Goiânia, estado de Goiás / Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

--Não é possível que não vá dar certo! – Yara lutava com o notebook – Ah, agora foi! – sorriu animada

 

--Oi, amor! – Elza saudou sorridente do outro lado – Pensei que tinha esquecido de mim... – reclamou dengosa

 

--Nunca! – respondeu de pronto – Eu tava era pelejando com esse trem pra conseguir conversar com você nesse tal de Fuçaype! – olhava para a imagem da outra na tela – E quando deu certo, olha o que eu vejo? -- suspirou – Linda como sempre! – admirava a namorada – É muita aleluia pruma vida só... ô, minha hosana!

 

--Hum... – fez um charminho – Você também tá super gata! – elogiou – Vai pra onde, hein, Yara Saraíba?

 

--Ah, eu não vou passear... era pra te ver… -- dizia a verdade – Pode não parecer, porque eu não sou poderosa igual a você, mas... sempre tento dar uma caprichada no visual quando é pra gente se encontrar... – falava timidamente – É que eu sou sem graça mesmo, só que às vezes parece que dá certo. – brincou

 

--Own, que fofinha! – tinha vontade de beijá-la – Eu não te acho nada sem graça! – debruçou-se sobre a mesinha – Do contrário! Sempre te acho selvagemente sexy! – afirmou charmosamente

 

--É? – perguntou surpreendida – Eu não sabia que você me achava selvagem! – debruçou-se sobre a mesa também – Isso te agrada, Elza Machado? – olhava bem para a tela do notebook

 

--Muito! – respondeu com a verdade – Na cama e fora dela! – sorriu maliciosa

 

--Ô, glória! – ajeitou-se na cadeira – Não me atiça desse jeito que é muita maldade! – passou a mão nos cabelos – Ave Maria!

 

Achou graça. – Tá bom, prometo que vou me comportar. – ajeitou os cabelos – Esse lugar onde você está, -- reparava no ambiente ao redor de Yara – é aquela casinha acolhedora onde ficamos em Goiânia? – perguntou curiosa – Tô reconhecendo aquele quadro na parede atrás de você!

 

--É ela mesma. – balançou a cabeça confirmando – Aqui tem internet e privacidade pra gente conversar, ao contrário do abrigo que não tem nem uma coisa e nem outra! – riram – Aluguei a casa junto com Nilton, um colega do abrigo. – explicava – Ele arrumou um paquera e vai trazer o bofe pra cá, por volta de meia noite. – olhou rapidamente para o relógio – Aí eu vou ter que voltar pro abrigo e eles vão passar a noite aqui.

 

--Gente! – surpreendeu-se – É muito perigoso que volte daí sozinha pro abrigo a uma hora dessas, criatura! – exclamou preocupada – Eu vou ficar angustiada sem saber se você chegou bem!

 

--Calma, minha linda, não tem porque ter medo! – respondeu tranquilamente – Nada de mau vai me acontecer, tenha certeza! – garantiu

 

--Yara, você não tinha que ter aceitado isso de alugar casa com Nilton, pra ele passar a noite com um bofe aí e você ter que voltar pela rua sozinha em horário ermo! – reclamou – Por que não tem internet no abrigo, hein?

 

--Porque o dinheiro não dá! – respondeu simplesmente – Eu vim pra cá porque não haveria lan house aberta depois das sete, que é justamente o horário que teria pra gente conversar. Aqui tem internet, tem privacidade, mas eu também não recebi pagamento ainda, então não teria como pagar a diária da casa sozinha. – explicava – Aconteceu do Nilton ter os interesses dele e a gente combinou e dividiu a conta! -- gesticulou

 

Deu um suspiro profundo. – Amor, você é sempre muito dura, sabia? A gente tem que ter uma conversa sobre isso! – afirmou decidida – Não pode viver assim no dinheiro contado como você vive! – gesticulou – Aposto que se endividou toda pra gente fazer aqueles programas quando estive aí em dezembro!

 

--Ah... fiquei endividada mas já paguei tudo! – abaixou a cabeça brevemente – Eu sempre fui lisa feito um coco, tô acostumada com isso! – não sabia o que dizer – As pessoas com quem convivo também são... – pausou brevemente – Você é a pessoa mais rica com quem eu lido!

 

--Rica, eu? – achou graça – Amor, você tem boa formação, já passou da hora de deixar de viver nessa penúria! – aconselhou – Não é por ser comunista que tem que viver eternamente contando dinheiro nos centavos! – olhava para a indígena através da tela do notebook – Por que não deixa esse emprego na prefeitura e procura um que te pague melhor?

 

--Eu gosto desse emprego! – retrucou – É uma atividade humana, bacana, a gente ajuda as pessoas... – considerou – Só deixaria esse trabalho se fosse pra ser professora universitária, mas aí teria que abrir concurso e aqui pra Goiânia ainda não abriu! Pra Brasília teve um, mas foi muito concorrido e não passei na prova de títulos. – contava o caso – Eram apenas duas vagas e as pessoas que ganharam tinham o doutorado concluso, ao contrário de mim.

 

--Ai, ai, menina! – balançou a cabeça contrariada – Então vamos falar sobre esse seu doutorado. – decidiu – Vai defender a qualificação até junho, conforme sua dupla de orientadoras tá pedindo? – perguntou curiosa

 

--Pedindo, não, né? Mandando! – respondeu bem humorada – Tô correndo atrás pra isso! – garantiu – E você, capitão Elza Machado, seus orientadores não tão fazendo pressão em cima pra sua qualificação sair? – sorria

 

--Até junho, como é o seu caso! – afirmou enfática – Mas eu sou aluna de tempo integral, fica mais viável pra mim do que pra você, que trabalha na prefeitura, ajuda dona Kedima no abrigo e vive nas intrigas do Comuna! – revirou os olhos – Tudo bem que de vez em quando me pedem pra ir em missão visitar alguma empresa aqui, mas não é nada que comprometa o andamento da minha tese. – considerou

 

--Vai dar certo pras duas! – cruzou os dedos – E em dezembro, se Deus quiser, a gente se encontra! – desejou sonhadora

 

--Antes de você viajar pra Rússia! – sorriu – Já tá com tudo programado pra essa estadia fora? – perguntou curiosa

 

--Eu já falei com o superintendente na prefeitura que provavelmente vou tirar uma licença não remunerada por dois anos e tô vendo a documentação pra isso. – a indígena respondeu simplesmente

 

--Ué, só isso?? – perguntou em choque – Amor, você não tá cuidando da documentação pra ficar em outro país por dois anos? – não acreditava – Não tá vendo onde vai ficar por lá, roupas pra suportar o frio da Rússia e mais as mil e uma coisas que a gente precisa cuidar quando vai morar no exterior?

