Inflamável por HumanAgain
Capitulo 31 - Que Deus proteja a rainha
O funeral de Loenna ocorreu uma semana depois de sua morte, no mesmo lugar onde a rainha desfalecera: A mansão Nalan. Todo o país foi convidado, e Fowillar chamou um padre para conduzir o sepultamento. Os jardins estavam abarrotados de gente, ao ponto de uma imensa aglomeração se estender para as ruas; Loenna, apesar de seus erros, era muito querida.
Serpente se punha a alguns metros da cerimônia, degustando uma garrafa de cerveja. Lidar com aquela dor não era fácil, mas não havia outra opção. Optou por se distanciar do caixão, sabendo que ver o rosto sem vida de Loenna lhe traria sentimentos ruins. E, assim, a ladra observava o discurso religioso, sentindo o coração apertar.
Antes que ela pudesse se dar conta, Aya sentou-se ao seu lado. Como boa amiga, estava preocupada com o psicológico de Serpente; perder um amor tão histórico não era um fardo leve de se carregar.
— Oi. — Aya deslizou a mão direita pelo ombro de Serpente. Agora que fazia algum tempo de sua libertação, seu rosto estava corado, o roxo em seus pulsos quase não se via mais e, apesar de magra, havia alguma sustentação em seu corpo. — Como você está, querida?
— Lidando. — Serpente tornou mais um gole de cerveja. Era muito grata pela preocupação da enfermeira. — Obrigada pela pergunta. Está sendo difícil para mim, mas, aos poucos, eu vou conseguindo lidar.
— Eu entendo. — Aya era uma das pessoas mais empáticas do reino. — Deve estar doendo para você. Perder Loenna de forma tão abrupta…
Serpente assentiu.
— Ao menos, eu sei que as lembranças não morrem. Espero que as boas prevaleçam. — disse Serpente — E eu tenho muitas de nossa rainha.
— É — concordou a outra. — Eu também…
— Uma delas é… — Serpente abriu um sorriso malandro. — De quando nós fizemos a três, logo antes de eu partir. Eu, você e Loenna…
Aya sorriu com delicadeza.
— Você ainda se lembra disso? — E ergueu uma sobrancelha.
— É claro que eu lembro! — retornou Serpente. — Loenna e seus amores. Como eu poderia esquecer?
Uma gargalhada suave irrompeu da dupla. Relembrar os momentos bons da verdadeira Loenna aquecia seus corações.
— Eu amei Loenna. Muito. — Cessada a gargalhada, Aya suspirou fundo. — Mas a mulher por quem eu me apaixonei já estava morta há muito tempo. Sua morte física foi um impacto, mas nada comparado à morte de quem um dia ela foi. Isso, sim, eu demorei a aceitar.
— Queria poder dizer o mesmo. — Serpente encarou fixamente o horizonte. — Queria ter passado por todas as suas fases. Assim, talvez, eu não sentiria tão fortemente a dor de vê-la partir.
— Ah, eu sinto. — Respondeu Aya. — As duas Loennas que eu conheci habitaram o mesmo corpo, afinal. Mas não sinto mais como se fosse a perda de um amor, porque isso já não havia entre nós há muito tempo. É apenas uma conhecida que se foi.
Serpente, ciente de que a conversa sobre Loenna apenas a machucaria — E a faria se lembrar de que havia abandonado sua amada por vinte anos. —, optou por desviar os rumos da conversa. Estava se recuperando; um costumeiro sorriso brincalhão e travesso surgiu em seu rosto.
— Isso significa… — Seu olhar para Aya era sugestivo. — Que você está disponível para viver um novo amor?
Aya soltou uma deliciosa gargalhada.
— Eu não acredito que você continua flertando comigo depois de tanto tempo. — A enfermeira sorria de uma maneira divertida. — Serpente, você não vale absolutamente nada…
— Ah, não. Não estou falando de mim — corrigiu, apesar de não poder negar que Aya a atraía. — Estou falando dela.
E apontou para uma mulher que sentava-se em uma mureta logo atrás da fonte dos jardins, bebericando uma taça de vinho, cujo olhar apontava diretamente para Aya e Serpente. Era uma mulher bonita; Vestia um longo vestido de seda, um colar de perólas que caía muito bem sobre seu pescoço, tinha cabelos encaracolados curtos e negros, pele escura, algumas marcas de expressão que denunciavam sua idade e unhas pintadas de um azul vibrante. Seu corpo era quase tão esguio quanto o de Serpente.
