 

“Humpf!” – Celeste fez um bico – “Os anos passam e ela sempre de gracinha com aquela milica!” – pensou – “Duvido que essa história de drone não tenha o dedo dela!” – considerou – “Mas se bem que a milica não gosta de nós, então por que nos daria dicas? Será que camarada Yara namora e espiona o lado de lá ao mesmo tempo?” – conjecturava – “Tudo isso é muito esquisito...”

 

 

Santiago, Região Metropolitana de Santiago, Chile

 

Yara entrava em um bar conhecido por se destacar como um point da balada LGBT na cidade. O ambiente era bem escuro, mas os flashes da iluminação da pista de dança, ao fundo, provocavam periódicas variações de luminosidade. “Nossa, que ambiente mais underground!” – a indígena pensou surpreendida – “Ô, minha sarça que se queima, clareia os caminhos dessa espécie em extinção!” – adentrava o recinto com desconfiança

 

Reparando no local com mais atenção, a professora percebeu a presença de uma mulher negra sentada em frente ao balcão. Usando um vestido estampado curto, blazer e sapatos de salto bem alto, ela bebia um drinque despreocupadamente enquanto despachava mulheres que vinham abordá-la.

 

“É nessa hora que eu chego!” – Yara pensou ao se encaminhar em direção a outra – Me encanta a tu estilo! (Eu amo o seu estilo!) – abordou-a ao se encostar no bar -- Entonces, ¿cómo te llamas? (Então, qual é o seu nome?) – olhava nos olhos

 

Elza bebeu um gole do drinque e reparou na outra de cima a baixo. A indígena vestia um macacão preto justinho e tênis brancos. No pescoço, um colar indígena. -- ¿Mi nombre? ¿Por qué debería decírtelo? (Meu nome? Por que deveria te dizer?) – respondeu forjando indiferença

 

--Hum... esse sotaque... – fingia estar descobrindo alguma coisa – Eis um bom motivo pra me responder, -- sorriu – você é tão brasileira quanto eu! – fez um gesto de reverência – Yara Saraíba, é um prazer! – cumprimentou

 

Mexia o líquido no copo com um canudo. – Com nome e sobrenome, nossa? – bebeu mais um gole – Meu nome é Elza. – finalizou o drinque – E ainda não sei se é um prazer. – colocou o copo no balcão e se levantou -- ¡Cuídate! (Te cuida!) – despediu-se ao piscar para a indígena e seguir para a pista de dança

 

--Ela já gosta... – a professora sussurrou para si mesma enquanto acompanhava a outra com o olhar – Ô, meu Capeta no deserto, não me atiça... – sentia-se empolgada com a situação

 

Uma conhecida música começava a tocar em versão remixada.

 

“All the things she said (Todas as coisas que ela disse),

All the things she said (Todas as coisas que ela disse),

Running through my head (Passando pela minha cabeça),

Running through my head (Passando pela minha cabeça),

All the things she said (Todas as coisas que ela disse)…”

 

Yara também seguiu até a pista e parou na beirada, cruzando os braços. Apenas observava atentamente a militar, que dançava em abandono com os olhos fechados.

 

“This is not enough (Isso não é suficiente)...”

 

Uma mulher se aproximou por trás de Elza e começou a dançar com o corpo bem junto ao dela. -- No me des un beso de buenos días (Não me dê um beijo de bom dia), -- sussurrou no ouvido da negra -- dame un día de buenos besos (me dê um dia de bons beijos).

 

A negra abriu os olhos e rapidamente mirou o rosto de Yara. Desejava deixá-la enciumada. “Veremos o que ela vai fazer...” – pensou ao virar-se de frente para a desconhecida e continuar dançando -- ¿Quieres besos? (Quer beijos?) – perguntou insinuante -- Convénceme primero! (Convença-me primeiro!)

 

--Quer me deixar louca, né, Elza? – a indígena sussurrava consigo mesma – Hora de acabar com isso aí! -- decidiu

 

“I'm in serious shit, I feel totally lost (Entrei numa confusão, me sinto totalmente perdida),

If I'm asking for help it's only because (Se estou pedindo ajuda, é apenas porque),

Being with you has opened my eyes (Estar com você abriu meus olhos),

Could I ever believe such a perfect surprise? (Como eu poderia acreditar numa surpresa tão perfeita?)”

 

Yara caminhou para se aproximar da namorada, mas foi detida no meio do caminho por uma mulher baixinha que a abordou sensualmente. --¿Por qué no bailas? (Por que não dança?) – perguntou ao sorrir --Estoy aquí para ti! (Estou aqui para você!) – envolveu o pescoço da indígena com os braços

 

“Ô, glória!” – pensou surpreendida – “Quero ver, major...” – olhou rapidamente para Elza e começou a dançar com a desconhecida – Ahora puedo bailar (Agora posso dançar). – colocou uma das mãos na cintura da outra – “Pena que eu sou uma negação dançando, Ave Maria!” – pensou envergonhada

 

“I keep asking myself, wondering how (Eu continuo me perguntando, imaginando como),

I keep closing my eyes but I can't block you out (Eu continuo fechando meus olhos mas não consigo tirar você da minha cabeça)...”