 

--Não. – negou simplesmente – Deixa eu defender a qualificação primeiro que daí eu vou vendo esses trem tudo com calma. – considerou – Ainda estamos em março!

 

--Ah! – riu gostosamente – Nossa, eu já tava com tudo esquematizado pra essa temporada aqui nos Estados Unidos com mais de um ano de antecedência! – apoiou o queixo sobre uma das mãos – A gente é muito diferente mesmo, Yara Saraíba!

 

--E é por isso que a gente colou juntas! – sorria para a tela – Contraria sunt complementa!

 

--Os opostos são complementares! – Elza traduziu a frase – Pensando em você, concordo com isso... – sorria também

 

--Também somos muito iguais em determinadas coisas. – Yara considerou – A gente se encontra em certos gostos, no amor e no prazer! – piscou para a outra

 

--Agora sou eu quem digo: para! – abanou-se – Não provoca as aleluias alheias! – brincou – Senão eu vou ter que provocar as suas também! – fez uma careta divertida

 

--Aí não vale, porque você sabe provocar muito melhor que eu! – admitiu – “Ô, meu Monte Sinai... namoro à distância, e além de tudo secreto, é cruel...” – pensava – “Ave Maria!”

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

--Ué, tão tocando o interfone aqui? Não tô esperando ninguém! Pleno dia de domingo... – Elza ficou surpresa e foi atender – Hi there? – esperou ouvir resposta

 

--Capitão Elza? – a outra mulher respondeu – Sou eu, tenente Luiza!

 

--Luiza?? – não entendeu – Nossa, eu... – apertou o botão para abrir – Pode entrar. Eu vou te receber no corredor. – colocou o fone no gancho – Luiza aqui? – falava consigo mesma – Por essa eu não esperava! – foi receber a colega

 

***

 

--E então eu fui escolhida pra participar dessa missão e as ordens vieram diretamente do Centro Tecnológico! – contava animada – Acho até que foi da parte do coronel Goulart! – sorria para a colega – Ao mesmo tempo, o tenente-coronel Paz recomendou que eu ficasse aqui com você porque receberam ordens pra economizar custos. – gesticulou brevemente – Como é só por dez dias eu até achei que não fosse te incomodar muito. – prestava atenção nas reações da outra

 

--Economizar custos? – balançou a cabeça pensativa – “Isso é coisa do tio Goulart!” – concluiu – “Mas... será que ele descobriu que Luiza é lésbica e tá querendo empurrá-la pra cima de mim?” – considerou – “Eu mesma nunca percebi nada nela nesse sentido.” – pensava – E que missão é essa que você vai desempenhar? – perguntou interessada – Não recebi qualquer comunicado a respeito e sequer sabia que você viria!

 

Ficou um pouco sem graça. – Ah, é que foi uma correria tão grande! Me avisaram no limite dos 30 dias que temos pra tratar de uma viagem ao exterior e eu fiquei tão baratinada correndo atrás de resolver a burocracia toda! Pra você ter uma ideia, meu visto teve que ser solicitado em caráter de urgência! – justificava-se – Nessa confusão eu nem lembrei de te escrever... Também imaginei que o coronel Goulart te avisaria, porque... afinal de contas ele é seu tio, né? – deu um sorriso constrangida

 

--Ele não me avisou. – respondeu diretamente – Mas, tudo bem, você pode ficar. – fez um gesto despreocupado – Só que infelizmente terá que dormir na sala, no sofá cama, porque esse apartamento é de um quarto apenas.

 

--Sem problemas, imagina! – passou a mão nos cabelos – Só posso te agradecer e pedir mil perdões por essa invasão. – abaixou a cabeça brevemente – Esclarecendo a missão, trata-se de uma reunião de dia inteiro com uma empresa que quer fornecer tecnologia pra nós, além de umas visitas a algumas outras empresas e universidades. Tudo pra preparar os rumos do novo Plano Nacional de Defesa que o governo vai lançar! – explicava empolgada – Tá todo mundo tão animado lá no Brasil, sabe? O governo aumentou o número de cargos exclusivos pra oficiais das Forças Armadas e diminuiu o percentual de civis no Ministério da Defesa! – contava

 

Achou graça. – Eu não imaginava ver isso: um governo de esquerda flertando conosco! – Elza comentou – “O que será que Yara acha disso? Vou perguntar a ela.” – pensou – E você fará essas visitas a partir de amanhã?

 

--Nós faremos a partir de terça. – esclareceu – Nossos superiores não acharam conveniente que você se reunisse com todos esses grupos sozinha e por isso fui escolhida pra te acompanhar!

 

--Ah, eu farei essas visitas com você? – Elza não sabia – Nem isso me avisaram... – achava tudo estranho

 

--Você vai receber o e-mail do brigadeiro Lima amanhã. A missão se inicia na terça. – esclareceu – Eu trouxe alguns documentos que me pediram pra te entregar. É pra você ler pra se preparar pra missão. – olhava para a negra – Não quiseram enviar por e-mail por razões de segurança.

 

--Tá, eu vou ler hoje mesmo porque amanhã tenho umas atividades marcadas no laboratório. – decidiu – Não havia programado nada pra esse domingo, então... – levantou-se da cadeira – Bem, você já tomou um banho mas ainda não lanchou. Vou encomendar um lanche no fast food aqui perto. – seguiu até o telefone

 

--Eu me contentaria com uma boa pizza! – sorria – Que tal?