— Ela não para de olhar para cá, se não percebeu. — A insinuação de Serpente era óbvia. Aya, contudo, duvidava que ela estivesse certa.
— Ela está olhando para você — concluiu a enfermeira, como se fosse nítido. Serpente negou com a cabeça.
— Ah, não está. — E disso estava convicta. — Você chama a atenção, Aya. É uma mulher muito bonita e, quando se produz, se torna deslumbrante. Ela claramente não está interessada em uma cachaceira desarrumada.
— Mas… — Aya não podia negar que se destacava pela aparência. Não era de hoje que recebia inúmeras cartas de homens enamorados após uma simples troca de olhares. Não podia garantir, contudo, que era o objeto de atenção dos belos olhos daquela mulher. — Eu jamais tive outra mulher além de Loenna.
— Nunca é tarde demais para conhecer outras pessoas. — Serpente piscou. — Vamos, será divertido. Vou te levar até ela.
E, antes que a enfermeira pudesse emitir seus lamentos de protesto, Serpente a agarrou pelo pulso e a conduziu até a mureta onde a mulher misteriosa se sentava; Esta abriu o sorriso ao notar ambas se aproximando. De fato, ela estava olhando para alguém.
— Boa tarde, senhora. — Serpente cumprimentou, oferecendo a mão para a mulher. — Eu sou Serpente. E você é a…
— Nidea. — A mulher se levantou e tomou a mão de Serpente na sua, ainda espantada positivamente com a ousadia da outra.
— Nidea. Prazer em conhecê-la. — Disse Serpente. — Esta ao meu lado, que eu suponho que seja quem você quer conhecer, é Aya. Ela está solteira.
Aya corou com a falta de tato de Serpente, mas Nidea apenas se pôs a sorrir.
— Ignore a minha amiga. — Aya tentou apresentar-se de uma forma mais delicada.— Prazer em conhecê-la, Nidea. Eu sou Aya, sou enfermeira e…
— Você está muito ocupada, Aya?
Aya espantou-se com a sugestão. Não esperava uma proposta tão direta; Serpente a encarava com um olhar malandro, satisfeita por estar certa em suas suposições.
— Eu… Não, mas… — Nidea era particularmente atraente, Aya não podia negar. Mas não estava acostumada a abordagens tão repentinas, principalmente quando vindas de alguém que ela de fato tinha interesse.
— Gostaria de trocar algumas palavras comigo? — Ela perguntou, sem muitas cerimônias, e ofereceu sua mão para a enfermeira. — Para que possamos nos conhecer melhor.
Aya não levou muito tempo para se decidir.
— Eu adoraria. — E, tomando a mão de Nidea na sua, Aya sorriu para a parceira.
— Bem, acho que o meu papel de cupido por aqui já está feito. — Serpente esfregou as mãos uma na outra. — Se me permite, eu vou retornar à minha solidão com a minha cerveja. — Com a voz mansa, sussurrou no ouvido de Aya: — Divirta-se. O sex* com Loenna é gostoso, mas ele pode ser gostoso sem ela também.
A enfermeira fez como se não tivesse escutado os dizeres sugestivos de Serpente, ao passo em que a ladra retornava seu lugar para os bancos de mármore do outro lado da fonte. Sentou-se na ponta de um deles, tomou um gole de sua cerveja e observou a estátua de anjo jorrar água pela cabeça. Serpente gostava de contato humano, mas por vezes a solidão lhe era apreciada. Ela precisaria de um tempo para pensar em Loenna e em como sua morte a havia abalado.
Não teve muitos minutos de solitude, porém, porque Merit Kantaa tomou um assento ao seu lado após algum tempo. Ela parecia preocupada, notou Serpente.
— Você está aqui. Que alívio! — A bruxa suspirou fundo. — Eu preciso te fazer uma pergunta. Por Deus, eu me sinto uma adolescente!
— Você parece aflita — estranhou Serpente; A mulher levou sua garrafa de cerveja ao chão. — Vamos lá, faça sua pergunta.
Merit umedeceu os lábios. Tomou as mãos de Serpente nas dela e, após alguns longos segundos de silêncio, se pôs a falar:
— Você tem algum tipo de sentimento por mim, Serpente?
E Serpente, diante do questionamento da bruxa, apenas se pôs a rir de maneira divertida.
— Por que essa dúvida agora, Merit? — Perguntou, sem desmanchar o sorriso dos lábios.