 

-- Dime cómo convencerte de que seas mía! (Diga-me como convencê-la a ser minha!) – a mulher perguntou para Elza

 

“Arrumou um par, professora?” – a militar pensou enciumada ao reparar – “Vamos desequilibrar esse jogo!” – dançava se esfregando no corpo da outra -- No te quedes mirando la escalera! (Não fique olhando a escada!) – respondeu cheia de charme -- Empieza a subir (Comece a subir), -- virou-se de costas para a outra e começou a rebol*r se esfregando nela -- escalón por escalón... (degrau por degrau...)

 

--Ah... – gem*u excitada e segurou a militar pela cintura acompanhando os movimentos dela

 

“Wanna fly to a place where it's just you and me (Quero voar para um lugar onde haja somente você e eu),

Nobody else, so we can be free (E ninguém mais, para que possamos ser livres)…”

 

--¿Cómo te llamas? (Como você se chama?) – a baixinha perguntou para a indígena

 

--¿Yara y tú? (Yara e você?) – olhava para ela

 

--Pasión! (Paixão!) – puxou a professora para um beijo

 

“Ô, minha serpente no deserto!” – virou o rosto rapidamente e evitou o beijo nos lábios – “Rasteja na terra quente da perdição, ô glória!” – pensava -- Vamos a ir más despacio... (Vamos mais devagar...) – sorriu sem graça

 

“(Nobody else, so we can be free) (Ninguém mais, para que possamos ser livres)…”

 

“Ah, estamos assim?” – Elza percebeu o lance e não gostou – “Muito bem, Yara Saraíba! Toma o troco!” – virou-se novamente de frente para seu par e segurou o rosto dela com as duas mãos -- ¿Me quieres? (Você me quer?) – perguntou destilando charme

 

A mulher sorriu e avançou para beijá-la. Elza a impedia dengosamente e ria por causa disso.

 

“All the things she said (Todas as coisas que ela disse),

All the things she said (Todas as coisas que ela disse)…”

 

--O que?? – Yara arregalou os olhos com o que viu – Acabar com isso agora! – disse furiosa para si mesma

 

--¿Qué te pasa? (O que houve?) – o par da indígena olhou na mesma direção que ela

 

--Perdoname, cariño! (Perdoe-me, querida!) – a professora se desvencilhou da outra e seguiu com firmeza em direção à namorada

 

“Running through my head (Passando pela minha cabeça),

Running through my head (Passando pela minha cabeça),

All the things she said (Todas as coisas que ela disse)…”

t.A.T.u – All the Things She Said [1]

 

***

 

--O que você tava pensando, hein, Elza? – Yara imprensou a namorada contra a parede de uma cabine no banheiro – Tava querendo ficar com ela? – perguntou de cara feia – Tava? – olhava nos olhos

 

Sorriu excitada. – O que eu tava querendo era te ver assim! – segurou o rosto da indígena com as duas mãos e a beijou ardentemente – Agora mostra... que eu sou... sua! – pediu entre beijos – Vem... e me come! – beijou-a mais uma vez

 

A indígena puxou bruscamente a calcinha da parceira para baixo enquanto a beijava com fúria. Em seguida segurou a mulher pelas coxas e fez com que envolvesse as pernas em sua cintura. – Não me provoca desse jeito, Elza! – novamente imprensou-a contra a parede – Não me tira do sério! – deslizou uma das mãos para entre as pernas dela e a penetrou com dois dedos – Não brinca comigo! – beijou-a novamente

 

--Ah! – soltou um gemido abafado pelo beijo – Ah! – envolveu o pescoço da indígena com os braços e se entregou às sensações que a dominavam

 

 

Parque Nacional Torres del Paine, Região de Magalhães, Chile

 

Elza e Yara acabavam de meditar e abriram os olhos lentamente. Estavam sentadas sobre uma pedra, de frente para um belo lago de águas esverdeadas.

 

--É incrível meditar ao lado da pessoa amada e ter a base das Torres Paine diante de nós ao abrir os olhos! – a militar sorriu – Que vista divina! Impossível não se sentir em paz! – olhou para a amada

 

--Concordo! – sorriu também – E estamos com muita sorte, porque os frios ventos do mês de julho deram um tempo e o dia hoje tá ótimo! – olhava para a amada – Nem parece um dia de inverno austral.

