Goiânia, estado de Goiás

 

--O ano de 2013 ainda nem terminou, mas muitas coisas relevantes já aconteceram até aqui, nesse conturbado mês de julho que acaba hoje! – Jurema falava para os demais – Inúmeros protestos marcaram o dia a dia do país, inclusive durante a Copa dos Confederados, e eis que surgem os tais PleckPlocks trazendo violência a essas manifestações! Seriam policiais disfarçados? Muitos acham que sim e não à toa! – gesticulava com o microfone em uma das mãos – Tivemos a prisão de alguns réus do mensalinho, a visita do Papa, o pastor Otaviano promovendo a cura gay na Comissão dos Direitos do Povo e, não menos importante, as denúncias de espionagem internacional sobre a nossa presidência e estatais relevantes! – destacava o que mais entendia como crítico – Fechando com chave de ouro, a presidenta Vilma infelizmente manteve a decisão de realizar o leilão do gigantesco campo de petróleo de Balança! – pausou brevemente – Companheiros, mais que nunca a situação é crítica e precisamos reorganizar nosso calendário de lutas pra ontem!

 

Os presentes manifestaram acordo com o que ouviram.

 

--Eu ainda diria mais, companheira Jurema! – Yara fez uso da palavra – Nós e todos aqueles que se dizem esquerda precisamos conceber alguma estratégia inteligente, porque nós apenas reagimos mas raramente agimos! – salientou – Repito o que venho dizendo há alguns anos: uma guerra silenciosa se trava diariamente nesse país e as esquerdas parecem não perceber! – olhava para os demais – Está sendo concebido um cenário de tomada do poder por forças que não mais se sentem contempladas pelo governo do Partido dos Labutadores! – advertiu – E o que vem por aí, será muito mais agressivo! – gesticulou – O pior da sociedade brasileira está saindo dos armários, ganhando espaço e se nada fizermos, chegará a um ponto em que eles convencerão a maioria!

 

--Tenho total acordo com as camaradas Jurema e Yara e proponho que ao menos as lideranças dediquem uma semana de suas vidas pra discutir, estudar e conceber um calendário de lutas que se estenda para além das eleições de 2014! -- Omar opinou

 

--E desde quando estivemos parados, companheiro? – Ivo se contrapôs – Os camaradas falam como se ficássemos aqui apenas assistindo!

 

--Nunca ficamos apenas assistindo, eu concordo, mas não evoluímos! – Jurema respondeu de pronto – Nós lutamos da mesma forma que fazíamos nas décadas anteriores, só que tudo mudou! – gesticulou – Nossos inimigos usam recursos tecnológicos e neurociência pra conseguir o que querem! E nós? – provocou – Continuamos no esquema do carro de som e discursos que nos incham as veias do pescoço, mas não tocam as pessoas que nos escutam, sem nos ouvir!

 

--Perfeito, companheira! – Yara concordou – Precisamos refazer nossas estratégias e lutar de modo a minimamente deter o que está sendo posto! – desejava despertá-los – Eu não sei o que propor, mas juntos haveremos de enxergar um caminho!

 

Os demais ouviam sem ainda perceber as diferenças entre o passado e a atualidade.

 

***

 

--Companheira Yara? – Celeste se aproximava – Não vi seu nome na lista dos que participarão do protesto contra o leilão do campo de Balança. – comentou com estranhamento – Você não vai?

 

--Participarei da organização do protesto de todas as formas que puder, mas não poderei viajar pro Rio porque as obrigações na faculdade me prendem aqui. – olhava para a outra – Penso em organizarmos algo em Brasília, em paralelo ao que vai acontecer no Rio, porque conseguiremos fazer mais barulho e os que não poderão se deslocar pra tão longe, como eu, poderão participar.

 

Novamente estranhou o que ouviu. – Está mudada, companheira! – cruzou os braços – Hoje em dia me parece bem mais ligada a essas coisas de carreira, te vejo fazendo planos, falando de estratégia como uma verdadeira militar... – reparava na outra – Seriam influências da sua... amante de São José dos Campos? – perguntou provocadora

 

Respirou profundamente antes de responder. – Sabe que sempre lhe tive muito respeito, camarada Celeste, e sabe que lhe devo muito! Nunca neguei a dívida imensa que tenho! – olhava nos olhos – Mas nem por isso admito esse tipo de coisa! – falava com seriedade – Já lhe disse mais de uma vez que minha vida particular é MINHA vida particular e não do Partido!

 

--E eu já lhe adverti mais de uma vez sobre as consequências do erro que insiste em cometer há nem sei quantos anos! – retrucou de pronto -- Porque você nega, mas eu tenho certeza de que nunca se separou daquela mulher! – falava de Elza – Um dia isso vai te custar muito caro!

 

--Se era só isso, camarada, peço licença. – cortou o assunto – Prometi a dona Kedima que ainda hoje ajudaria ela com uns trem na internet. – fez um gesto de cabeça – Até mais! – afastou-se e partiu

 

--Ai, ai, Yara... – suspirou inconformada – Sua cabeça é seu mestre! – observava a indígena sair do auditório

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza trabalhava atentamente em seu projeto de navegação autônoma baseada em cena. Detinha-se nos componentes de hardware de um veículo aéreo não tripulado recentemente adquirido pelo Instituto.

 

--Com licença, major? – Luiza pediu formalmente ao parar diante da porta

 

--Pode entrar. – olhou para a colega – Precisando de alguma coisa, capitão? – perguntou curiosa

 

--Na verdade, -- entrou na sala -- era o que eu iria lhe perguntar. – sorriu – São quase sete da noite e seu expediente ainda não terminou. – permanecia de pé – Talvez eu possa lhe ser útil...

 

“Ela nunca deixa de prestar atenção em minha vida...” – pensou com um pouco de pena da outra – Estou trabalhando na modelagem aerodinâmica do nosso mais novo VANT porque pretendo fazer algumas modificações na carenagem dele. – olhava para Luiza – Quando estou plenamente envolvida em um projeto não costumo a atentar pra hora, especialmente com meu pai viajando à serviço.

 

--Sim, eu tô ciente sobre esse projeto. – sorriu novamente – E tava pensando em lhe pedir pra fazer parte dele...