— Você deve me achar uma tola. Ah, claro que acha, eu sou uma tola! — Merit se repreendeu. — Mas, bem, eu estive lá quando você derrubou lágrimas pela rainha. Sei que a amou. Por isso quero entender se sente por mim o que sentia por ela ou se sou apenas o seu brinquedinho sexual. Quero dizer que está tudo bem se não me corresponder, claro, eu sou velha o suficiente para lidar com isso, mas… Enfim, acho que falei demais.
Serpente ergueu uma sobrancelha.
— Você é capaz de descobrir isso sozinha, não é? — Afinal, nem toda parceira romântica tem o poder de ler mentes.
— Sou. — Merit concordou. — Mas eu tenho medo da resposta. Quero ouvi-la direto de seus lábios.
E, num primeiro momento, Serpente não respondeu. Apenas aproximou a cabeça da bruxa para perto de si e roubou dela mais um beijo; Não um beijo cotidiano, como os que elas estavam acostumadas, mas um beijo longo e intenso.
— Merit… — Ao separarem suas bocas, Serpente deslizou os dedos pelas mechas louras da amante. — Eu sempre quis entender o amor. Sempre quis entender como ele vem, o porquê, e em que momento eu posso considerar que estou amando. Mas isso foi sempre um mistério para mim.
E Merit, atenta, fez que sim com a cabeça. Seu corpo inteirinho sentia a tensão do momento, de seu dedão do pé até o último fio de cabelo.
— Sei que amei Loenna porque sua falta me doeu. Sei que amei Loenna porque ao vê-la morta, foi como se uma parte de mim tivesse partido também — continuou Serpente. — Então eu conclui que amar é sentir uma conexão com o outro. Como se, ao mesmo tempo em que estívessemos separadas, estívessemos juntas. É levar o outro consigo para todo lugar que você vai, dentro do coração e da mente. Zelar pelo seu bem estar, pela sua segurança, porque vê-lo partir é como ver a si mesmo partir. E, nesse sentido…
Serpente deu na bruxa um selinho e dirigiu seus lábios diretamente ao ouvido da amada.
— Eu te amo, Merit — sussurrou, arrancando da outra um intenso arrepio que corria por sua espinha.
— Você sabe como dominar uma mulher, não é? Cruzes! — exclamou a bruxa, e Serpente não pôde evitar de sustentar um sorriso jovial nos lábios. — É um alívio para mim ouvir isso. Eu também te amo, Serpente.
— E é justamente por te amar… — Continuou Serpente. — Que eu tenho uma proposta para lhe fazer.
A amante franziu o cenho.
— Proposta? — Ela parecia receosa do que viria a seguir. — Eu não sei se confio nas suas propostas, para ser sincera. Mas vamos lá, diga.
— Sua confiança em mim me comove — brincou Serpente. — Pois bem. Já que Darian fará parte do conselho real e você não tem mais nenhum vínculo com sua antiga vida, o que acha de fugir comigo e viver uma vida incerta de aventuras pelo mundo?
Merit, confusa, curvou a cabeça. Parecia loucura; abandonar a vida segura que tinha no meio da mata pelo desconhecido e o novo que Serpente lhe sugeria?
— O que você quer dizer? — Ela ainda não estava certa de que havia entendido corretamente.
— Eu perdi Loenna porque a abandonei para viver uma aventura. — Serpente suspirou. — Não quero que o mesmo aconteça com você. Eu não preciso abandonar-te para viver como um espírito livre. Quero que você me acompanhe em minha estadia pelo mundo, cada dia em um lugar novo, sobrevivendo de saques e da nossa liberdade. Juro que é divertido; Conhecer pessoas novas, lugares novos, realidades novas…
— Não estamos velhas demais para isso? — Aos cinquenta anos, tudo o que Merit queria era sua paz e sua tranquilidade.
— Não existe idade para ser feliz. E muito menos para ser livre — afirmou Serpente. — Mas e então, o que me diz?
E, diante de tal proposta, Merit só se viu na posição de rir; Serpente era completamente louca, pensou, mas era a louca com a qual ela queria passar o restante de seus dias.
— Eu aceito. — Ela disse, ainda entre a risada; Serpente abriu um sorriso. — Quero ver quais as surpresas que uma vida ao seu lado irá me reservar.
— Tenho certeza de que você irá adorar. — Serpente lançou uma piscadela. — Será divertido até mesmo dormir em lugares insalubres e comer refeições de aspecto duvidoso. Garanto.
— Mal posso esperar. — E talvez não fosse Merit também um pouco louca? — Mas, já que estamos falando de propostas… Eu também tenho uma para lhe fazer.