 

--Eu não sou de comer essas coisas, mas vamos de pizza. – tirou o fone do gancho – Que sabor? – olhou para a colega

 

--A decisão é sua, capitão! – afirmou sorridente

 

--Pode ser marguerita? – Luiza concordou com a cabeça – Então vamos pedir. – pegou um caderninho para encontrar o número e discou

 

***

 

Elza acordou para beber água e levou um susto ao ver Luiza trabalhando na sala com as luzes apagadas.

 

--Nossa, mas você tá acordada e trabalhando até essa hora? – perguntou surpreendida – É quase uma da manhã! – olhou rapidamente para o relógio – Ainda temos atividades pra amanhã, você vai ficar moída! Sem contar que usar computador nessa escuridão prejudica os olhos. – acendeu as luzes

 

--Não precisa se preocupar. – Luiza respondeu gentilmente – Gerar o relatório faz parte da minha participação nessa missão e ele precisa da sua aprovação. Como tudo é sigiloso, não convém ficar trocando e-mails a respeito.

 

--E aí você quer concluir aqui pra eu ler e aprovar antes da sua viagem de retorno? – concluiu – Tudo bem, Luiza, mas não exageremos. A saúde é um bem precioso e a gente deve lembrar disso. – olhava para a colega – Vou beber uma água e volto pra dormir. Recomendo que encerre seu expediente por ora. – foi para a cozinha – Ou melhor, -- afirmou antes de entrar no cômodo – é uma ordem, tenente! – afirmou brincalhona

 

“Ela tá tão legal comigo!” – Luiza pensou satisfeita – “Será que...?” – suspirou

 

Quando Elza retornou da cozinha viu Luiza parada perto da porta de seu quarto. – Ordem cumprida, capitão! – prestou uma continência rápida

 

--Que bom. – sorriu – Agora é hora de dormir. – movimentou-se para entrar no quarto

 

--Elza...? – a mulher chamou reticente

 

--Sim? – virou-se de frente para ela

 

--Eu queria que soubesse que... – falava timidamente – Tô achando o máximo essa oportunidade de conviver um pouco mais com você e... – aproximou-se – Sua postura e conduta nessa missão me impressionam diariamente, além do seu inglês, que é impecável! – sorriu – Não à toa você é super admirada em nosso meio! – pausou brevemente – Por mim, inclusive!

 

Cruzou os braços. – Admirada por você? – sorriu -- Creio que a senhora não aprecie muito meus métodos, tenente Luiza. – olhava para a outra – Sempre foi bem crítica à forma como trabalho hierarquia e disciplina.

 

--Depois que você me envolveu mais ainda na proposta de engajamento junto aos civis e mais algumas várias coisas, confesso que fui mudando de opinião. – olhava nos olhos – Aliás, eu e praticamente todos os oficiais! – colocou as mãos para trás – E o trabalho de tese que você tá fazendo aqui... – abaixou a cabeça brevemente – Só uma pessoa muito inteligente, focada e incrível poderia fazer! – falava com admiração

 

--Ah... – ficou sem graça e se afastou um pouco – Você também é uma excelente militar, Luiza, mas eu acho que podemos ter essa conversa em outra hora. – cuidava para ser gentil – Ainda temos tempo de dormir, então vamos aproveitar. – preparou-se para ir se deitar

 

Sem que esperasse, Luiza se aproximou rapidamente, segurou-lhe o rosto com as duas mãos e a beijou com paixão.

 

--Hum... – a negra tentava se desvencilhar – Luiza! – afastou-se rapidamente – O que pensa que tá fazendo, hein?! – perguntou olhando para a colega – Eu não lhe dei abertura pra isso! – afirmou com firmeza – Você não pode sair concluindo que porque tá dividindo temporariamente esse apartamento comigo pode vir me agarrando!

 

--Ah... – virou-se de costas para Elza – Eu... eu pensei que... – não sabia o que dizer – Talvez, haveria uma chance e...

 

--Não há! – afirmou enfática – E ainda sou sua superior hierárquica, convém lembrar! – estava perturbada

 

“Meu Deus, ferrei tudo!” – a tenente cobriu o rosto com as duas mãos envergonhada – “Que situação!”

 

--Como você sempre foi uma profissional excelente, vou abrir uma exceção e não dar a esse caso o tratamento que ele deveria! – decidiu – Mas eu vou considerar, quando me levantar hoje mais tarde, que nada disso aconteceu e você vai agir da mesma forma! – falava com firmeza – E que isso nunca mais se repita, entendeu? – retirou-se para o quarto

 

Luiza não deu palavra e começou a chorar envergonhada.

 

“Tio Goulart mentiu pra mim!” – Elza pensava chateada– “De alguma forma, ele anda investigando e descobriu que Luiza é lésbica! Agora quer empurrá-la pra ficar comigo!” – andava de um lado a outro no quarto – “E ela, por sua vez, achou que o fato de estarmos sozinhas aqui seria uma porta aberta!” – parou de frente para a janela -- “O pior é que usando o lado racional ela seria a mulher ideal pra mim...” – considerou – “Militar, dedicada, gentil, inteligente, mora na mesma cidade que eu... uma morena bonita, atraente... E além de tudo me acha o máximo!” – balançou a cabeça – “Mas eu quero minha índia comunista, não tem jeito!” – sorriu – “Minha indígena anarquista, sem dinheiro, passional e sonhadora...” -- suspirou

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

Yara terminava de ajudar Jurema em sua mudança para a nova residência.

 

--Acho que agora fechou, né? – reparava na casa – Tudo nos seus devidos lugares ou ficamos devendo alguma coisa?