 

--Ainda não fechei a composição da equipe, Luiza. – voltou a olhar para o computador, salvou os arquivos e desligou a máquina – Amanhã conversamos sobre isso. – começou a arrumar suas coisas – Agora vou me preparar pra ir embora. – decidiu

 

--Sim, senhora! – respondeu sem graça – Eu demorei mais tempo aqui hoje pra finalizar uma documentação mas também já vou indo embora. – caminhou até a porta da sala – Será que... seria muito inconveniente se lhe pedisse uma carona? – falou de cabeça baixa

 

Pensou antes de responder. – Tudo bem, Luiza, me encontre no estacionamento. – levantou-se – Você sabe qual é o meu carro e onde estaciono.

 

--Obrigada! – sorriu e seguiu pelo corredor rapidamente – “Vou no banheiro passar um batom!” – pensou

 

--Espero não me arrepender por isso... – Elza resmungou consigo mesma

 

***

 

Elza vinha dirigindo acompanhada por Luiza. Conversavam sobre amenidades enquanto ouviam a rádio de notícias que a major sintonizou. De repente, uma notícia chama a atenção da negra.

 

--E apesar dos protestos ocorridos em frente ao hotel Vindisor, no Rio de Janeiro, o leilão do campo de Balança aconteceu normalmente e representou a maior privatização da história do Brasil! – a repórter anunciava – Mas, ao contrário das expectativas do governo, o consórcio que arrematou o bloco ofereceu o valor mínimo exigido e representou o único proponente a fazer lance no leilão. – continuava noticiando – O consórcio é formado pela Petrobraza junto a empresas estrangeiras como Well e Completal, além das chinesas Xiong e Miong.

 

--Humpf! – Luiza fez um bico – Pelo menos nossa estatal tá nesse consórcio! – comentou contrariada – Pouca vergonha isso aí! Ainda mais da parte de um partido que sempre criticou tanto as privatizações!

 

--Esse é o tipo de privatização que eu sou contra! – Elza afirmou – Empresas e recursos estratégicos não devem jamais ser privatizados! – franziu o cenho – “Yara deve tá arrasada!” – pensou

 

--Brasília também foi palco de manifestações contra o leilão e, assim como aconteceu no Rio, algumas pessoas foram presas, -- a repórter continuava anunciando – como a professora universitária, liderança do Partido Comuna, Yara Saraíba!

 

--O que?? – parou o carro bruscamente – “Puta que pariu, Yara!!” – pensou sobressaltada

 

Carros que vinham atrás buzinaram e desviaram do veículo. Os motoristas passaram xingando.

 

--Que é isso, Elza?! – Luiza perguntou sem entender – Por que parou o carro aqui? – olhava para todos os lados – Pelo amor de Deus, vamos embora porque não quero sofrer um acidente! – pediu nervosamente

 

--Já estamos chegando, né? – respondeu nervosamente ao voltar a seguir com o carro – Vamos embora!

 

--Você conhece a mulher que foi presa, o que significou isso? – não entendia

 

--Claro que não conheço, eu... – não sabia o que dizer – Por um momento pensei que fosse uma amiga minha. – estava nervosa – Mas eu não tenho amizade com comunistas! – o coração batia acelerado – “Meu Deus, como será que ela tá?” – pensava com aflição – “Será que bateram nela?” – dirigia nervosamente

 

***

 

--Alê, boa noite! – andava de um lado a outro – Desculpa ligar a essa hora, espero que vocês estejam bem mas eu preciso de um favor! – estava dentro de seu quarto – Fala com Jonas, pelo amor de Deus, e vê se ele consegue descobrir como que Yara tá porque ela foi presa em Brasília! – estava aflita

 

--Presa? Puta que pariu! – arregalou os olhos – Por que?

 

--Foi protestar contra o maldito leilão do campo de Balança e deu nisso! – respondeu de imediato – Por favor, amiga, fala com Jonas? – insistiu – Tenho certeza que o Comuna deve tá se mobilizando pra tirar ela de lá, mas eu preciso de notícias e não posso procurar por dona Kedima! Não posso fazer uma idosa ter um infarto! – ajeitou os cabelos – “Se é que já não teve!” – pensou

 

--Ele tá aqui do meu lado e a gente vai ver isso agora mesmo. – garantiu – Fica calma, amiga! Vai dar tudo certo!

 

--Deus te ouça! – segurou o crucifixo do cordão e o beijou – Deus te ouça! -- desejava

 

***

 

--Divisão Sensi 1, bom dia. Sargento Nunes falando.  – o homem atendeu o telefone sem olhar para a bina

 

--Bom dia, sargento. Aqui é o Coronel Goulart. – cumprimentou -- Gostaria de falar com a major Elza mas até agora não a encontrei no ramal da sala ou do laboratório. Poderia localizá-la pra mim, por gentileza?

 

--Bom dia, senhor. – falava com formalidade – A major não veio trabalhar hoje.

 

Surpreendeu-se. – Não veio?? – achou estranho – Tem certeza?

 

--Também estive procurando pela major e o pessoal do controle de acesso me garantiu há pouco mais de 5 minutos atrás que ela não veio. – o sargento respondeu

 

--Ok, obrigado. – ficou desconfiado – Pode me transferir então pro ramal da capitão Luiza?

 

--Sim senhor. – fez conforme solicitado

 

--Bom dia, coronel Goulart, tudo bem? – a mulher atendeu ciente de quem se tratava – Posso ajudá-lo em alguma coisa?

 

--Bom dia, capitão Luiza, espero que esteja bem. Eu estou bem, graças a Deus. – debruçou-se sobre a mesa – Acabo de saber que a major Elza não foi trabalhar e ainda não consegui falar com ela hoje. – foi direto ao assunto – Nem pelo celular, que está fora de área ou desligado, não sei. Machado está em viagem de serviço e não quero deixá-lo alarmado. – pausou brevemente – Por acaso esteve com ela ontem? Está sabendo de alguma coisa?

 

--Olha, coronel, sabendo de alguma coisa concreta, realmente não sei, mas... – pensava se deveria dizer ou não -- Ontem ela me deu uma carona pra vila e aconteceu uma coisa muito estranha. Não sei se tem a ver, mas... talvez seja importante o senhor saber...