E foi a vez de Serpente demonstrar curiosidade.
— Me parece que Merit Kantaa também tem os seus segredinhos. — Disse Serpente. — Diga-me, Merit, qual a sua proposta?
— O que acha… — Começou ela. — De se tornar minha esposa?
Serpente franziu o cenho. Um pedido de casamento era, de fato, algo inusitado.
— Merit, nós não podemos nos casar. — Para a infelicidade de Serpente, inclusive. — Nós somos duas mulheres…
A bruxa emitiu um sorriso brincalhão e pôs a mão no bolso, tirando dele duas belas e brilhantes alianças de ouro.
— Eu não me importo com papel, ou com cerimônias religiosas. Se você decidir, a partir de agora, que é minha esposa, então estamos casadas — disse, deslizando os dedos pelos brinquedinhos que havia conseguido. — Eu trouxe até o símbolo de nossa união, se você quiser.
— Merit… — Serpente tomou uma das alianças consigo. — São lindas. Onde você as conseguiu?
— Eu pedi com muita educação para o dono de uma joalheria. — Serpente lançou um olhar desconfiado à amante. — Tudo bem, não foi exatamente isso. Eu tive que chantageá-lo; Ameacei contar à sua esposa que ele a traiu com a irmã dela.
— Você está pegando o jeito. Acho que podemos ser uma boa dupla de ladras — brincou, analisando o ouro da aliança. — Nesse caso, Merit, você não me deixa opção… Teremos que nos casar.
— Espero que você não se arrependa disso, esposa. — Disse Merit, encaixando uma aliança no dedo. A amante fez o mesmo.
— Ah, eu duvido muito que aconteça. — E, com um olhar brincalhão, Serpente se voltou à sua agora esposa, roubando dela mais um beijo.
***
As coisas estavam difíceis para Arien Eran. A jovem não havia esboçado um sorriso sequer na semana que havia se passado; se recusara a dormir na mansão Nalan, dizendo que estava traumatizada com aqueles quartos horrendos, mas também não tinha paz em sua antiga casa. Quando fechava os olhos, ouvia as vozes de seus irmãos chamando por ela; era apenas uma ilusão, contudo.
Narael, que não estava nada contente em ver a Eran nesta posição, tentava animá-la. Era completamente vão, apesar de tudo.
— Você quer uma cerveja? — ofereceu a princesa, com um cigarro entre a ponta dos dedos. Sabia que Arien gostava de apreciar uma boa bebida alcoólica; Entretanto, a namorada apenas negou.
— Acho que nunca mais vou tomar cerveja na vida. — E fungou. — Sempre que sinto o gosto amargo na minha boca, lembro-me dos meus irmãos. Júnior, Lochiar, Ashlor, Kyedar… E de como eles odiavam que eu bebia.
Narael suspirou fundo. Poderia se esforçar, mas não era Deus. A dor de Arien era quase impossível de ser remediada, e quem poderia julgá-la?
Enquanto tentava animar a garota pela milésima vez, Serpente apareceu de mãos dadas com Merit, ostentando um sorriso capaz de ofuscar qualquer outra beleza. Em seu dedo anelar, brilhava uma aliança. Embora não soubesse o que aquilo significava, Narael soube que somente ela seria capaz de trazer de volta o sorriso para sua amada.
E lançou um olhar de súplica, torcendo para que a ladra entendesse seu apelo. Para sua sorte, Serpente era perspicaz; o olhar de Narael cruzou com o seu e logo ela disse algo a Merit, deixando-a só e atravessando a passos largos em direção ao casal.
— Boa tarde, garotas. — O falatório do padre quase engolia a voz de Serpente. — Posso me sentar com vocês?
Narael assentiu e se levantou para que o banco pudesse acomodar Serpente. Arien nada disse; Estava muito concentrada na própria dor.
— Muito bem. — Serpente já havia notado que o foco era Arien; Envolveu seu braço nos ombros da garota e disse, com a voz mansa: — O que está acontecendo aqui?
Arien suspirou fundo. Limpou uma lágrima com as costas da mão.
— Não consigo pensar em mais nada que não seja meus irmãos. — Suas palavras eram pesadas. — Tudo aqui cheira à morte. É como se minha vida tivesse chegado ao fim. Estou sozinha, completamente sozinha. Não tenho família, estou só no mundo.