 

--Não, Yara, terminamos! – sentou-se no sofá – Graças a Deus! – respirou aliviada – O bom de ser pobre é isso, né? A gente tem poucas coisas pra arrumar! – brincou e elas riram

 

--Fico feliz que você tenha vindo morar aqui, Jurema. – sentou-se perto dela – Desde que te conheço você tá sempre de mudança por essas cidades próximas e parece que agora veio pra cá e pra ficar! – sorriu

 

--Minha vida tá entrando nos eixos. – olhava para a outra – Empregada como professora na escola municipal aqui pertinho e morando nessa casa com aluguel super em conta... – abriu os braços brevemente – Que mais eu poderia querer? – silenciou por uns instantes – Quer dizer, materialmente. – corrigiu-se

 

--Fico feliz por você! – dizia a verdade – Também vejo com muita satisfação que você tá se envolvendo bastante nas questões do Comuna. – passou a mão nos cabelos – Creio que Renata vá pular fora ainda nesse ano, porque ela não aguenta mais encarar nossa oposição dentro do Partido, além do fato que parece que anda muito bem de vida, haja visto como anda ostentando! – comentou – Eu vou batalhar a presidência de volta e, tudo dando certo, vou te indicar pra ficar de interina no meu lugar depois que for embora pra Moscou. – pausou brevemente – Quer dizer, se eu for mesmo. Sabe Deus!

 

Achou graça. – Claro que você vai, Yara! Você consegue tudo que quer e já tá até com a defesa da qualificação marcada dentro do prazo que suas orientadoras deram. – olhava para a outra – E também concordo que Renata vá pular fora e com isso a presidência do Comuna voltará pra você; mole, mole, fácil, fácil. – segurou uma das mãos dela – Não será fácil te substituir, mas farei o possível! – prometeu

 

--E vai tirar de letra! – respondeu com carinho – Camarada Celeste concorda com seu nome, assim como camarada Omar, outros camaradas influentes no Partido e mais nossos amigos indígenas. – piscou para ela – É Jurema Pataxó como presidente! – brincou

 

--E eu que nunca pensei... – brincava com a mão da outra -- No mais, só me falta um amor... – suspirou

 

--Não se preocupe que isso também vai acontecer. – levantou-se e ajeitou a roupa – Sabe que acho que Matias anda balançado por você? – pegou as chaves em cima da mesa – Ele tem frequentado aquelas suas aulas de Tupi Guarani lá na setorial do Centro da Cultura Indígena não à toa! – comentou de forma brincalhona

 

 

Levantou-se também e caminhou para perto da porta da sala. – Seria uma excelente opção de namorado... se eu me interessasse por homens.

 

--Uai? – não entendeu – Sempre achei que você fosse hetero... – surpreendeu-se – Por tanto tempo ouvi Geraldo dizer que te namorava e você nunca negou! – estranhava – Também achava que você tinha uma quedinha pelo camarada Paulo.

 

--Geraldo inventou essa mentira porque ele desejava que fosse verdade. – caminhou até Yara – Eu não tinha coragem de me assumir naquela época e deixei rolar o boato. – olhava para ela – Atualmente é que venho tentando me assumir, sabe?

 

Balançou a cabeça em entendimento. – Pra cada pessoa esse processo de assumir é de um jeito. O importante é que você se sinta confortável e segura de si.

 

--Tenho tentado. – olhava nos olhos – Quanto ao camarada Paulo... era um grande amigo. – pausou brevemente – Ele e eu vivíamos um amor platônico pela mesma pessoa. – confessou – É que ele era mais corajoso do que eu.

 

“Ela tá querendo dizer que viveu um amor platônico por mim??” – perguntou-se boquiaberta – “E eu que nunca percebi! Bem que dona Kedima desconfiava...” – pensava – É... – colocou as chaves no bolso – Eu prometi a dona Kedima que iria consertar o chuveiro dela, então é hora de ir. – deu um sorriso sem graça – Seja bem vinda ao seu novo lar! – preparou-se para partir

 

--Yara, espera? – pediu ao puxá-la gentilmente pelo braço – Espera! – segurou o rosto dela com as duas mãos e a beijou com desejo

 

--Jurema, não... – desvencilhou-se rapidamente – Não faz isso! – pediu – A gente é como se fosse irmã e eu não consigo mudar essa forma de te ver! – afastou-se – Desculpe, mas não tem jeito!

 

--Você ainda não tirou a Gil do seu coração, né? – segurou-a pelas presilhas da calça – O fato dela ter aparecido ontem na TV Mundo mexeu com você, não foi?

 

“E eu que não sabia disso!” – pensou admirada – É, mexeu! – mentiu – Agora me deixe ir. – desvencilhou-se mais uma vez – Tudo de bom e tchau! -- saiu da casa rapidamente

 

--Eu tenho que tirar essa mulher da cabeça dela! – Jurema falava para si mesma – E posso fazer isso, eu sei!

 

“Ô, minhas sete chagas, minha via Crucis, queima, alqueire sob o monte!” – Yara pensava enquanto andava rapidamente – “Logo agora que tenho namorada vem a tentação pra cima de mim! Chicoteia, lambada de fogo!” – passou a mão nos cabelos – “Se pensar na coisa pelo lado racional, Jurema seria a namorada certa pra alguém como eu.” – considerava – “Sonhadora, idealista, comunista, gentil, culta, indígena, dona de umas aleluias pra ninguém botar defeito... E mora na mesma cidade que eu!” – pensava na outra – “Só que não tem jeito; eu quero a minha militar de direita!” – sorriu ao se lembrar de Elza – “Minha negra empoderada, dengosa, inteligente e decidida!” -- suspirou

 

***

 

--Você vai mesmo pular fora do Comuna? – Romero perguntou interessado – Yara já tá dando isso como certo e a movimentação pra fazer dela presidente de novo tá forte! – olhava para a loura – Se assim for, com certeza o Partido vai romper com o apoio ao governo de Luiz Horácio, que conquistamos a duras penas.