 

--E o que seria? – não imaginava

 

--Ouvimos uma reportagem sobre o leilão do campo de Balança e quando foi dito que uma professora foi presa em Brasília, a major ficou tão desequilibrada que pensei que sofreríamos um acidente de trânsito! – contava o episódio – Ela disse que pensava que a tal mulher era uma amiga dela, mas não era... – gesticulou – Enfim, talvez ela tenha ido conferir sobre quem se tratava... – pausou brevemente – Eu não estou aqui pra colocar minhocas na cabeça do senhor, mas talvez esse sumiço tenha a ver com o caso. A major é extremamente séria e responsável no trabalho pra desaparecer assim sem mais!

 

--E por acaso a reportagem informou o nome da tal professora? – sentia o coração acelerar – A senhora lembra de alguma coisa nesse sentido? – queria saber

 

--Não lembro do nome completo mas acho que era Yara. – pensava – É, é isso mesmo...

 

--Obrigada, capitão. – agradeceu pronto para desligar – Já me ajudou bastante! Tenha um bom dia de trabalho!

 

--Igualmente, senhor. – ouviu o telefone ser desligado – Será que eu falei alguma coisa que não deveria? – perguntou-se ao colocar o fone no lugar

 

--Depois de tantos anos... – Goulart falava sozinho – Elza, Elza, você nunca sai da adolescência... – respirou fundo

 

 

Brasília, Distrito Federal

 

--EU NÃO ACREDITO NISSO, YARA, NÃO ACREDITO! – Elza reclamava agressivamente enquanto as duas davam entrada no quarto de hotel – UMA MULHER ADULTA, PROFESSORA, QUE DEVERIA TER UM MÍNIMO DE RESPONSABILIDADE, VAI PROTESTAR POR CONTA DE UM LEILÃO ACONTECENDO NO RIO, APANHA DA POLÍCIA, TOMA UM TIRO E AINDA É PRESA! – fechou a porta do quarto – E TUDO ISSO PRA QUE? PRA QUE? – falava com raiva – PRA NADA! – seguia andando atrás da outra – A MERDA DO LEILÃO ACONTECEU E VOCÊ FICOU AÍ: MACHUCADA, SUJA, FICHADA... – olhava para a indígena – TÁ TODA FUDIDA! – reparou na amante de cima a baixo – GOSTOU DE FICAR PRESA?

 

Sentou-se em uma cadeira com dificuldade. – Preciso de um banho... – tirava os tênis – Ainda bem que o pessoal me trouxe muda de roupa. Ai... – gem*u – Esperei pra trocar quando finalmente fosse solta! – tirou a blusa suja de sangue – Também preciso de uns curativos... – reparava em si mesma enquanto tirava as calças – Graças a Deus, o tiro foi de raspão... – esfregou a mão na coxa direita – Mas aquelas balas de borracha fazem estrago, ô, minha via Crucis... -- resmungou

 

--Ah! – cruzou os braços indignada – VOCÊ OUVIU ALGUMA COISA DO QUE EU DISSE, YARA SARAÍBA? – perguntou furiosa – NÃO SEI SE REPAROU, MAS EU TÔ AQUI E LARGUEI TUDO EM SÃO JOSÉ PRA VIR TE AJUDAR!

 

--Eu sei e já te agradeci por isso! – olhava para a negra – O que mais quer que eu faça? – levantou-se devagar – Não sabe o quanto fiquei feliz por te ver, pela sua atitude em ter vindo pra cá... Mesmo tendo que aturar você falando comigo desse jeito, como se eu fosse pior que cachorro! – passou a mão nos cabelos sujos – Mas o que eu preciso agora é de um bom banho e depois de curativos. – seguiu caminhando até o banheiro – Depois você me passa sermão! De preferência, em tom normal porque não sou surda! – tirou o top devagar – Eita, que dói tudo! Ô, chinelada do Cão... -- reclamou

 

–Além de tudo é debochada! – retrucou em tom ríspido -- Olha pra onde essa merd* de Comunismo te leva! – foi até o banheiro também – Continue assim que vai acabar morta! – advertiu

 

–Não é o Comunismo o culpado por tudo isso. – tirou a calcinha – Mas a inércia da maioria das pessoas diante do mal! – virou-se de frente para a negra – É gente como você! – acusou

 

--AH, AGORA A CULPA É DE GENTE COMO EU? – voltou a falar alto – SE VOCÊ CUIDASSE MAIS DAS SUAS OBRIGAÇÕES AO INVÉS DE...

 

--NÃO ME FALE DE OBRIGAÇÕES QUANDO VOCÊ NÃO CUMPRE AS SUAS! – interrompeu a fala da outra aos berros, mas se conteve – Você é uma militar, major Elza Machado! – olhava nos olhos – Sua obrigação, assim como a dos seus colegas de farda, é a de defender a pátria mesmo que com o sacrifício da própria vida! – lembrou – Onde vocês estavam enquanto o governo fazia a maior e mais absurda privatização da história? – gesticulou – Por que não agiram pra impedir aquele maldito leilão? – cobrou – Onde vocês estavam na década de 90, quando inúmeras privatizações fraudulentas foram praticadas? – continuava cobrando – Alguns de vocês ficam aí criando caso e inventando histórias absurdas por causa da Comissão de Investigação do Regime! Outros permanecem inertes diante de tudo de ruim que o governo, qualquer governo, faça! E aí vem você me falar de cumprir obrigações? – perguntou sarcástica – Se alguém nessa história cumpriu obrigação, foi cada uma das pessoas que saíram de sua zona de conforto pra protestar contra aquele leilão!