— Eu sei o quanto pode ser difícil — compadeceu-se Serpente. — Pensei que estivesse sozinha no mundo por muito tempo. Mas você não está só, Arien. Narael está com você. E, caso sinta falta dos seus irmãos, você tem Darian…
— Mas eu os queria aqui. — A menina tão sorridente e animada de antes havia se reduzido a uma garota chorosa, de coração apertado. — Queria uma família, além de um amor e amigos. Não quero voltar à minha casa, tudo me faz mal. Eu não consigo dormir direito há dias…
Serpente uniu as sobrancelhas. Gostaria de poder fazer algo, mas não era capaz de trazer as pessoas de volta à vida. Se pudesse dar a Arien uma nova família, ainda que esta jamais substituísse a primeira…
Foi quando apertou os olhos e focalizou, em meio à multidão, uma figura conhecida. Talvez ela pudesse fazer algo por sua nova amiga.
***
— Chega, Nassere! — Soraya ofegava, com um copo d'água em mãos. — Que ideia foi essa de vir aqui a pé? Já passei dos setenta! Estou velha demais para essas estripulias.
— Ora, precisamos nos manter ativos. — O velho sorriu, com a luz do sol refletindo em sua barba branca. — E você não está velha, querida. Está linda como sempre.
Soraya abriu um imenso sorriso.
— Meu amor… — E deu um selinho tímido no homem, sentindo seu queixo roçar nos pelos da barba de Nassere.
Quando o marido se afastou, porém, Soraya percebeu que Gillani a esperava. Com o costumeiro sorriso brincalhão e uma moça ao seu lado, a filha parecia mais radiante do que nunca.
— Gillani? — chamou Soraya, e logo Nassere se virou para focalizar Serpente. — Demorou para nos procurar, mocinha. Cheguei a achar que você não vinha.
— Obrigada pelo "mocinha" — agradeceu a ladra. — Tive uns contratempos. Mas vim aqui apresentar alguém para vocês. Arien, estes são Nassere e Soraya. Ela é minha mãe, e ele… Bem, acho que é meu padrasto.
E apertou-se contra Arien, que apesar dos olhos inchados de tanto chorar, se esforçou ao máximo para esboçar um sorriso e acenar para o casal de idosos.
— Que moça bonita! — Comentou Soraya, analisando-a. — Não me diga que você está…
— Eu não saio com mulheres muito mais novas. — Serpente cortou. — Bem, esta é Arien e ela tem 22 anos.
— Você está dizendo… — Soraya tentou adivinhar.
— Isso, Arien Eran — reforçou Serpente. — A garota cuja família Loenna matou.
Nassere assoviou; Soraya arregalou os olhos.
— Que tragédia! — E em seus olhos, refletia-se uma verdadeira preocupação com a moça. — Eu sinto muito por você, garota.
— Ela não quer voltar para a casa, porque tudo lá a lembra de seus irmãos — continuou ela. — E, como ela precisa de um lar e de uma nova família nesse momento, eu pensei que talvez vocês pudessem acolhê-la em sua casa.
Soraya ergueu as sobrancelhas. De início, a ideia lhe pareceu maluca; Mas, ao olhar para a garota com mais atenção, sentiu um aperto no coração. Uma jovem moça, sozinha, sem família, sem alguém para conversar em seus momentos de vulnerabilidade. Talvez ela realmente precisasse de uma assistência emocional. E, afinal, depois que o mais novo dos filhos de Nassere se casou, aquela casa tem estado solitária mesmo…
A mulher encarou o marido, que assentou com a cabeça; O aval de Nassere ela já tinha. Agora, só faltava lhe dar as boas notícias para a moça.
— Claro que nós a acolhemos! — E sorriu. — Arien será sempre bem vinda em nosso lar. Onde comem dois, comem três!
Serpente sorriu. Apesar dos lábios comprimidos, os olhos da garota expressavam gratidão; Ela havia perdido uma família, mas ganhado outras pessoas.
Quem sabe, com o tempo, Nassere e Soraya não seriam como uma família para Arien?
— Minha mãe é uma pessoa incrível, você vai ver. — E abraçou a menina, que agora já havia parado de chorar. — Você não estará sozinha, viu? Você ainda tem Narael, Darian… E eu, bem, farei um esforcinho para te ver de tempos em tempos. Prometo.
— Obrigada… — Murmurou Arien, apertando Serpente com toda a força do mundo. A ladra sorriu.
— De nada. Você é minha sobrinha, no final das contas. — E afagou os cachos da menina.
— Estamos ansiosos para tê-la em nossa casa! — Sorriu Nassere, cheio de pompa. — Meus filhos e netos ficarão felizes em conhecê-la.