 

--Eu fui uma presidente que nunca conseguiu levar esse Partido adiante exatamente por causa de Yara e dos idiotas que foram na pilha dela de me fazer oposição ferrenha às 24 horas do dia! – retrucou de cara feia – Tô pulando fora mesmo, vou me filiar ao partido de Luiz Horácio e me candidato a deputada nas eleições do ano que vem. – contava seus planos – As coisas não aconteceram do jeito que planejei, mas o lance de trabalhar com obras públicas foi algo que me salvou, porque me apresentou a muita gente interessante e eu não preciso mais dessa merd* de Comuna pra nada! – fez um gesto de desprezo

 

Os dois conversavam em um boteco próximo à sede do Partido.

 

--Mas não foi ruim de todo! – o homem considerou – Pelo Comuna a gente conseguiu fazer uma média com o pessoal LGBT e são eleitores importantes pra garantirem sua eleição como deputada. – sorriu para a mulher – E a minha consequente nomeação como assessor!

 

--Eu conto com esses votos e vou continuar fazendo uma média do caralh*! – riram – Mas o pessoal das obras também vai me dar uma força importante. – cruzou os braços – Em pouco tempo garanti uns cinco bons contratos pra eles! Foi dado o recado que com mais tempo e influências, conseguirei muito mais!

 

--É isso aí, companheira! – brincou – Vamos pular fora do Comuna porque já deu. Que fique nesse barco apenas os pobres sonhadores que acreditam que um dia o Comunismo será implantado no mundo! – riram novamente

 

--Sabe? Um dia eu também acreditei... – confessou – Já fui uma tola sonhadora, já desejei lutar pelos fracos e oprimidos... mas a gente cresce e aprende que isso aqui é uma selva e a política é pros fortes! Não há espaço pra idealismos no mundo... – considerou – O Comuna é pra quem ainda não caiu nessa real! Deixa Yara e os amiguinhos dela sonharem. Vão passar a vida batendo cabeça e ganhando só porr*da em troca!

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos / São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Elza e Fernandão conversavam pelo Fuçaype.

 

--É impressão minha ou eu vi uma mulher deitada na sua cama enquanto você fugia do quarto pé ante pé com esse notebook na mão, sargento Fernandão? – a negra perguntou bem humorada

 

--Impressão nada! – sentou-se na poltrona da sala – Minha Beyonce carioca tá aqui, passando as férias dela comigo! – sorria – E que mulher cheia de fogo, aff! – abanou-se – Tô até malhando na academia do Clube do Ar pra poder dar conta e não fazer feio!

 

Riu gostosamente. – Ai, ai, que delícia, viu? – cruzou os braços – Pelo que vejo, esse namoro vai mesmo longe! – sorria

 

--Por mim, terminava logo em casamento! – confessou – Ela tem pensado em se mudar pra cá, sabe? Mas vamos ver se dá pé e como vai ficar.

 

--Hum, a coisa tá mesmo séria! – constatou com alegria – Alana é uma pessoa boa e a família da Alê é ótima! Cê se deu muito bem!

 

--Eu sei! Deus ouviu minhas preces! – postou as mãos para o alto rapidamente – Mas, olha, Elzinha, eu não te chamei pra esse papo apenas pra te parabenizar por ter defendido a qualificação do doutorado ontem e dentro do prazo dos seus orientadores, mas pra te contar de umas tretas que eu acho que o coronel Goulart tá armando pro seu lado. – advertiu – Eu acho que ele confia em você, mas desconfiando, e por isso age pra eliminar qualquer possibilidade de você e Yara ainda estarem juntas! – olhava para a tela

 

--Percebi isso quando Luiza me apareceu aqui de paraquedas no mês de março! – debruçou-se sobre a mesinha – Mas o que é que tá acontecendo dessa vez? – perguntou apreensiva

 

--Saiu meu visto e o do sargento há umas semanas atrás, -- contava – e daí eu propus da gente fazer a seguinte coisa: você vinha pra cá em dezembro e quando voltasse praí, em janeiro, íamos todos juntos. É um mês em que as passagens aéreas ficam bem mais baratas porque é inverno aí e tal. – gesticulava – Mas o coronel não gostou da ideia. Apesar de não ter dito nada, eu percebi. – cruzou as pernas – Porém, anteontem levei um susto quando peguei a tabela de férias e vi o nome do sargento lá, marcado pro mês de dezembro. Procurei saber com minhas conhecidas do Departamento de Pessoal e soube que o coronel vai tirar férias exatamente no mesmo período! – continuava gesticulando – Concluí que o coronel tá armando de ir praí com o sargento logo no comecinho de dezembro e então passar o mês inteiro com você! E ele não me incluiu no plano pra eu não te contar, já que, com certeza, ele deve desconfiar que eu sei de alguma coisa.

 

--Puta, mas que merd*! – reclamou – Se eles fizerem isso, não vejo Yara nesse ano! – balançou a cabeça revoltada – E ela vai viajar pra Moscou logo em janeiro! – fechou os olhos brevemente – Foda, cara!

 

--Eu já até sei o que o coronel vai alegar pra não me incluir nos planos! – Fernandão continuava falando – Minhas férias foram deslocadas pra depois do carnaval, sem eu ter pedido por isso. Consequentemente, não posso me ausentar em dezembro! – olhava para a tela – E escolheram justamente o período que Alana comentou que vai sair de férias. – gesticulava – Ou seja, não viajo com eles mas ganho um “cala boca”. – fez aspas com os dedos

 

--Deve ser bem por aí mesmo! – concordava com o raciocínio – Tio Goulart pensou de chegar com meu pai aqui e me pegar de surpresa, não me dando tempo de ver Yara de qualquer forma! – pensava em voz alta – Mas o problema é que mesmo sabendo disso agora continuo sem ter como vê-la! – gesticulava -- Não posso sair daqui antes de dezembro, senão queimaria meu filme geral! O pessoal daí ficaria sabendo, seria uma droga!

 

--Sinto muito, Elzinha! – lamentou – Mas, talvez vá ser assim mesmo e vocês não vão se ver nesse ano...