 

--Militares não somos arruaceiros! Não é nossa obrigação ir protestar contra leilão! – retrucou com raiva

 

--Mas é obrigação de vocês defender a pátria! – novamente lembrou – E por que não defenderam? Por que não defendem? – cobrou enfática – Desculpe, mas você não tem como responder isso! – sentia-se mal – Vou tomar banho. – movimentou-se para entrar no box

 

--Você não pensa em ninguém! – acusou com raiva – Larguei tudo por você e ainda tenho que ouvir essas coisas! – sentia-se desvalorizada

 

--Não penso? – respondeu antes de fechar a porta do box – É justamente por pensar no coletivo que agora tô do jeito que você me vê: toda fudida! – fechou a porta de vidro

 

--Eu vou deixar você tomar seu banho e se virar com seus curativos. – decidiu – Volto mais tarde. – olhava para a outra com mágoa – Se voltar! – saiu do quarto rapidamente

 

--Droga! – Yara deu um soco no ar – Droga! – abriu o chuveiro e deixou a água molhar seu corpo – Droga! – sentia-se uma perdedora e começou a chorar

 

--Eu não quero mais passar por isso! – Elza dizia para si mesma enquanto descia pelo elevador – Eu não quero nunca mais ter que vir correndo porque a mulher que eu amo foi presa e... – começou a chorar – Merda! – saiu andando com pressa quando o elevador chegou no térreo

 

***

 

Yara estava sentada na cama e pensando na vida. Já havia ligado para Elza inúmeras vezes mas sem sucesso. “Ela não vai voltar...” – concluiu – “Tô muito cansada. Amanhã faço o check out e volto pra Goiânia.” – decidiu – “Já liguei e conversei com todo mundo que tinha que procurar.” – suspirou – “Pena que a pessoa que eu mais queria conversar não tá a fim disso...” – levantou-se com dificuldade, pegou um cabo de vassoura e caminhou até a janela

 

De repente um barulho chama a atenção da indígena e a porta se abre. – Boa noite. – cumprimentou mais calma

 

“Graças a Deus!” – pensou aliviada – Imaginei que a essa hora você já estaria pousando em São Paulo. – afirmou com voz de cansaço – Às vezes eu gosto quando me engano... – sorriu

 

Permaneceu séria. – Cheguei a ir no aeroporto pra trocar a passagem mas dei meia volta. – aproximou-se da outra – Esqueci a mala aqui. – deixou a bolsa tira colo sobre o móvel -- Quem fez esses curativos em você? – perguntou interessada

 

“Então ela só voltou por causa da mala?” – pensou decepcionada -- Consegui ajuda numa farmácia, depois da moça da recepção do hotel ligar pra algumas perguntando se me fariam curativos.

 

--E esse cabo de vassoura? – reparou

 

--O rapaz do restaurante veio trazer aqui pra me ajudar a caminhar melhor. – pausou brevemente – Ainda tem muita gente boa nesse mundo, né?

 

--É... – respondeu pensativa – E eu acho que a gente precisa de uma conversa. – cruzou os braços

 

--Já que você precisou voltar por causa da mala e não deve ter mais voo disponível por hoje, -- puxou uma cadeira e se sentou com dificuldade – vamos conversar. – respondeu chateada – Aproveitar o tempo. – olhava para a negra

 

Puxou a segunda cadeira do quarto e se sentou também. – Não seja tola, Yara. – cruzou as pernas – Você sabe muito bem que eu não voltei só por causa da mala!

 

--Sei? – sorriu descrente – Você tem certas atitudes que eu não entendo, Elza... – gesticulou brevemente – O que foi isso que aconteceu? – perguntava para si e para ela – Nunca brigamos de um jeito tão agressivo quanto dessa vez! Você nunca me fez sentir tão mal quanto me fez hoje!

 

--Poderia te dizer o mesmo! – olhava nos olhos – Eu não quero nunca mais passar por isso, Yara! Nunca mais! – afirmou com firmeza

 

--Isso, o que? – apoiou os cotovelos sobre os joelhos – Seja clara, por favor. – pediu

 

--Eu nunca mais quero precisar tirar você da cadeia! – sentou da mesma forma que a indígena – Eu nunca mais quero ouvir de você o que ouvi hoje! Especialmente no tom que ouvi hoje!

 

--Então vamos combinar uma coisa: não me ajude se não tiver condições de bancar isso! – afirmou com firmeza também – Assim como você, não quero nunca mais ouvir o que ouvi e no tom que ouvi hoje!

 

Elza ficou calada estudando o rosto da outra até que decidiu perguntar: -- Algo mudou entre nós? – tinha medo da resposta – Algo se perdeu hoje?

 

--Até mesmo as pessoas que se amam podem ser cruéis umas com as outras. – a indígena respondeu em tom mais leve – Eu vou ser bem sincera com você, Elza... – abaixou a cabeça brevemente – Tô me sentindo uma perdedora! – assumiu – Porque o leilão aconteceu, apesar de tudo. Porque sofri com uma forma de repressão que nunca havia experimentado antes. Porque fui ajudada por você, mas sob o preço de sentir um mau trato que me doeu fundo. Porque falei com você de um jeito que eu não queria e nem devia. Porque me senti uma idiota completa... – os olhos marejaram – Eu não sei dizer se algo se perdeu ou mudou, tomara que não, mas tudo que eu queria era só um colo e nada mais... – derramou uma lágrima – E pela primeira vez em todos esses anos constato que você não quer me dar esse colo! – ficou uns segundos calada – Não sei se por uma raiva temporária de mim ou se porque de fato, algo mudou...

 

Sentiu o coração amolecer com o que ouviu e se emocionou. – Eu quero sim! – levantou-se – Eu quero! – abriu os braços – Vem aqui, vem? – pediu com carinho

 

Yara se levantou também e a abraçou com força. – Me perdoa? – tentava não chorar – Eu sou assim, Elza, eu precisava tentar fazer alguma coisa e...

 

--Tá tudo bem! – acariciava a cabeça da namorada – Tá tudo bem... – perdia-se naquele abraço – Eu te perdoo, você me perdoa e tá tudo bem... – queria se convencer

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

--Você nunca mais me faça uma dessas! Nunca mais, viu? – a idosa dizia enquanto acariciava a cabeça da indígena – Eu pensei que ia bater as botas dessa vez! Tô velha, menina, o coração já não tem tanta força! – advertiu

 

--Perdão, dona Kedima... – pediu com humildade – Eu não queria fazer a senhora sofrer. – dizia a verdade – Nem a senhora e nem ninguém. – fechou os olhos – Mas não dava pra ver o mal acontecer e ficar parada!