E Arien não respondeu. Não conseguia expressar em palavras a gratidão que tinha por Serpente.
Logo se dirigiu a Nassere e o abraçou, fazendo o mesmo com Soraya. O casal seria agora o seu novo porto seguro.
***
Darian estava bebendo escondido em algum ponto do funeral. Não que Merit fosse se importar, mas ele se sentia mal consumindo bebidas alcoólicas perto de sua mãe.
E, desta vez, o que tinha no copo era cerveja.
— Eu quero ver o meu funeral, Darian! — clamou Loenna, com a voz mansa. — Você não pode ficar lá perto só um pouquinho?
— Eu odeio funerais. — O que era até mesmo irônico. — E gosto de cerveja. Então, por mim, continuamos aqui.
— Por mim, vamos ver o funeral — interrompeu Julien. — São dois contra um, o que significa que você perdeu.
— O corpo é meu, então eu decido que meu voto vale por três. — Era um pouco cansativo discutir com dois fantasmas enxeridos, mas Darian já estava se acostumando. — São três a dois agora. Touché!
Julien seguiu falando qualquer coisa pouco importante, mas Darian havia desenvolvido uma habilidade valiosa: Ignorar os seus pensamentos. Enquanto o fantasma falava como uma gralha, Darian fechou os olhos e pensou em qualquer outra coisa: Pássaros, montanhas, rios… E as palavras de Julien simplesmente sumiram ao longe.
Quando o rapaz abriu novamente os olhos, porém, deu de cara com Faer. O jovem estava bebendo um copo de algo indistinguível e, desta vez, parecia sozinho. Darian congelou ao espreitar seu interesse amoroso tão próximo de si.
— …E é por isso, Darian, que você é incrivelmente chato. — Julien encerrou seu discurso. — Mas e agora, o que você vai fazer? Você vai… Oh.
O copo de Darian despencou de sua mão e se espatifou no chão quando Faer notou sua presença, acenando e dirigindo-se a ele no minuto seguinte. O rapaz estava próximo de ter um colapso.
— Reaja, Darian! — Julien bateu palmas. — Você tem uma segunda chance para arrasar!
— O que está acontecendo? — Loenna quis saber. — Quem é aquele garoto?
— É o garoto que o Darian está a fim — respondeu Julien. — Ele falhou miseravelmente da última vez, ficou muito bêbado e passou vergonha. Mas, ao que tudo indica, o moço não se incomodou com isso. Lembre-se, Darian: Aja normalmente.
Era difícil agir normalmente quando aquele rapaz de dentes tão brancos e rosto tão belo voltava-se a Darian como se fosse seu amigo de eras.
— Ei! — O rapaz deu um soquinho no ombro do Kantaa. — Você está aí! O que aconteceu da última vez? Fiquei preocupado com você… Você sumiu…
Darian começou a suar. Suas pernas se tornaram bambas.
— Eu… Eu… — Tentou bolar uma desculpa convincente. Faer aparentemente havia perdido o ponto onde o garoto fora preso por, em linhas gerais, ser um Kantaa.
— Ah, não importa! — Faer fez um gesto com a mão. — Quer um gole? É água.
E ofereceu seu copo para o rapaz. Darian sentiu seu cheiro, e nada ali denunciava álcool.
— Uh… Você… — Ainda assim, Darian estava receoso de beber no mesmo copo que Faer. — Não vai beber?
O rapaz negou com a cabeça.
— Uma pessoa morreu. Não devemos comemorar algo assim — E tirou uma cruz de dentro da camisa. — Espero que Deus abençoe Loenna.
Darian se manteve imóvel por um longo período de tempo. Faer era religioso?
— Deus irá me abençoar, sim — respondeu Loenna, maliciosa. — Se ele permitir que você dê um beijo nesse rapaz por mim. Ele é muito gostoso.
— Tome vergonha na cara, mulher! — repreendeu Julien. — Você tem quarenta e sete anos!
— Você é religioso? — Darian preferiu ignorar as colocações indelicadas de Loenna.
— Eu sou católico. — Faer soava um pouco ofendido. — Você nunca percebeu?
Não havia muitos indícios, pensou Darian.
— Hã… — Darian esfregou os próprios braços. — Eu acho que… Que…
— Ei, posso te mostrar um lugar? — perguntou Faer, os olhos brilhando de expectativa.
Ele estava tão disposto a arrastar Darian para uma aventura maluca que sequer esperou sua resposta, agarrando o braço do menino em direção à multidão de pessoas na porta.