 

“Yara vai ficar triste quando souber...” – pensou chateada

 

 

São José dos Campos, estado de São Paulo

 

Machado e Goulart voltavam caminhando para suas respectivas casas depois de um jogo de futebol com outros militares.

 

--Prestimoso coronel, confesso-vos que até o aprazado momento é inquieto em minh’alma o segredo que pedi-vos para que eu ocultasse! – olhou brevemente para o homem – Que minha empoderada capitão não saiba que visitá-la-emos em dezembro é compreensível, pois temos aí uma grata surpresa. Mas por que não a garbosa Fernandão é ciente do desiderato?

 

Ficou um pouco sem graça. – Já lhe expliquei, Machado! As férias dela caíram pra depois do carnaval, ela não vai poder viajar com a gente. Então por que colocar o doce na boca da criança se ela não vai poder comer? – queria dar o assunto por encerrado – Você já providenciou suas passagens, então, agora é só esperar o tempo passar.

 

--Hum. – pensava no que ouviu – É o que tenho feito desde o momento em que minha empoderada herdeira cromossomial singrou os céus intercontinentais e aportou em seara alheia! – olhava para o caminho diante de si e continuou refletindo – Às vezes, nos socavões da noite escura pergunto-me, oh, prestimoso, será que meu rebentinho não pensa em, por sua vez, gerar os micro rebentinhos dela? Será que minha Elzinha não clama silenciosamente no crescei-vos e multiplicai-vos e nós outros, de alguma forma quiçá não percebida, a impedimos de cumprir com tal destino de mulher?

 

--Não creio que Elza pense em casar e ter filhos. – respondeu de imediato – Acho que ela nunca nem pensou nisso! – falava conforme acreditava

 

--Mas será que...? Improvável é que o Amor nunca tenha tocado aquele coração feminil! – considerou

 

--Creio que ainda não, mas se tocar nós saberemos quando acontecer. – respondeu de pronto – E estaremos prontos pra ajudá-la a se libertar se isso acontecer com a pessoa errada! – pensava em Yara

 

--Pessoa errada? – não entendeu o comentário – E quem somos nós para julgar as razões do Amor, as quais desafiam os neurônios mais empoderados do córtex cerebral? – olhou novamente para o coronel – Imaginai-vos se os pais da minha saudosa Edna habitassem em terras paulistanas e não concedessem a delicada mãozinha dela em casamento com este que vos fala? Elzinha sequer existiria e não estaríamos aqui tendo este aprazível colóquio!

 

Não estava gostando daquela conversa. – O futebol deixou você muito reflexivo, meu amigo! Talvez pela falta de gols, quem sabe? – tentou fazer uma brincadeira – Mas não fique pensando em problemas que não existem! Elza não está apaixonada por ninguém. O foco da vida dela, por ora, está no doutorado e nas atividades que vem fazendo nos Estados Unidos. – colocou as duas mãos para trás – Quando ela conhecer alguém e se apaixonar, nós saberemos disso e daremos o apoio que ela precisa. – não desejava mais conversar – “Seja pra aproximar ou pra afastar!” – pensou sem verbalizar

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos / Goiânia, estado de Goiás

 

--Então é isso, amor... – Elza terminava de dar a má notícia – Nesse ano a gente não vai se ver... – olhava receosa para a tela do notebook – Agora só no final do ano que vem!

 

A indígena suspirou entristecida. – Poxa... – olhava para baixo – Eu tinha feito planos... – comentou desapontada – “Ela é a única pessoa que me faz planejar coisas de um jeito fora do meu natural...” – pensou – “Esse Goulart é uma pistinga que não me desce!”

 

--Eu também tinha feito planos, amor. – debruçou-se sobre a mesa – Mas infelizmente, não vai ser dessa vez...

 

Gastou uns segundos calada antes de voltar a falar: -- Eu não consigo aceitar isso! Não consigo sequer entender! – reclamou – Primeiro seu tio saca um jeito de fazer chegar até você uma colega sua, que tá toda apaixonada e decidiu investir, -- gesticulava – agora ele me bola uma viagem surpresa, que tem mais nada de surpresa, só pra te prender aí no final do ano e você simplesmente aceita? – achou graça do absurdo – Não parece nem você, Elza Machado! – olhava para a tela

 

--E você quer que eu faça o que, Yara Saraíba? – retrucou de cara feia – Que ligue pra ele, diga que descobri tudo e fale pra ele e meu pai não virem porque eu quero ir pro Brasil e encontrar com você? – balançou a cabeça revoltada – Já não lhe expliquei porque temos que manter nosso relacionamento em segredo? – argumentava – Se eu disser pra eles não virem pra cá, tio Goulart terá certeza que estamos juntas!

 

--E ele vai fazer o que? – desafiou – Me prender, mandar me torturar, destruir a sua carreira, rebaixar você a soldado? – contra argumentava – Ora, por favor, não me venha repetindo os mesmos motivos de sempre pra gente viver escondida, porque já ouvi isso mil vezes e não consigo concordar nunca! – levantou-se da cadeira – Eu não quero passar o resto da vida escondida por medo do que o tio Goulart possa fazer ou por medo do Comuna me excomungar!

 

--Eu não tô te reconhecendo, Yara! – reclamou também – O que é isso, hein? – falava com a cara feia – Já tá querendo pular fora porque se empolgou com sua amiguinha comunista que veio te beijar?

 

--Ah, e a sua amiguinha militar também não te beijou? – perguntou de cara feia

 

--E eu soube colocá-la no lugar dela, tá? – retrucou com energia – Não sou eu que tô dando pití, não é?

 

--Dando pití?! – não gostou do que ouviu e se sentou novamente – Seu tio passa o ano bolando sacanagens pra atrapalhar a gente, você aceita passivamente e eu tô dando pití porque me revolto com isso? – olhava para a tela com a cara feia – Elza, eu vi como você age quando acha que algo tem que ser feito! Lembro muito bem de você com aqueles soldados pintando o muro! – gesticulava – É impensável que uma pessoa dessas aceite de bom grado o que você tá aceitando por conta do medo de ser revelada! – achou graça novamente – E quer saber? Seu tio nunca exporia você! Ela tá jogando contigo e você tá caindo no jogo dele igual uma tolinha!