 

--Sei como vocês funcionam, menina... – ninava a outra nos braços – Ai, ai, você e esse Comuna já me envelheceram dez anos! Tô até com o pescoço de peru, espia! – passou uma das mãos no pescoço

 

Achou graça e se desvencilhou da outra delicadamente. – Pescoço de peru, veja só! – riu novamente – Só a senhora, dona Kedima... – balançou a cabeça divertida

 

--Só eu sei! – gesticulou – E vou te dizer, além de todo cuidado que você me deu ainda tive que engabelar um Partido inteiro! – destacou – Todo mundo doido pra te tirar da prisão e de repente você sai, mas some! – lembrava – Jurema ficou igual galinha quando quer botar ovo e Celeste, Omar, João, Maria, Sérgio, aquela camaradagem toda que você tem, tudo doido pra saber de você! – contava – Enquanto isso, tome de camarada Natália telefonar, mandar e-mail... – parou para pensar – Ei, quem deu meu e-mail pra ela, hein? – cruzou os braços intrigada

 

Acho graça novamente. – Deve ter sido o LivrodasFuça! A senhora não fez perfil lá? – lembrava -- Deu nisso: o povo procura e acha! – explicou – Capaz de quando a senhora entrar lá, dar de cara com um monte de mensagens dela e de outras pessoas no seu perfil!

 

--Humpf! – fez um bico – Seja como for, eu disse que você me ligou e falou que ia dormir na casa de uma pessoa ligada à Igreja. – contava a história – Mesmo antes de você de fato me telefonar, teu sumiço me deixou claro que só podia ser uma coisa: teu amor bandido!

 

--Amor bandido... – sorriu – Só posso lhe agradecer, dona Kedima, além de pedir mil perdões! – pausou brevemente – Mas quanto ao meu amor bandido... Ah, eu não quero ficar pensando besteira, mas depois de tudo que aconteceu, tô me sentindo tão insegura... – confessou ao suspirar – Bem, já perdi tempo demais nessa confusão toda! – olhou para o relógio e se levantou – Tenho que trabalhar porque a vida não tá ganha e com certeza muitas pendências me aguardam na faculdade! Ausente desde segunda, né?

 

--Esse seu namoro é um trem doido que segue apesar de tudo! Não fique se consumindo, porque o que é nosso, fica guardado. – olhava para a indígena – Se aquela moça tiver que continuar no seu caminho, ela fica. Se tiver que passar, ela vai passar. Assim é a vida!

 

Yara beijou a testa da idosa e se despediu pensativa.

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza chegava em casa cansada. – Boa tarde, pai. – cumprimentou ao ver o homem sentado no sofá – Chegou de viagem há muito tempo? – tirou os sapatos e puxou a mala para dentro

 

--As atividades concluíram-se mais cedo que o aprazado. – observava a filha – Cheguei ontem. – levantou-se – E vós, para onde foste e por que, oh, minha empoderada? – queria saber – Soube que o Instituto sentiu vossa falta ontem e hoje. – olhava para a mulher – O que vos ocorrera?

 

Deu um suspiro profundo. “Chega de mentiras! Já não aguento mais isso!” -- pensou – Sabe pai, acho que devo lhe confessar uma coisa de uma vez por todas! – olhava para o homem – Preciso de um banho e também comer um pouco. Depois disso, gostaria que pudéssemos conversar. – pediu – De acordo?

 

Concordou – Mesmo desconhecendo vosso paradeiro e data de retorno, preparei-vos delicioso rancho que a aguarda na geladeira. – informou – Aquecerei vosso alimento enquanto retemperas-te no banho. -- decidiu

 

***

 

Machado analisava tudo que havia ouvido. – Assim sendo... – balançava a cabeça pensativo – Aquela indígena, representante de povos originários que habitara nosso lar militar há tantos anos, é na verdade vossa consorte? – mirou um ponto no infinito – Professora, comunista, revolucionária... hum... – coçou o queixo – Um amor bandido e longevo a vos aquecer o coração desde o ano 2000... – pausou brevemente – Treze anos de segredos ao redor do orbe planetário...

 

Acabou achando graça. – Orbe planetário, pai? Não exageremos... – prestava atenção no homem – Nossa psicóloga diz que nós devemos partilhar segredos, intimidade... – ainda não entendia a opinião dele – Pensei que já era mais que tempo de lhe confidenciar isso.

 

--Decerto, nossa garbosa sargento tem ciência da vossa senda amorosa de mulher? – considerou

 

--Sim... – confirmou – Afinal de contas, ela é como eu... Achei que me entenderia melhor...

 

--É justo... – concordou – E o prestimoso coronel? Ele sabe que...

 

--Não! – interrompeu o homem – Ele pensa que nós terminamos há anos e eu menti sistematicamente pra confirmar isso! – confessou envergonhada – Tio Goulart jamais aceitaria me ver com alguém como Yara. Ele deixou claro desde o início, quando percebeu sobre nós!

 

Gastou uns segundos calado antes de continuar a falar. – Quando conheci vossa mãe, eu era um nada! – lembrou-se do passado – Outras damas na posição dela, secretária de um lar ilustre e probo, jamais me dariam sequer um segundo olhar... mas ela me olhou e me viu... – vislumbrava o rosto da esposa na mente – A família da saudosa senhora Graça e o prestimoso coronel me abriram as portas para que eu pudesse me colocar cavalheirescamente capaz de pedir aquela mão de mulher. Mas, de outra sorte malsã, tal oportunidade poder-se-ia me ser negada. – considerou – Quando vossa amada aqui estivera, ela, de forma análoga porém mui discreta, se colocara sob o crivo da família. No entanto, desta feita a senhora Graça não mais se encontrava entre nós e o prestimoso negou-lhe a chance! – comparava as situações – E o Amor, sendo tão pungente como é, corroeu-vos o peito, forçando-vos a ocultar a verdade em troca de sentir-lhe as doces delícias... – filosofava – Em vosso lugar, desconheço como teria agido...

 

Segurou uma das mãos dele. -- Por favor, pai, estou confiando no senhor! – olhava para o homem – Sei que reprova mentiras, mas não deixe o tio Goulart saber, pai! – pediu humildemente – Eu podia ter mentido pro senhor e inventado uma história, mas dessa vez eu não quis fazer isso! Dessa vez, quis confiar no senhor! – pausou brevemente – Dessa vez eu quis fazer aquilo que a psicóloga vive nos pedindo pra fazer: estreitar a relação entre pai e filha! – dizia a verdade

 

Sorriu emocionado. -- É a primeira vez que minha empoderada major me diz algo que o prestimoso não saiba... – constatou – Primeira vez... – repetiu – Sempre fui o último a ter ciência de qualquer fato...