 

--A Natureza nos presenteia mais uma vez nessas nossas viagens românticas! – beijou-a nos lábios – Nosso aniversário de 15 anos juntas tá sendo delicioso! – beijou-a mais uma vez

 

Surpreendeu-se. – O que o Chile fez com você, major Elza Machado? – perguntou brincalhona – Primeiro aquela loucura em Santiago e agora me beija ao ar livre, diante de todos? – não entendia

 

Achou graça. – Estamos sozinhas aqui, meu bem! Os outros turistas estão muito longe pra ver o que fazemos! – beijou-a mais uma vez – Quanto a Santiago... me diga se não achou aquela brincadeira o máximo? – perguntou empolgada

 

--Brincadeira?! – achou graça igualmente – A gente fingir que não se conhece, você se esfregando numa completa desconhecida e depois fazendo gracinha com ela, que não te tascava um beijão nem sei porque? – lembrava do lance – Me deu uma ciumeira que chega doeu! – afirmou enfática – Eu tava a ponto de rodar uma cabocla naquele trem!

 

--Também não gostei de ver aquela baixinha te beijando! – beliscou o braço da outra de leve – Aí eu dei o troco, amor!

 

--Ela não me beijou na boca, eu desviei! Pegou aqui. – mostrou com o dedo – Mas quando te vi naquele resfulengo com a desconhecida, o sangue ferveu! – franziu o cenho

 

--E eu adorei o jeito como você veio e me pegou na pista de dança! – lembrava animada – E mais ainda o jeito como me devorou no banheiro... – cochichou no ouvido da outra – Só de pensar, fico excitada! – beijou-a mais uma vez

 

Balançou a cabeça ao sorrir. – Eu não conhecia esse lado selvagem e super erótico de Elza Machado! – comentou brincalhona – Era a gente se pegando no banheiro e a mulherada revoltada batendo na porta, querendo fazer xixi ou coisa pior! – lembrava – Ave Maria, a lambada de fogo queimou!

 

Riu. – Você e essas frases malucas! – admirava o rosto da amada – Às vezes é bom dar uma apimentada na relação com loucuras. – segurou uma das mãos da indígena e gastou uns segundos calada – E quanto ao mais? – olhava para ela – Pensou no que lhe falei?

 

--Não tenho feito outra coisa! – respondeu de pronto ao entrelaçarem os dedos – Sei lá, minha linda... por um lado gostei de algumas mudanças, como sua proposta pras férias de janeiro, mas por outro... – suspirou – Eu não sei...

 

--Eu pensei em absolutamente tudo que você me disse e exatamente por isso te propus o que peço agora! – olhava nos olhos – Por favor, amor? – pediu dengosa – Se chegamos até aqui, por que não? São quinze anos em que só você é a mulher da minha vida!

 

--Pra mim é igual, mas... – gastou uns segundos calada – Você sabe que chegaremos no momento do vai ou racha, não é? – considerou – Não vai ser nada fácil! Será que você segura até o fim?

 

--Nunca foi fácil! – tocou o rosto da indígena com a outra mão – Mas eu repito: se chegamos até aqui, podemos chegar muito mais longe! – beijou-a – Hein? Hum? – beijou-a novamente – Eu prometo que não vou te decepcionar e nem fraquejar! – beijou-a

 

--Não prometa o que não sabe se poderá ter condições de cumprir! – a indígena pediu com seriedade

 

--Confia em mim, amor! – olhava nos olhos – E continua comigo, vai? – beijou-a

 

--Eu sempre faço o que você quer, não é? – beijou-a – E apesar de tudo a gente tá aqui... – deu um suspiro profundo -- Então, seja lá o que Deus quiser... – beijou-a mais uma vez

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--Pronto! – Fernandão terminava de instalar o aplicativo no celular de Machado – Olha aí! – mostrou a tela do aparelho para ele – Agora é só criar o perfil e partir pra busca! – sorriu para o amigo

 

--Garbosa, dos recônditos de minh’alma ecoa-se a pergunta: será que esta é de fato a abordagem mais adequada e criteriosa? – perguntou desconfiado – Após décadas de solidão conjugal, buscar uma parceira mediante um aplicativo que atende sob a alcunha de... – leu o nome -- PIMBA? – achava estranho – Soa um tanto vulgar, não vos parece? – olhou para a sargento

 

--Que nada! – fez um gesto despreocupado – O nome dele é PIMBA porque é um aplicativo pra encontrar sua cara metade. – explicava – Então a pessoa faz um perfil, coloca os gostos, preferências e expectativas, manda o aplicativo fazer uma busca e quando ele encontra alguém compatível, emite um sinal sonoro que diz: PIMBA! – bateu uma palma

 

--Soa análogo a uma comemoração de jogo de bilhar! – o homem comentou estranhando

 

--Não se prenda ao nome do negócio! – aconselhou – Além do mais agora o senhor é um recém promovido suboficial e seu relacionamento de pai e filha com a Elza tá ótimo, só lhe falta encontrar um amor assim como eu encontrei! – sorria

 

--Ora, garbosa, mas no vosso caso não houve aplicativo ou gritos de PIMBA a vos auxiliar! – retrucou – Foram as mãos do destino a vos trazer Alana para junto do vosso regaço feminil!