 

Ficou revoltada com o que ouviu. – Igual uma tolinha porque você quase não tem nada a perder, mas eu tenho muita coisa! – falou um pouco mais alto – No seu caso, seria apenas a confiança dos seus camaradas, que logo você recuperaria! Afinal de contas, a política é uma cafajestagem! – gesticulava – No meu caso seria tudo que batalhei a vida inteira pra conquistar profissionalmente e não foi nada fácil!

 

--E como você perderia, me fala? – insistiu – Você acha que seu tio vai chegar pro pessoal do Comando e dizer: pessoal, tira Elza do jogo porque ela é lésbica? – ironizava – Não seja tão ingênua! – falava mais alto também

 

--Você tá querendo terminar, né? Eu tô sentindo isso! – controlava-se ao máximo para não chorar – Então, tá, Yara Saraíba, a gente termina!

 

--Eu não falei isso, não distorça minhas palavras! – advertiu – Não quero terminar com você! Não quero! – afirmou com convicção – Apenas tô te dizendo que não sei lidar com isso! Com essa neura de viver escondida e mais a submissão aos caprichos do seu tio! – passou a mão nos cabelos e respirou fundo – Olha eu... – balançou a cabeça contrariada – Confesso que me excedi e peço desculpas por isso! – olhava para a tela do notebook – Mas não quero mais conversar por hoje. Tô muito chateada e corro o risco de falar o que não devo e te magoar.

 

--Já magoou, Yara! – devolveu com dureza – Também não quero mais conversar com você por hoje! – pausou brevemente – E não sei quando vou querer!

 

--E depois sou eu que quero terminar? – perguntou magoada – Olha, Elza, faz o que você quiser, tá? – respondeu mal humorada – Já são quase dez e meia, -- olhou para o relógio – daqui a pouco o missionário chega aí e eu prometi que sairia da casa antes das onze.

 

--Vai embora logo! – respondeu com desdém – Aproveita e dá uma passadinha na casa da sua amiga. – aconselhou com ironia

 

Os olhos marejaram. – Eu deveria fazer isso mesmo! Mas infelizmente não consigo! – preparou-se para desligar – Boa noite, Elza Machado. Aproveita e dá uma ligadinha pra sua amiga militar, porque com certeza ela não tem restrição de hora pra usar esse trem aqui.

 

--Tava pensando exatamente em fazer isso! – mentiu – Conversar com alguém interessante, pra desanuviar!

 

--Aproveite o tempo! – sorriu irônica – Boa noite! – preparou-se para sair

 

--Boa noite. – saiu do Fuçaype – O que foi isso, hein? – passou a mão na cabeça e fechou os olhos – Droga! – começou a chorar contidamente

 

“O que foi aquilo, Yara?” – a indígena falava consigo mesma enquanto chorava de forma contida – “Eu não consigo entender isso, ela aceita passivamente cada situação inadmissível!” – caminhava rapidamente pelas ruas – “Será que no fundo ela tem vergonha de mim e usa essa psicose do tio como escudo pra não admitir?” – considerou – Será que ela já se encheu de mim e tá criando uma situação pra gente terminar? – ficou triste

 

--Será que ela acha que os motivos que eu explico são tão banais assim? – Elza falava consigo mesma – Será que ela é o tipo de pessoa que fica puta e chuta o baldo logo no primeiro obstáculo? – fungou – Mas como pode? Não combina! – chorava – Será que ela já se encheu de mim? – ficou triste ao pensar na hipótese – Droga!

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

--Mas minha Nossa Senhora, você e Elza são duas bestas! – Kedima reclamava com a indígena em seu colo – Eu posso com isso, minha Mãe Santíssima? – clamava aos Céus

 

--Não diz isso... – pediu como criança – Eu tô triste, dona Kedima... – chorava

 

--Ave Maria, menina, mas não precisava tanto! – ninava a outra – Vocês caíram direitinho no golpe que o tal Goulart armou! – explicava a situação – Como pode, meu Pai, duas mulher tão inteligente e tão burra? – olhava para cima – Enquanto isso, Goulart tá nadando de braçada na frente de vocês!

 

--A senhora acha? – perguntou toda encolhidinha – Caímos no jogo dele?

 

--E não foi? – respondeu como quem diz o óbvio – Menina, lembra do que lhe falei: insegurança e medo são péssimos conselheiros! E vocês caíram na armadilha daquele homem exatamente por isso! – acariciava a cabeça da indígena – Ainda foram confessar que levaram beijo de uma, ch*pão de outra e nessa o trem desandou de vez!

 

Achou graça. – Teve isso de ch*pão, não... – respondeu com um sorriso triste – Pelo menos, eu acho que não!

 

--Senta aqui e olha pra mim! – pediu – Você vai procurar por ela, falar tudo que sente e pedir desculpas! – aconselhou – Se ela não quiser aceitar, que se dane e rasgue a rabichola, mas pelo menos você tentou!

 

Achou graça novamente. – Tá bom, faço isso. – concordou

 

--E vocês também podiam usar a cabeça pra pensar e dar uma volta nesse Goulart! – sugeriu – Você viaja em janeiro, né? – lembrava do fato – As passagens não tão compradas, então fala com as professora, vai no começo do mês, quebra essa passagem em algum canto, encontra com Elza lá, e depois você vai pra Rússia e ela pros Estados Unidos! – aconselhava – Janeiro não é mês que estrangeiro costume a trabalhar e Elza não precisa fazer mais um curso de verão. Então, se ela quiser, é só alegria! – sorriu

 

Sorria também. – Eu posso combinar com a orientadora e pago a diferença no preço do desmembramento da passagem à Universidade. Acho que é possível, sim. – considerou – E se Elza quiser, ela pode viajar pra me ver sem que o tio nem imagine que nos encontraremos em outro país! – pensava em voz alta – Ah, dona Kedima, o que seria de mim sem a senhora? – abraçou-a com força

 

--Se não fosse por mim você já tava abaixando pra cuspir ou mascando a própria língua! – respondeu bem humorada ao romper o abraço – E se não fosse por você, eu tava morta aqui por dentro! – afirmou com muito sentimento

 

--Ah, minha velhinha! – beijou a testa dela – “Graças a Deus, existe dona Kedima!” – pensou

 

 

Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos

 

Elza trabalhava usando um computador de um dos laboratórios do MIT quando percebeu que acabava de receber mais um e-mail de Yara.