 

--Mas agora isso mudou! Meu pai é o senhor, não é? – sorriu também – Não são seus os cinquenta porcento dos cromossomos militares que eu tenho? – repetiu o que tantas vezes ouviu

 

--Meus! – afirmou orgulhoso – São meus! – estufou o peito -- Desaprovo mentiras, é fato, mas há que se notar que situações drásticas podem forçar à quebra da mais áurea regra! – cobriu a mão da filha com as dele – Não vos julgo, não vos condeno e deixo somente a vós o poder de decidir por quanto tempo viverá este amor com uma representante dos povos originários!

 

--Ai, pai! – levantou-se emocionada para abraçá-lo – Não sabe o quanto sonhei em ouvir isso! – abriu os braços

 

--Não sabe por quanto tempo sonhei em ser tratado como um pai! – abraçou-a – Vosso pai! – fechou os olhos – “Muito respeito, admiro e amo o prestimoso coronel, mas a filha, o rebento, é meu!” – pensou decidido – “Não cabe a ele aprovar esta situação, mesmo sendo um superior hierárquico!”

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo / Goiânia, estado de Goiás

 

Elza e Yara conversavam pelo Fuçaype.

 

--E é por isso que eu não vou poder viajar com você em janeiro, minha linda. – a indígena dizia entristecida – O coração de dona Kedima nunca mais foi o mesmo desde que ela sofreu aquele acidente de ônibus em Brasília e ficou tanto tempo no CTI, como você bem pode se lembrar. – olhava para a tela do notebook – A operação de implantação do marca-passo foi agendada pra janeiro e eu faço questão de acompanhar e ficar cuidando dela. – explicava a situação – Além de ser como se fosse minha mãe, sei que tenho culpa nesse cartório. – assumiu – Foi por minha causa que ela se acidentou e foi porque fiquei presa que o coraçãozinho dela descompensou ainda mais!

 

--Amor, não diz isso! Pensei que você já havia superado a culpa pelo acidente dela, pelo amor de Deus! – discordava do que ouviu – E claro que ela sofreu quando você foi presa, quem não sofreu? Mas não fique se culpando porque isso não adianta! – pausou brevemente – O importante agora é cuidar dela e tenho certeza que logo vai se recuperar.

 

--Se Deus quiser! – benzeu-se – Nas férias de meio de ano, dou meu jeito e a gente se vê! – prometeu – Quer dizer... a menos que você não queira... – pausou brevemente – Nossa relação deu uma estremecida depois que fui presa...

 

--Deu, é verdade... – concordou – Mas nada que não possamos ir superando e eu considero até que temos feito isso muito bem. – olhava para a tela – Fiquei me sentindo tão mais leve depois da conversa que tive com meu pai... Saber que ele não é contra a gente e que guarda nosso segredo a sete chaves dá um alívio imenso! – considerou – É menos um problema!

 

--Sempre achei que seria assim... – respondeu de pronto – Mas, apesar de tudo, tenho me sentido muito insegura em relação a nós. Já te disse isso... – confessou – Nem sei explicar porque!

 

--Foi aquela nossa discussão terrível... aquilo também me marcou. – concluiu – Mas vamos esquecer isso, amor? – Elza pediu – Vamos seguir em frente e já pensar em como e onde será comemorado nosso aniversário de 15 anos juntas! Tem que ser ainda mais especial que todos os outros! – decidiu

 

--Ai, ai, 2014 ainda nem começou e você planejando a festa de 2015? – achou graça

 

--Amor, eu penso adiante! Natal e réveillon são planejados desde janeiro! – Elza afirmou orgulhosa – Por isso que meus planos sempre dão certo!

 

--Amém! – desejou

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

--Há! – Elza riu após fechar o jornal – Esse deputado Montanauro é um sem noção completo! – colocou o jornal sobre a mesa – Depois da candidatura frustrada à presidência da Comissão dos Direitos do Povo, ele ataca novamente querendo se candidatar a presidente da república!

 

--O partido dele não vai aceitar isso! – Fernandão respondeu de pronto – Eles já sabem que não têm condições de chegar lá. Com Montanauro, então... – revirou os olhos

 

--Esse sujeito apela de tudo que é maneira, Deus que me livre! – Alana comentou – Quando penso que essa praga saiu justo da minha cidade... – revoltava-se

 

As mulheres conversavam na sala da casa de Elza. Machado terminava de polir o carro e estava sendo aguardado para poderem lanchar.

 

--O nome do que ele está fazendo é estratégia. – Goulart uniu-se ao grupo e sentou no sofá – Não sejam ingênuas, ele sabia que não seria eleito como presidente da Comissão dos Direitos do Povo e também sabe que não será aceito como candidato à presidência da república. – olhava para as demais – O que ele está fazendo é buscando se tornar conhecido para além das fronteiras do Rio de Janeiro, onde tem muitos eleitores. – cruzou as pernas – Ao final, acreditem que ele acabará se recandidatando a deputado federal pelo Rio e vai ganhar! – considerou – Com larga margem de votos, eu apostaria!

 

“Eu não me conformo em como tio Goulart sempre defende esse deputado de uma forma ou de outra!” – a negra pensou – Como eu sempre digo, brasileiro não sabe votar! Então eu não duvido disso! – cruzou as pernas também

 

--E falando nisso, vocês vão votar em quem pra presidente nas eleições desse ano? – Alana perguntou curiosa – Nós vamos de Vilma! – apontou para si e Fernandão – Assim como todo mundo lá no Rio. – pausou brevemente – Todo mundo quer dizer minha família! – sorriu

 

--Nesse ano tá difícil demais, porque Vilma, Deus me livre, e Décio... – revirou os olhos – Acho que vou anular nos dois turnos!

 

--Ora, Elza, não diga isso, você é uma formadora de opinião! – Goulart repreendeu – Se não tem candidato, diga ao menos pra que as pessoas não votem em Vilma! – aconselhou

 

--Eu nunca busquei interferir na intenção de voto de ninguém, tio! – afirmou educadamente – E não estou pensando em mudar isso agora.

