Inflamável por HumanAgain
Este capítulo contém cenas de extrema violência e pode gerar gatilhos
Capitulo 8 - O retorno da cobra
— VOCÊ FEZ O QUE, JÚNIOR?
Kyedar, Ashlor, Lochiar e Júnior estavam todos reunidos na sala. Era uma tarde amarga de domingo em que a humilde residência Eran amanhecera sem seu cristal mais precioso, Arien. Após horas procurando a caçula, o mais velho fora obrigado a admitir sua visita repentina no meio da noite.
— Ei, calma lá. — Júnior se defendeu. — Não é culpa minha. Ela disse que era urgente.
— E VOCÊ ACREDITOU, SEU DESGRAÇADO? — O rosto de Kyedar estava vermelho como um tomate. — COLOCOU UM ESTRANHO DENTRO DA NOSSA CASA ÀS TRÊS DA MANHÃ?
— Não era uma estranha. — Júnior desafiou Kyedar. — Eu não tinha como saber que a visita sequestraria Arien.
Antes que Kyedar estourasse mais uma vez, Ashlor interveio, interpondo-se entre os dois irmãos.
— Sem brigas. Nós já somos adultos o suficiente para resolver isso sem nos exaltar. — Disse Ashlor, sereno. — Arien sumiu e é nisto que devemos focar, não em buscar culpados. Muito bem, Júnior, se não era uma estranha, quem era?
— Aquela garota que veio aqui outro dia. — Murmurou o homem, tentando se lembrar. — Era asiática, gorda, baixa e morena. Gosta de usar roupas finas, mas desta vez usava camisola. Eu não sei o seu nome, mas sei que dizia ser amiga de Arien.
Nisto, Kyedar pareceu entrar em erupção. Lembrava-se de Narael e de quem ela era sucessora; Não queria ter com ela nenhum tipo de relação amistosa.
— EU NÃO ACREDITO, JÚNIOR! — Se Ashlor não estivesse entre os dois, Kyedar teria agredido o irmão. — VOCÊ ENTREGOU NOSSA IRMÃ DE BANDEJA PARA O INIMIGO.
Júnior encarava Kyedar com um olhar confuso. Ashlor se viu obrigado a respirar fundo e voltar-se ao irmão mais velho com cansaço.
— Você não se ajuda, não é, Júnior? — Ele parecia desanimado. — Infelizmente serei obrigado a concordar com Kyedar dessa vez. Mas com palavras mais sutis, se você preferir.
— Mas o que… — Júnior coçou a cabeça. — Alguém pode me dizer o que eu fiz de errado?
— Também quero saber. — Lochiar, que até o momento havia se mantido calado, manifestou-se. Sabia que havia algo de errado em toda a história.
Ashlor até tentou explicar a situação, mas Kyedar estava irado demais para se manter quieto. Num rompante de ódio e raiva, apontou o dedo para Júnior e o fuzilou com os olhos.
— VOCÊ COLOCOU DENTRO DA NOSSA CASA A SUCESSORA DE LOENNA NALAN. — Vociferou, tão ferozmente quanto um cachorro raivoso. — ESTÁ FELIZ, JÚNIOR?
Júnior arregalou os olhos. Lochiar não parecia mais feliz; Não sabia se perdia a paciência com o irmão mais velho, por ter dado permissão para uma inimiga adentrar sua casa, ou com os outros dois irmãos, que não lhe contaram a verdade acerca da “amiga” de Arien.
Mas, para Júnior, o espanto logo se transformou em raiva; Imediatamente culpou os irmãos por não lhe revelarem a verdade sobre Narael.
— E NINGUÉM SE PREOCUPOU EM ME DIZER? — Gritou, especificamente para Kyedar. — VOCÊS SÃO OS VERDADEIROS CULPADOS POR ISSO, SEUS CRETINOS. EU NÃO TERIA ABERTO A PORTA PARA A SUCESSORA DA TIRANA SE EU SOUBESSE.
— Eu estou tentando engolir o que acabou de acontecer aqui… — Lochiar soprou a fumaça do cigarro. — A amiga de Arien é sucessora de Loenna Nalan. E Júnior abriu a porta para ela. Mas ele só fez isso porque Ashlor e Kyedar, que sabiam do fato, não disseram a ele com quem estávamos lidando. TODOS VOCÊS ESTÃO ERRADOS, PORRA! — E socou a parede.
— Vocês não conseguem falar um pouquinho mais baixo? — Ashlor fez um sinal aproximando seu polegar do dedo indicador. — Ethel está dormindo, caso não estejam lembrados.
— Você tem razão. — Júnior enrijeceu os músculos. — Conseguimos resolver esse problema juntos. Arien, Arien… Devemos focar em Arien…
E, enquanto Kyedar decidia entre render-se aos apelos de Ashlor e gritar mais uma vez com Júnior, alguém bateu à porta. Imediatamente, todos os pares de olhos foram desviados para lá; A esperança reacendeu no coração dos Eran. Talvez sua irmã estivesse bem.