 

“Faz aquele showzinho comigo e depois fica me escrevendo e-mail?” – pensava – “Agora a senhora vai esperar, Yara Saraíba! Quando eu cismar, paro pra ler!” – decidiu – “Foi-se o tempo em que eu ficava tão evidentemente de quatro por alguém!” – lutava contra o desejo de ler as mensagens – “Melhor eu fazer o logout da minha conta do ÊMail.” – saiu da conta – “Pronto!” – voltou a se concentrar no trabalho

 

 

Goiânia, estado de Goiás

 

“E nada dela responder!” – Yara pensava chateada ao entrar no quarto que ocupava no abrigo – “Deve tá me dando um gelo por causa da nossa discussão.” – concluiu – “Tá bom, Elza Machado, parei de te procurar!” – decidiu – “Tá na hora de eu aprender a ter vergonha no meio da cara também!” – tirou os sapatos e deixou a mochila perto da cama – “Tomar um banho e me preparar pra ir pro Comuna.” – decidiu ao tirar a blusa

 

--Oi, Yara! – Damiana apareceu na porta do quarto – Tudo bem? Cadê suas colegas? – perguntou ao entrar no cômodo – Hoje é uma noite em que esse abrigo parece até uma cidade fantasma! -- brincou

 

--Oi, tudo bem e você? – respondeu por educação -- Não sei do pessoal, mas daqui a pouco vão chegando aí. – tentava disfarçar a chateação que lhe dominava – Eu mesma cheguei agora. – tirou a calça jeans – Mas tô de saída. -- pegou uma toalha de banho e se enrolou com ela – “Deixa eu separar logo a roupa que vou usar.” -- pensou

 

--Vai pro Comuna? Nunca mais fui lá. – aproximou-se da indígena – Acho que não dei muito certo com essa coisa de Partido. – sorria

 

--Normal. Nem todo mundo gosta. – não estava com muita vontade de conversar – Agora dá licença, por favor, que eu vou pro banheiro.

 

--Quer ajuda? – perguntou ao se colocar no meio do caminho – Cê não tá legal!

 

--Damiana, me perdoa, não queria ser rude mas não tô muito pra conversar, sabe?

 

--Nem eu! – olhava nos olhos – Lembra daquela fase assexuada que me dominou por anos? – foi direto ao ponto – Passou! – puxou a outra pela toalha e a beijou com raça

 

“Ô, meu capeta no deserto, sai de mim, tentação!” – pensou ao se desvencilhar – Criatura, o que é que te deu? – afastou-se constrangida ao se endireitar na toalha

 

--Nada me deu! – aproximou-se novamente – Eu que tô doida pra dar! – pulou em cima da outra e as duas caíram sobre a cama de Ítala

 

“É eu fugindo da tentação e a diacha me querendo!” – Yara pensou enquanto buscava se desvencilhar – Mulher, pare com isso! – sentia os lábios e pequenas mãos da colega buscando provocar-lhe de todas as formas – Sai de cima de mim! – tentava fugir sem sucesso – “Ave Maria, que a bicha tá no cio!” – pensou apavorada

 

--Mas o que significa isso? – Ítala surpreendeu a cena e colocou as mãos na cintura cobrando explicações – Que pouca vergonha é essa na minha cama? – falava de cara feia – Francamente, Yara, justo você??

 

--Pois é, não podia ser eu! – Yara levantou-se de um pulo e se endireitou na toalha mais uma vez – Mas, olha, tenho que dizer! – puxou Damiana pelo braço fazendo-a se levantar – Ítala é tudo que você precisa! – falou para a colega – E você, -- segurou Ítala pelo pulso para que se aproximasse – aproveita que o momento é esse! – colocou as duas uma de frente para a outra – Agora eu vou tomar meu banho! – fugiu para o banheiro

 

--Sabe que eu nunca tinha reparado em você? – Damiana olhou para a outra de cima a baixo – Até que dá jogo, viu? – comentou empolgadinha

 

--Jogo? – caprichava nos olhares -- E olha que você nunca me viu encaçapando umazinha num buraco! – Ítala forjava uma voz sedutora – Isso é dar um jogo! – mordeu beicinho

 

--Ai! Então encaçapa agora! – agarrou-a pelos cabelos e a beijou

 

“Finalmente me dei bem!” – Ítala pensou excitada

 

--Nunca ninguém dá em cima de mim! – Yara entrava no box resmungando – Bastou eu ter namorada que até Damiana sai da fase assexuada e vem cheia de aleluia e glória pra me atiçar! – abriu o chuveiro e deixou a água cair sobre si – Quer dizer, eu acho que tenho namorada, nem sei! – começou a se ensaboar – Tem coisa que só acontece comigo, vou te contar! – suspirou – Poxa, Elza, vê se responde? – pedia para ninguém

 

 

Lisboa, Estremadura, Portugal

 

Yara acabava de entrar no quarto de hotel e se surpreendeu ao ver que Elza a esperava perto da janela. Sentiu o coração disparar quando os olhos se encontraram.

 

--Cheguei a pensar que você não viesse! – falou ao se aproximar – Não respondia meus e-mails, não dava retorno algum... – olhava nos olhos – Fui pra rua dar uma volta porque não me aguentava mais de ansiedade!

 

–Cala a boca e me beija! – pediu com lágrimas nos olhos antes de puxá-la pelo sobretudo

 

Yara abraçou-a com força e a beijou com paixão.

 

Fim do capítulo