 

“O coronel já deve me achar um caso perdido!” – Fernandão pensou – “Mas fica pressionando a Elza direto com política, que merd*!” – observou sem verbalizar

 

“Você ainda vai mudar de opinião a respeito de uma série de coisas, Elza!” – Goulart pensava – “Eu sei a hora de lançar as sementes e o momento certo de colher os frutos!”

 

“Esse seu Machado tá demorando com esse carro!” – Alana pensou – “Tô morta de fome e ainda tenho que aturar o coronel e sua visão de política...” – disfarçava a contrariedade – “Que merd*!”

 

 

Campos de Jordão, estado de São Paulo

 

Elza e Yara entravam esbaforidas no quarto de hotel.

 

--Sinceramente, Yara, você tá perdendo a noção! – reclamou assim que a indígena fechou a porta – Não podia ter ficado quieta? – gesticulou – Mas não, você tinha que abrir a boca e discutir política em pleno restaurante do hotel! – criticou

 

--Elza, pelo amor de Deus, seja justa! – pediu franzindo o cenho – O gerente do restaurante vem ver se tá tudo certo com a gente, se estamos sendo bem atendidas e lá pelas tantas vem me dizer que a culpa da falta de água em São Paulo é da esquerda, que o Brasil perdeu a Copa por 13 x 0 por causa da esquerda, que o avião de Gerardo Santos caiu por causa da esquerda, que a Operação Caça Rato é uma maravilha e tinha que acontecer porque a esquerda tá levando a estatal de petróleo à falência... – enumerava os temas que o homem abordou – Desculpe, mas eu não consegui ouvir tantas idiotices calada!

 

--Tudo bem que ele exagerou, mas quando for assim, respira fundo e abstrai! – aconselhou – Eu hein? Morri de vergonha por sua causa! – pôs as mãos na cintura

 

--Morreu de vergonha por que? – não entendeu – Eu não fui grosseira, não gritei, não usei palavras de baixo calão... simplesmente disse o que ele precisava ouvir! – passou a mão nos cabelos

 

--E deu uma aula de Comunismo, diga-se de passagem! – complementou cruzando os braços

 

--Desde quando isso é motivo de vergonha? – retrucou – Só porque você não é comunista, não significa que o Comunismo seja vergonhoso!

 

--Ai, Yara, me poupe, tá? – fez um gesto contrariado – Dizer que a Copa e o caso Gerardo Santos são culpa da esquerda é idiotice mesmo, mas de resto concordo com ele!  – considerou

 

--Como assim, de resto? – discordou – A falta de água em São Paulo é culpa da esquerda? – achava graça – O governo desse estado é de esquerda desde quando? – olhava para a namorada – Faltou água na cidade porque, apesar de todas as advertências dos especialistas, o governo do estado tá há mais de 20 anos sem realizar obras pra melhorar a captação de água! – acusou -- Além de terem privatizado a empresa de águas e permitir que ela jogasse o valor das tarifas lá no alto e depois ficasse distribuindo os lucros pros acionistas. – explicava – Até se apelar pra efeito estufa, El Niño, La Niña é jogo de cena num contexto desses! A menos que, claro, a esquerda seja culpada pelas mudanças climáticas também!

 

--Detesto esse seu sarcasmo! – a militar retrucou sem paciência – E o problema da Caça Rato, qual seria? Vai dizer que o Partido dos Labutadores não tá levando a Petrobraza à falência com tanta roubalheira? Ou então quando lavagem de dinheiro e evasão de divisas são praticadas pela esquerda deixa de ser crime porque é tudo comunal? – sorriu debochada – Estancar a corrupção numa hora dessas é um pecado?

 

--Primeiro que o objetivo da Caça Rato nunca foi estancar a corrupção! – discordou mais uma vez – Lembre-se das denúncias de Scowben! – destacou – O que tá acontecendo é a articulação de um grande golpe pra tomar a presidência da república e de quebra acabar com o parque industrial brasileiro, além de entregar nosso petróleo de mão beijada pras empresas estrangeiras! Mais do que tradicionalmente já vinham fazendo! – gesticulou – Eu li o balanço patrimonial da Petrobraza, ele é público! Leia também e me diga se uma empresa que gera tanta riqueza tem condição de falir! Não mesmo! – olhava para a namorada – Mas que querem privatizá-la há muitos anos, tenha toda certeza! E a Caça Rato veio também pra preparar o terreno pra isso!

 

Achou graça. – Vocês da esquerda e as eternas teorias da conspiração! – reparava na outra – O que seria um grande golpe? Um impeachment? – provocou – Em 92 você não achou que era um golpe, né?

 

--E em 92 o contexto político era totalmente diferente, se não percebeu ainda! – aproximou-se da militar – Naquela época, inclusive, a geopolítica do petróleo era outra e o Prima di Sale ainda não tinha sido descoberto! Ninguém sabia que o Brasil tava montado em cima de tanto petróleo!

 

--Eu não sou à favor da entrega dos nossos recursos naturais como é o petróleo, mas não partilho a sua leitura sobre a Caça Rato! Surreal demais! – aproximou-se da indígena também – No entanto, quando você ouve dizer que temos um golpe comunista em vias de ser implantado e a Comissão de Investigação do Regime tá dando força, num instante se arvora a falar que isso é teoria da conspiração! Seletiva ela, né? – debochou novamente – Ou o caso é de esclerose?

 

--Você compara fatos com absurdos! Nesses termos não dá pra conversar, Elza Machado!

 

--Claro que não dá! Você nega que o Partido dos Labutadores tá praticando o maior esquema de corrupção da história! – gesticulou – De repente virou defensora desse partido ladrão! Logo você, sempre tão crítica!

 

Riu brevemente. – Defensora, eu? Ora, pelo amor de Deus! – achava absurdo – Primeiro que o maior esquema de corrupção da história foi um que você mesma comentou naquele debate, lembra? A farra no mercado de títulos que gerou a crise de 2008! Esse foi e continua sendo o maior esquema de corrupção da história! – destacou – E segundo que essa narrativa tá sendo construída pra fazer o impeachment acontecer, detonar o país e depois fechar com chave de ouro dando a chance de Montanauro se eleger e ganhar a presidência da república em 2018! – insistiu em seu ponto de vista – Se ainda não percebeu, Elza, que decepção! – criticou – Você pelo menos sabe que estamos em 2014 ou nem isso?