 

--É, mas já que o senhor não tá achando nada, então usemos de tecnologia! – sentou-se ao lado dele – Simbora fazer seu perfil? O primeiro passo é tirar uma foto! – informou – Vamos lá! – preparou-se para fotografá-lo

 

--Primeiro sargento Fernandão, sentido! – deu voz de comando e a mulher se levantou em posição – Não haverá imagem pictorial retratando meu rosto militar! – decidiu ao se levantar – Montarei um disfarce, portarei máscara sobre a face varonil e meu nome de registro no audacioso aplicativo será Negro Gato! – afirmou resoluto – Há também picaretas e fanfarronas dentre as criaturas representando o duplo cromossomo X. Necessário é precaver-me de tais tipos!

 

Achou estranho. – Eu hein! Mas desse jeito como as mulheres vão confiar? – argumentou – Elas vão achar que o picareta e fanfarrão é o senhor, com todo respeito! -- gesticulou

 

--Confiai-vos, garbosa, pois se existe consorte para minha pessoa a qual pode ser mapeada por tal aplicativo indiscreto, não serão meus estratagemas de segurança a impedi-la de cruzar minha senda de homem! – respondeu com segurança – Negro Gato remete à bela canção que muito me apetece. – destacou – Eu sou o negro gato! – cantarolou brevemente

 

--Bem, se o senhor quer assim, façamos assim... – concordou reticente – “Vai pegar ninguém!” -- pensou

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

--O rompimento de uma barragem de rejeitos de minérios administrada pela empresa Samico foi o maior desastre ambiental do Brasil e um dos maiores do mundo! – Yara discursava junto com colegas de Partido próximo à Esplanada dos Despautérios – Ele provocou danos econômicos, sociais e ambientais graves, tirando a vida de 29 pessoas! – afirmou com ênfase -- Os defensores das privatizações não têm argumentos fortes o suficiente contra os fatos, ou seja, quando a empresa era controlada pela Rio Foice estatal, havia manutenção da infraestrutura! – olhava para as pessoas -- Existe um claro conflito de interesses entre se priorizar demais os ganhos dos acionistas e atender à população como se deve. Forçosamente a ganância empresarial leva ao sacrifício da segurança e do bem estar das pessoas! -- explicava -- Lembremos do dilema da companhia de saneamento de São Paulo durante a crise hídrica do ano passado. De um lado, se incentivava a redução do consumo de água porque não se estava dando vencimento. De outro, isso acabava colidindo com o interesse dos acionistas na bolsa de valores. – agitava-se ao microfone -- A sede de dinheiro leva ao aumento dos preços pra população, falta de investimentos em infraestrutura e deterioração das condições de tudo! Daí se conclui que nem todos os serviços ou atividades industriais devem estar concentrados nas mãos de particulares. – pausou brevemente – Na esteira de tudo isso, os oportunistas de plantão aproveitam pra forçar o impeachment da presidente Vilma como se todos os problemas fossem resolvidos desse jeito! – riu brevemente – Muito pelo contrário! Esse impeachment não passa de um grande golpe! -- olhou para um jovem que apenas a aguardava – Simbora! – pediu e o som do DJ embalou o ambiente em uma batida leve – Não há quem não entenda, não estamos a venda! – começou a cantar – Não misturem os fatos, nossa elite é de ratos, tem cuidado com o que se pede! Vilma sai e o governo ainda fede! – gesticulava – O impeachment é golpe, não é a solução! Pratiquemos a revolução! – cantava empolgada

 

--Fazia tempo que a camarada não podia cantar desse jeito! – Natália comentou com Jurema – Ultimamente a gente mal consegue parar pra falar com a população que a polícia já vem fervendo! – olhava para a outra --Tá barril dobrado, puta merd*!

 

--Claro, camarada! O governo aprovou uma série de medidas que foram cobradas pelas entidades internacionais pra que a Copa e as Olimpíadas fossem sediadas no país. – Jurema respondeu de pronto – Então qualquer mobilização é apontada como ato terrorista e eles vêm em cima com suas balas de borracha, sprays de urtiga e bombas bestificantes! – cruzou os braços – O país tem dinheiro pra investir pesado nessa repressão, mas cadê a mesma disposição pra combater a dengue, a Zika e a Chikungunya? – cobrou

 

--E a imprensa tem dado o maior peso às notícias sobre essas doenças, né? – Natália considerou – Tudo pra ter cada vez mais argumento pro impeachment de Vilma acontecer!