***
O local pretendido por Faer era pacato, silencioso e, por que não dizer, prazeroso. Darian sentia-se em casa: Era um imenso bosque logo em frente à mansão Nalan. Não era tão perigosa quanto a floresta sangrenta, mas lembrava muito o lugar onde Merit costumava viver. Os rapazes serpentearam por toda uma passarela, observando as belezas da natureza, até pararem em frente a uma imensa faixa de água cristalina.
— Eu gosto do lago. — Faer e Darian repousavam, cheios de si. Os passarinhos cantavam, e a brisa quente que soprava do horizonte era suficiente para aquecer seus corações. — Quando eu era criança, meu pai costumava me levar aqui. Ele jogava uma pedra, ela dava três ou quatro pulos e afundava. Eu nunca consegui fazer isso.
— O que aconteceu com o seu pai? — Darian afagou os próprios cabelos com a mão direita.
— Morreu. Deu uma doença nele, nenhum médico conseguiu explicar. — Faer deu de ombros. — Naquele dia, amaldiçoei a Deus. Mais tarde, porém, descobri que as coisas acontecem como tem que acontecer.
— Eu penso assim também — comentou Loenna.
— Que coisa triste de se dizer — atestou Darian.
— É. Um pouco. — Faer jogou uma pedra no lago. Ela não quicou na tensão superficial da água; ao contrário, afundou como se feita de ferro. — Mas, vendo o que ele dizia dos efeminados, acredito que seja melhor assim. Ele jamais me aceitaria como eu sou.
Darian sentiu a garganta fechar.
— O que seria um… — Ele tinha medo da palavra. Sabia que eles eram muitos, corria-se o boato de que até mesmo o rei Fowillar fosse um deles; contudo, o julgamento ainda imperava. Ninguém queria ser um, como diziam em palavras silenciosas, efeminado. — Efeminado?
— Homens como nós. — Era o que Darian temia. — Por quê? Você não se vê como um deles?
— É complicado explicar. — Darian uniu os próprios pés.
— Não é tão complicado assim — sussurrou Julien, ao pé do seu ouvido. Darian preferiu ignorar.
— É bem simples, na verdade. — Loenna não ajudava.
— Sei como se sente. — Faer era bastante sereno; sua calmaria, no entanto, escondia conflitos que Darian jamais seria capaz de decifrar. — É difícil se entender como um homem que ama homens. Desde muito pequeno eu sabia o que era… Mas é um longo caminho até você conseguir se aceitar.
— Eu não sei se compartilho deste sentimento. — Darian, ao contrário do que Faer poderia imaginar, não sentia nada por rapazes quando criança. Na verdade, ele não sentia nada por ninguém; imaginar-se como um ser ativo no mundo dos relacionamentos era algo extremamente novo, que surgiu com Narael. Darian, na maior parte do tempo, gostava apenas de interagir com seus amigos imaginários: Os espíritos. — Para mim é algo completamente novo.
— Você já beijou alguém? — Uma pergunta um pouco indiscreta, mas Faer não parecia ter vergonha. Darian não se importou com o pouco pudor, também.
— Já, uma vez. Mas não foi uma boa experiência. — Ele quase fora morto por Digan, afinal. — E…
— Você quer beijá-lo, não quer, Darian? — Julien, o fantasma inconveniente, não sabia a hora de ficar quieto. — Você sabe que quer.
— É claro que ele quer — Loenna concordou. — E eu quero também. Esse menino é muito bonito, por Deus!
— E você? — Julien e Loenna eram os pequenos demônios que sopravas em sua consciência, e, como tal, não deveriam ser levados a sério. — Já beijou alguém?
— Alguns. — Faer encarou o horizonte. — Mas, como eu te falei, lidar com esse sentimento é complicado. Nem todos os rapazes conseguem; se nem mesmo o rei Fowillar, com todo o seu poder e influência, consegue assumir este lado de sua essência publicamente, quem somos nós para fazer isso?
Um vazio tomou conta do interior de Darian. Faer estava certo, encarar a preconceituosa sociedade não era um desafio fácil. Não havia punições previstas em lei para sodomitas, ao menos não no país; contudo, ser ostracizado não era o tipo de consequência que Darian gostaria de experienciar. O preço de não ser como todos os outros era alto demais.
— Se ninguém protestar contra isso, nada mudará. — A voz de Julien ressoou em sua mente atribulada. — Por Deus, Darian! Eu perdi minha vida por me rebelar contra o sistema, não é possível que você vai aceitar uma imposição ridícula dessas apenas porque alguém te disse que deve!