 

A militar afastou-se e caminhou um pouco pelo quarto – Estamos iguais às redes sociais, onde as manifestações agressivas têm pipocado em nível sem precedentes! – afirmou com tristeza – Só falta agora a gente começar a se xingar... – suspirou -- Era pra ter sido um jantar romântico, Yara Saraíba! – riu brevemente – Olha pra nós agora! – abriu os braços – Que piada que esse namoro tá se tornando... Piada de mau gosto...

 

Fechou os olhos rapidamente, esfregou as mãos no rosto e olhou para a amada. – E estava sendo romântico, até aquele homem se meter a falar besteira e você não gostar do que ouviu de mim. – respondeu mansamente – Por favor, não vamos mais brigar! – foi até a negra e segurou as duas mãos dela – Por favor, a gente não pode não saber lidar com meras diferenças de opinião! – sentia medo

 

--Eu não quero brigar com você! – abraçou-a com força – Não quero, Yara!

 

--Então não vamos brigar! – segurou-a pelo rosto e a beijou – Nunca mais! – beijou-a novamente

 

--Nunca mais! – beijou-a demoradamente

 

Em poucos minutos Elza e Yara se entregavam ao amor embaladas por carinho, desejo, paixão e, pela primeira vez, medo.

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Goulart e um colega conversavam em um bar próximo à Dutra.

 

--E o relatório final da maldita Comissão foi apresentado ontem! – o homem dizia – Fala de violações de direitos humanos e mais um monte de acusações pra no fim das contas recomendar punições pra mais de 350 militares, agentes de Estado e ex-presidentes da república! – falava apreensivo

 

--Soube que pra ganhar a opinião pública o coordenador da Comissão mencionou alguma coisa sobre as pretensas mais de 400 vítimas reconhecidas por eles. – Goulart acrescentou – Chegaram até a dar uma pesquisada sobre a história dessas pessoas. – balançou a cabeça contrariado – Bando de demagogos!

 

--O pior é que eu não fiz nada naqueles tempos! – o outro retrucou chateado – Simplesmente recebi a ordem de denunciar qualquer pessoa sabidamente envolvida com o Comunismo e isso eu fazia. Mas nunca toquei num fio de cabelo de ninguém! – lembrava do passado – Eu achava que era minha obrigação patriótica! Os comunistas pegavam em armas, porr*, praticavam sequestros, saques, depredações... – gesticulou – Eu não denunciava senhorinhas, jovens lendo um livro despreocupadamente ou mães de família! Denunciava marmanjos que tavam se armando pra dar um golpe na gente, além das mulheres que também queriam pegar em armas pelo mesmo motivo! – olhou para o coronel – E agora a pressão em cima tá pesada demais e eu não sei o que fazer! – falava como quem pede socorro – De um lado é o pessoal da velha guarda querendo atitude da nossa parte e do outro essa porr* de Comissão trazendo o passado de volta e escancarando tudo pro povo! Tá foda, cara!

 

--Meu caso é o mesmo que o seu. – Goulart respondeu – Embora houvesse outros que denunciassem qualquer um por qualquer coisa, sem filtros. – reconheceu – Mas o passado não vai mudar e se pediram anistia na década de 70, tem que ter anistia pra todo mundo! – calou-se brevemente – Não há outra coisa que possamos fazer senão fortalecer a base do deputado Montanauro! – aconselhou – Ele já disse à presidente que vai ter troco. Então vamos dar o troco!

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Renata conversava nervosamente com Romero. Estavam na casa da loura.

 

--Eu tô morrendo de medo, cara! Me cagando nas calças! – tremia um pouco – Essa Caça Rato só olha pro nosso partido mesmo que geral tenha entrado nos esquemas! – gesticulava – Vivo tensa com medo que venham me prender à qualquer momento! – olhava para o homem

 

--Mas por que você acha que corre esse risco? – não entendia – Porr*, teu esqueminha era café pequeno na frente desse pessoal mais cavernoso da política!

 

--Aí é que tá! – andava de um lado a outro – Dois meses antes de terem deflagrado essa Caça Rato, uns assessores de figurões da política me pediram pra coordenar um esquema de desvio de dinheiro pras Ilhas Cayman e eu topei. – Romero se surpreendeu – Fiquei recebendo a grana de uns nove ou dez políticos de vários partidos, distribuindo toda ela pra dois doleiros e daí os caras faziam a lavagem pro dinheiro aparecer na conta que abriram no nome da minha mãe lá em Cayman. – explicou o esquema – Aí a ideia era que eu fosse pra lá durante as Olimpíadas de 2016 e dividisse a bolada por todos nós. – passou a mão nos cabelos – Mas a Caça Rato já prendeu os dois doleiros e depois disso sumiu todo mundo, ou seja, as porr*s dos assessores dos caras simplesmente evaporaram!

 

--E você ficou sozinha com a bolada numa conta no nome da tua mãe! – concluiu de imediato – Puta que pariu, Renata, como pôde ser tão burra? – deu um soco no ar – Aliás, você não tinha me falado nada dessa treta! – constatou – Tava pensando em me dar um migué?

 

--Que é isso, Romero? – ficou sem graça – Eu não falei porque... – pensava no que dizer – Porque isso não é coisa pra ficar falando, né? – continuava andando a ermo – Mas no momento certo eu falaria e...

 

--Falaria porr* nenhuma! – interrompeu a mulher – E tá falando só agora porque tá com medo de ser presa! – deduziu – Quer saber? Você se cagou toda nessa merd* e eu vou me mandar! Não tem porque me ferrar por sua causa! – gesticulou furioso – Tô limpo, mesmo! Se me perguntarem, vou dizer que não sabia de nada! – alegou -- E o pior é que é verdade, né? – preparou-se para partir

 

--Pelamor de Deus, companheiro! – correu até ele e o segurou pelo braço – Não me deixa sozinha numa hora dessas, meu! – olhava para ele – Sempre te dei moral, tá ligado? Você não pode me deixar agora! Sequer tenho condições de fugir do país porque já me prenderiam no aeroporto!

 

--Deu moral enquanto achou que eu fosse útil! – desvencilhou-se com raiva – Vai se fuder, companheira! – abriu a porta e foi embora

 

A loura encostou-se na parede e chorou nervosamente.

 

 

 

Fim do capítulo