 

--Oportunismo em mais alto grau! – respondeu pensativa -- O pior, camarada, é que quanto mais a gente se mobiliza, quanto mais a gente adverte sobre esse golpe que tá sendo orquestrado, menos eu tenho esperança de impedir ele aconteça! – suspirou – Camarada Yara tá explicando tudo com esse rap que ela canta agora, mas o povo é incapaz de ouvir! – lamentou

 

--Se os próprios ditos intelectuais de esquerda parecem que andam surdos, faz ideia o povo... – Natália criticou – Mas, pelo menos nossa consciência será tranquila...

 

***

 

Renata caminhava de cabeça baixa pelos corredores da Penitenciária Feminina da capital do país. Uma carcereira a conduzia até uma sala onde uma visitante a aguardava. Acreditava que deveria ser alguém do partido.

 

--Pode entrar. – a funcionária abriu a porta da sala – Vocês têm 20 minutos! – afirmou com seriedade

 

A deputada entrou e viu que uma mulher loura estava sentada de costas esperando. Não conseguiu reconhecê-la e caminhou desconfiada até uma cadeira. – Boa tarde? – cumprimentou ao se sentar

 

--Boa tarde, Renata. – a mulher virou-se de frente para ela – Será que seria capaz de me reconhecer depois de tanto tempo? – perguntou com tranquilidade

 

--Mãe?! – arregalou os olhos e se levantou assustada

 

Deu um sorriso triste. – Entendo a sua reação, mas fique calma. – pediu – Não vim pra te espezinhar. Quero apenas conversar. – cruzou as pernas

 

--Não veio me espezinhar? – achou graça do que ouviu – Nem precisava, né? Me abandonou há tantos anos, não sei o que poderia ser pior do que isso! – andava nervosamente de um lado a outro -- Não sei o que veio fazer aqui, mas com certeza não é bem vinda! – cruzou os braços – Desembucha, vai?

 

--Você, ou sei lá quem, abriu uma conta no exterior com meu nome. – olhava para a filha – A polícia me procurou, já fui interrogada por três vezes e tô tendo muito trabalho pra provar que não tenho a menor relação com essa treta. – continuava falando calmamente

 

Ficou triste com o que ouviu. – Claro que você não viria me visitar! Nunca fez isso desde que se mandou, não seria agora! – sentiu vontade de chorar – Pode ficar tranquila, dona Jaqueline! Eu não vou deixar sombra de dúvidas que a senhora tava por fora do esquema. – afirmou com decisão – Se era só isso...

 

--Não era... – levantou-se – Eu também queria saber de você. – aproximou-se da filha – É muito nítido que a imprensa te pegou pra Judas. Seu nome tem sido enxovalhado diariamente e tão te usando como símbolo de toda putaria da política brasileira. – olhava para a loura – Fizeram baldaços contra você tanto quanto fizeram contra a presidente.

 

Abaixou a cabeça brevemente. – Tô sabendo que agora tá moda isso de dar porr*da num balde com hora marcada. – comentou de cara feia – Tô sabendo que fazem baldaço por minha causa...

 

--Por mais que você tenha errado, tenho certeza que você é peixe pequeno na frente dessa cambada que tá no poder há tantos anos! Seja do partido que for! – Jaqueline continuava falando com mansidão – Tenho certeza que você caiu numa situação muito acima do seu controle e que no final das contas foi traída. – pausou brevemente – O movimento de cassação do seu mandato tá seguindo na esteira do movimento de impeachment da Vilma. -- informou

 

--Eu, eu... – a deputada não sabia o que dizer – Me fudi muito... – derramou uma lágrima – Todo mundo vai sair ileso, mas tenho certeza que vão me deixar aqui o tempo que for necessário... – concluiu com mágoa – Quase ninguém vem me ver... meu advogado só vive me prometendo um monte de coisas, mas... – pausou brevemente – Eu me fudi... – reconheceu novamente

 

--Não te condeno, filha! – respondeu com a verdade – Já errei muito... principalmente com você... – assumiu – E juro que não vou te deixar sozinha dessa vez! – olhava nos olhos

 

Renata jogou-se nos braços da mãe e chorou dolorosamente.

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza e Goulart conversavam enquanto caminhavam lentamente pelo pátio do Instituto. O homem carregava um envelope de papel pardo debaixo do braço direito.

 

--Na quarta passada, o presidente da Câmara acatou um pedido de abertura do processo de impeachment dessa presidente terrorista. – o homem comentou – Tenho certeza que ela não chega sequer até junho nesse cargo! – sorriu satisfeito – Ainda que a esquerda faça todo o possível pra impedir o inevitável!