E, embora desejasse que o fantasma ficasse quieto por um mísero minuto que fosse, Darian notou que ele estava com a razão.
— Se ninguém protestar contra isso, nada mudará. — As palavras de Julien lhe pareceram propícias. — Fowillar é um governante. Ele precisa do apoio do povo para se manter no poder. Nós não deveríamos depender da sua exposição para sermos nós mesmos.
O sorriso de Faer foi tenro, suave e gentil.
— Acho que você tem razão. — E tomou sua mão na dele. — Eu gosto de você, sabia? Você é muito corajoso.
Darian corou. A pessoa a quem ele deveria agradecer era Julien, mas pelo momento, o garoto permitiu ficar com os louros.
— Faer, você acha que nós… Eu digo, eu e você… — O rapaz apontou para si, e em seguida para o parceiro. — Poderíamos ter um futuro juntos?
— Que pressa, menino! — E, novamente, a voz do fantasma soprava. A vontade de enforcá-lo retornou. — Vocês estão se conhecendo agora!
— Quem não arrisca, não petisca — Loenna contrapôs-se a Julien.
— Acho que só Deus sabe. — Faer segurou a cruz que trazia junto ao peito. Darian não compartilhava da mesma fé, mas achava bonito como o rapaz acreditava com toda a sua força em um além-vida melhor. — Eu quero que isso aconteça. Acho que nunca encontrei em ninguém o que encontrei em você.
Ouvir tais dizeres fazia o ego de Darian inflar. Logo ele, que sempre se sentiu patético e pouco interessante; havia alguém que prezava por ele, alguém que o achava incrível. E isso era a única coisa que importava.
— Isso significa que nós teremos que… — Darian fez uma careta. — Ficar pelados juntos e… Você sabe…?
Faer soltou uma gargalhada intensa. Darian sentiu-se uma piada no primeiro momento, mas a alegria do jovem era tão contagiante que o Kantaa se pôs a rir junto. Logo se deu conta de que Faer não ria dele, mas com ele.
— Só se você quiser — disse. — Eu não faço questão. Você faz?
— Eu faria — interveio Julien. — Mas também não tenho o menor desejo por rapazes, então para mim tanto faz.
— Eu gosto. — Loenna também havia se mostrado particularmente irritante. — Com homens e com mulheres. Você deveria tentar, Darian.
— Não — respondeu Darian. — Bem, talvez não para sempre. Por agora. Eu não sei, eu…
Faer levou um dedo à boca do jovem Kantaa. Sorriu para ele e, num só ato, deixou clara a mensagem de que estava tudo bem.
— Posso? — E alisou os cabelos loiros do menino com a mão esquerda.
Darian assentiu, mesmo sem saber ao certo o que estava permitindo.
E, num só ato, Faer segurou seu queixo e permitiu que ambos trocassem um beijo tenro e doce; uma explosão de sentimentos completamente agradável, que fez o coração de Darian bater mais forte. E, sem deixar espaço para dúvidas, o garoto concluiu que aquele era o melhor dia de toda a sua vida.
***
Enquanto Loenna era sepultada, Fowillar sentiu uma lágrima escapar por seus olhos. Gostava de lembrar-se dela não como a rainha tirana que quase o matara, mas sim como a amiga fiel que deu a ele uma nova vida.
Quando a terra foi jogada em cima do caixão da antiga rainha, o rei sentiu seu coração apertar. Era necessário muito sangue frio para assistir a tudo aquilo sem chorar.
Foi surpreendido com uma mão em seu ombro. Era Euler.
— Você está bem abalado com tudo isso, não está?
Fowillar fez que sim.
— Loenna era uma grande amiga — suspirou. — Uma amiga meio doidinha, mas, ainda assim, uma amiga. Não será fácil deitar todas as noites e não ver ela ao meu lado da cama.
Euler assentiu. Observou a última pá de terra ser jogada por cima do caixão.
— Então é isso. — O mais velho também teve de reprimir uma lágrima. — Que Deus proteja a rainha.
Fim do capítulo
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Lea
Em: 20/11/2022
Quem diria, Serpente casada, e indo se aventurar mundo a fora com sua esposa!
Vai demorar para quê,a Arien ao menos "aceite" que sua família não mais voltará!
Gostei da atitude da Serpente,em "doar" sua mãe e seu padastro à Arien!
Coitado do Darian,vai ficar com dois perturbando sua mente!
Mudanças ocorreram,e que sejam boas!
Resposta do autor:
Eu não queria ser o Darian nesse momento hahaahah

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