 

--E no lugar dela virá Marcel Brener. – Elza respondeu de pronto – Ficha suja de longa data. – comentou

 

--Entendo o que quer dizer, mas Brener se curvará a muita coisa pra ficar no poder até o final do mandato. – retrucou – Vai cortar todos os absurdos que o Partido dos Labutadores vem fazendo.

 

--E certamente fará outros até piores! – a militar novamente se contrapôs – Houve um tempo em que fui a favor desse impeachment, mas agora não vejo ganhos! – considerou – É totalmente diferente da conjuntura que tínhamos em 92.

 

Estranhou o que ouvia. – O ganho, minha querida, é que será um golpe certeiro na espinha dorsal da esquerda, que vai demorar muito tempo pra se reerguer! – explicava seu ponto de vista – E o efeito colateral é que o ambiente vai ficar ainda mais propício pra eleição de alguém como o deputado Montanauro pra presidência da república! – continuavam caminhando

 

“Yara tinha razão o tempo inteiro quanto aos objetivos dessa coisa toda!” – a militar pensou -- Eu gostaria de ver um militar como presidente da república, mas não alguém como Montanauro! – olhava para o caminho que faziam – Ele sequer representa a corrente de direita que eu defendo.

 

–Você defende a boa gestão dos recursos públicos, patriotismo, um ambiente econômico diversificado e dinâmico, hierarquia e disciplina... Não percebe que Montanauro é da mesma linha? – buscava convencê-la -- E se ele ganhar, esteja certa, Brener vai ser preso logo em seguida! Luiz Horácio com certeza também não escapa!

 

--Eu pesquisei sobre esse deputado. Depois de tantos anos no poder, o que ele fez que tenha sido digno de nota? – novamente se opôs – Há nomes bem melhores em nossos quadros! – ajeitou o bibico na cabeça – Sem contar que é indefensável justificar o que ele já andou falando sobre mulheres, negros e LGBTs. – pausou brevemente – Ou seja, tudo que eu sou!

 

--Política é um jogo, minha cara! Nem tudo que Montanauro fala deve ser considerado. Ele diz o que diz, apenas pra angariar simpatizantes em todas as correntes contra a esquerda, não necessariamente porque pense tão pequeno. – justificou -- As coisas vão mudar, Elza. Todos terão que assumir um lado. Talvez seja hora de você ajustar as coordenadas de voo e guinar pra uma nova direção, já pensou nisso? – olhou rapidamente para ela – E quem não estiver conosco, será visto como alguém contra nós! – advertiu

 

--Conosco, quem, coronel Goulart? – perguntou intrigada – Não vejo todos os militares alinhados com Montanauro, por exemplo! Vejo até muitos torcendo pela esquerda. – pensava em Fernandão

 

--Conosco quem? – parou de andar – Quero dizer, a maioria que logo se fará ouvir. – olhava para ela – Elza, ao que tudo indica, serei promovido a brigadeiro no ano que vem. – percebeu que ela ficou surpresa e feliz com a notícia – E pelo que tenho ouvido, seu nome é fortemente cogitado à promoção como tenente-coronel no ano que vem também. – sorriu

 

Sentiu o coração disparar. -- Jura?? – conteve-se para não pular de alegria – Nossa, ninguém da minha turma chegou nessa posição ainda! – sorria empolgada

 

--Seu trabalho de doutorado, as contribuições pro Plano Nacional de Defesa e o trabalho junto à população civil que você coordena há tantos anos, certamente pesam muito. – esclareceu – Talvez nenhum dos seus colegas de turma tenha currículo que se compare.

 

--Meu Deus! – colocou as duas mãos sobre o peito – Quando meu pai souber disso... ai, não vou tocar no assunto antes da hora pra evitar o pior! Lembra que ele chegou a ser internado quando fui à major? – sorria

 

--Claro que me lembro. De minha parte também quase passei mal. – riram brevemente – Mas você faz bem em esperar, porque pode não acontecer.

 

--Eu sei. – concordou – Nunca se pode menosprezar a capacidade dos que concorrem conosco.

 

--Também isso, mas... – prestava muita atenção na mulher – As coisas vão mudar muito no ano que vem, tenha certeza. E ficará cada vez mais difícil pra um militar alinhado com a esquerda conseguir progredir sem penar muito pra se mostrar confiável! – advertiu – E creia: quem estiver com os comunistas nunca vai inspirar a menor confiança nos oficiais generais que estarão à frente no futuro próximo! – segurou o envelope com as duas mãos

 

Estranhou o que ouviu. – Por que está me dizendo isso, coronel? – perguntou intrigada

 

--Chega de teatro, major Elza Machado! – pediu em tom mais firme – Eu sei tudo sobre você e Yara! – percebeu que a negra estremeceu – Por muito tempo cheguei a acreditar que o término de vocês era definitivo, mas não... – cerrou os olhos – Graças à capitão Luiza soube do seu deslize de correr pra Brasília pra ajudar a libertar aquela maldita comunista! – acusou

 

--Tio, eu... – pensava no que dizer

 

--Aqui dentro é coronel Goulart! – interrompeu a fala da outra – E nem perca seu tempo tentando me convencer que me engano porque desde então acompanhei as duas de perto! – entregou o envelope nas mãos dela – Duvida? Veja por si mesma! – pediu

 

Elza abriu o envelope e se surpreendeu com o que viu.

 

--Aí estão fotos de você e a comunista passeando em Campos do Jordão, Salvador, no aeroporto de Santiago... – percebeu o olhar de espanto da sobrinha – Também conheço pessoas no Chile! – esclareceu – Você e ela podem ter saído do Brasil por aeroportos diferentes mas se encontraram na capital chilena e meus contatos tinham as informações sobre o seu voo. Foi fácil vê-las juntinhas! – explicou – E apesar de só ter começado a investigar depois do que Luiza me disse, concluí que você reatou com aquela maldita desde pouco tempo após o regresso pro Brasil, conforme eu vinha desconfiando há tempos! – acusou – Suas viagens pra Pernambuco e pro Amazonas não foram escolhas aleatórias, não é, major?

 

Respirou fundo e devolveu o envelope ao tio. – Tudo bem, eu não vou negar que estamos juntas! – admitiu – Yara e eu reatamos em 2010 porque acabamos nos reencontrando sem querer em São Paulo no começo do ano. – mentiu – Então marcamos a viagem pra Olinda...

 

Balançou a cabeça com um olhar de reprovação. -- Como se não bastasse aquela mulher ser uma comunista, uma aliciadora marxista no meio universitário, uma baderneira fichada pela polícia, a maldita ainda teve assento na Comissão da Mentira e defende todas as conclusões que foram tiradas ali! -- Goulart sacudiu brevemente o envelope – Com isso aqui, major, não há quem tenha sombra de dúvidas de que sua namoradinha te coloca em posição de total descrédito no meio dos oficiais superiores! – salientou

 

Ficou aborrecida com o que ouviu. “Eu não acredito que ele tá fazendo isso comigo!” – pensou decepcionada – De posse desse conhecimento, o que pretende fazer, coronel Goulart? Entregar essas fotos pros superiores e convencê-los de que não mereço a promoção no ano que vem? – perguntou desafiadora – Qual a próxima jogada agora? – falava com firmeza

 

--A próxima jogada será sua, major! – afirmou de pronto – Você vai se livrar de uma vez por todas daquela mulher e vai passar a se posicionar em suas redes de uma forma muito menos moderada! – olhava nos olhos – Quero vê-la condenando a Comissão da Mentira, apoiando o impeachment e mais que tudo: apoiando o deputado Montanauro! – falou o que esperava dela – Você pode e deve dar espaço de fala pra ele em suas redes sociais, inclusive convidando o deputado pra visitar as mesmas escolas e comunidades que você visita!

 

--Então é isso? – olhava nos olhos – Abra mão do seu amor e venda a sua alma em troca de uma patente de tenente coronel? – ironizou

 

Estranhou aquele tom. – Elza? – perguntou sentindo-se desrespeitado – Você resume a situação a simplesmente isso? – revoltou-se – O caso aqui é o de assumir um lado! O lado certo! – gesticulou brevemente – Até quando vai se comportar como uma adolescente? -- cobrou

 

--A vida inteira eu me esforcei pra fazer tudo aquilo que o senhor considerava certo! Eu me esforcei pra lhe orgulhar, mas nunca foi o suficiente, não é? – desabafou – Eu sempre me esforcei pra ser perfeita diante dos seus olhos e quando isso machucava demais os desejos do meu coração, mentia. Só pra não lhe desagradar... – os olhos marejaram – E o senhor chega aqui, agora, e me dá um xeque-mate... – sorriu – Pois bem coronel Goulart, vou lhe dizer o que vou fazer. – não se permitia chorar – Eu não vou apoiar o impeachment, não vou apoiar Montanauro e acima de tudo: – aproximou-se uma pouco mais do homem – não vou abandonar Yara! – percebeu o espanto do homem – Se tem uma coisa que concordamos aqui é que eu devo parar de agir como adolescente! É verdade! – falava com firmeza – O tempo em que o senhor me controlava, acabou! Agora sou uma mulher e vou agir como tal em todos os compartimentos da minha vida!

 

--Elza?? – estava pasmo

 

--Em suas investigações o senhor não notou que meu pai, Fernandão e eu tiraremos férias no mesmo período? Não percebeu que sairemos os três agora em janeiro? – continuava falando com segurança – Nós vamos passar o período na região dos lagos do Rio, junto com a família da Alê. – anunciou – Meu pai, Fernandão e Alana, eu, Yara e dona Kedima. – novamente Goulart se chocou – Acho que não preciso lhe dizer quem é dona Kedima porque o senhor já deve saber. – ironizou

 

--Você enlouqueceu?? – perguntou furioso – E Machado... Ele sabe dessa patifaria toda e concorda? – não aceitava – Fernandão não me surpreende, mas ele?

 

--Sim, coronel, ele sabe. – confirmou de imediato – Minha família, que me respeita e aceita, sabe e não vê problema algum!

 

O homem sentiu uma dor profunda ao ouvir aquilo.

 

–Agora vá e divulgue essas fotos! – provocou o homem – Espalhe pra todo mundo que a major Elza Machado é a maldita de uma neguinha lésbica, que namora uma comunista e por isso é indigna de estar onde está! – derramou uma lágrima – Vá e diga que todos foram enganados por mim por todos esses anos! Eu não passo de uma farsa! – abriu os braços brevemente – Como é que os racistas dizem? Negro quando não caga na entrada, caga na saída! – ironizou -- Então eu caguei!

 

--Eu não acredito nisso... – derramou uma lágrima também

 

--Pra finalizar, como tô cometendo uma contravenção disciplinar, já que desrespeito um superior hierárquico, mande me prenderem! – continuava desafiando – Ou então que me transfiram pra bem longe, exatamente como fizeram como o senhor no passado, lembra? – preparou-se para partir – Tenha uma boa tarde, coronel! – prestou uma continência rápida e se afastou

 

Goulart ficou sem ação.

 

***

 

--Isso não é possível, Machado! – o coronel segurava o amigo pelos ombros – Você não pode concordar com tudo isso, não é admissível! – falava nervosamente – Elza parece que enlouqueceu, Fernandão tá perdida também e só me resta você pra me ajudar a trazer a ordem! – olhava para o outro – Aquela maldita comunista simplesmente tá destruindo a vida da Elza, destruindo essa família e vocês não veem isso!

 

--Prestimoso coronel, peço-vos que me liberte dos vossos grilhões! – pediu com seriedade – Não me agrada este tratamento!

 

--Machado?! – soltou o homem – Será possível que você ouviu alguma palavra que eu disse? – estava pasmo

 

--O prestimoso coronel sabe que por todos estes anos tenho-vos sido fiel e grato, porém há limites. – respondeu com firmeza – Estou ciente do que fizeste e ciente do que disseste a minha empoderada filha e meu coração paterno-militar não suportou vê-la ontem a chorar por conta dos vossos desmandos!

 

--Ela chorou? – perguntou com tristeza

 

--Por horas, tal qual criança decepcionada com a inexistência dos ídolos pueris! – lembrava do fato – Sempre respeitei hierarquia e disciplina e aceitava vossa ascendência sobre mim dentro e fora da Organização Militar, porém, é chegado o tempo de dar um basta! – decidiu – Elza é major e vossa subordinada sob os auspícios da amada Aeronáutica, mas aqui, dentro do meu lar militar, ela é MINHA filha, MEU rebento e ninguém, nem mesmo o senhor, pode fazê-la sofrer ou me dizer o que fazer! – olhava nos olhos

 

--Meu Deus, Machado, você nunca falou assim comigo... – respondeu decepcionado

 

--Nunca houvera motivo até então! – retrucou de pronto – Se o prestimoso já concluiu o que desejava me dizer, peço-vos licença, pois minha empoderada, a garbosa e sua consorte me aguardam no Shopping Center e costumo a prezar pela pontualidade. -- informou

 

–Então... quer dizer que não sou mais da sua família? – Goulart perguntou segurando as lágrimas – Vocês estão me descartando? – sentia-se injustiçado – Depois de tudo que fiz por cada um de vocês?

 

--O caso aqui é o de assumir um lado! O lado certo! – repetiu o que Goulart vivia dizendo -- Decida o senhor! – prestou uma continência rápida – Por ora, vou banhar-me e preparar-me para o aprazado compromisso supracitado. Será que me daria licença, coronel? – pediu educadamente

 

Goulart passou a mão no rosto e saiu da casa de Machado apressadamente. Sentia-se perdido, abandonado e infeliz. “Ah, Graça, queria tanto que você ainda estivesse aqui...” – não conseguiu reter as lágrimas – “Eles não me entendem, não veem que faço o que faço pelo bem de todos...” – chorava – “Por causa daquela mulher, eles não gostam mais de mim...” – lamentava-se – “Eles preferiram ela...” – não se conformava

 

 

Fim do capítulo