— Será? — Questionou Lochiar, e sequer precisou completar a frase; Todos os irmãos se perguntavam a mesma coisa.
De início, ninguém ousou atender ao chamado. Poderia ser um alarme falso, poderiam ser mais problemas; A dúvida pairou sobre o quarteto Eran.
E as não tão amigáveis visitas notaram a demora.
— Aqui é a comitiva de Loenna Nalan. — Uma voz feminina imponente se antecedeu às ações dos irmãos de Arien. — Abram a porta ou teremos que arrombá-la.
— Parece que aqui temos nossa resposta. — Disse Ashlor, aliviado. — Arien está bem.
— Eu não teria tanta certeza se fosse você. — Júnior logo se apressou a atender a porta. — Loenna Nalan é capaz de tudo.
Ao receber os visitantes, Júnior deu de cara com Loenna — a rainha —, Fowillar — seu marido —, Euler — o conselheiro —, e mais alguns membros da guarda real; Cerca de cinco ou seis. Entre eles, o célebre Lenrah Moran. Contudo, nada de Arien.
— Rainha Loenna. — A voz de Júnior era carregada de desprezo.
Loenna sorriu sadicamente para o desafeto e adentrou a casa Eran sem ser convidada. Fowillar encarou Júnior por alguns segundos, sem graça, mas o mais velho permitiu sua entrada. Desta forma, toda a comitiva de Loenna estava na casa de seus maiores inimigos.
A rainha passou por todos os irmãos de Júnior sem sequer cumprimentá-los e esquadrinhou a sala com seu olhar. Kyedar estava prestes a entrar num embate físico com sua governante, mas sabia que levaria a pior se assim fizesse; Todas as atitudes de Loenna denotavam desprezo.
Então, a rainha Nalan parou em frente à pintura de Morius e Saraen e correu seus dedos pela obra, especificamente pelo corpo de Morius.
— Ah, Morius… — Ela disse, sorrindo. — Foi realmente muito prazeroso cortar a garganta desse desgraçado. Eu gostaria de poder revivê-lo apenas para fazer de novo.
Lochiar trincou os dentes e estreitou os olhos. Kyedar beliscou-se para não investir contra ela. Júnior a xingava mentalmente de todos os nomes possíveis e Ashlor apenas balançava a cabeça de um lado para o outro, mandando uma clara mensagem para Kyedar.
— Muito bem. — Loenna se voltou aos irmãos Eran. — Onde está Arien?
— É o que nós todos queremos saber. — Rosnou Kyedar. — Ela estava aqui antes da sua herdeira aparecer às três da madrugada e resolver levá-la embora.
Ashlor deu uma cotovelada em Kyedar e Loenna ergueu as sobrancelhas.
— Narael esteve aqui, então? — Disse Loenna. — Bem, isso explica muito. O que você tem a dizer sobre o sumiço de minha sucessora, Eran?
Kyedar encheu a boca para responder, mas Ashlor se pôs na frente, evitando mais um conflito.
— O que o meu irmão quer dizer… — Disse o Eran, com o irmão espumando de ódio ao seu lado. — É que não sabemos onde está sua sucessora. Também não sabemos onde está Arien, elas sumiram juntas.
— Interessante. — O olhar de Loenna era de total descrença. — Lenrah, investigue a casa, por favor.
Lenrah fez que sim e ordenou aos seus homens que fizessem o mesmo. Sem nem mesmo serem convidados, os homens adentraram cada um dos quartos, revirando todos os cantos a fim de encontrar Arien ou Narael.
— Você deveria ter me deixado dar uma boa resposta para eles. — Sussurrou Kyedar.
— E fazer com que eles tenham ainda mais motivos contra nós? Não seja ridículo! — Retrucou Ashlor. — Me deixe assumir daqui em diante, Kyedar, você não está em boas condições.
Kyedar bufou de raiva. Os homens de Loenna seguiram revirando todos os cantos, deixando um rastro de bagunça por onde passavam, na esperança vã de que Arien e Narael estivessem escondidas por ali.
Dado momento, um dos homens de Lenrah encontrou Ethel, que dormia no mais profundo dos sonos. Um murmúrio infantil pôde ser ouvido do quarto de Kyedar e Júnior, sinalizando que o pequeno havia despertado.
— Não achamos nada. — O homem lançou para Loenna. — Mas tem uma criança aqui.
— Traga-a para cá. — Respondeu a rainha, ríspida. — Venham todos para cá.
Kyedar trincou os dentes com ainda mais força. Ethel era seu filho e ele faria de tudo para mantê-lo em segurança; Quando um homem forte e barbudo empurrou o garoto pelos ombros sem nenhuma delicadeza, o Eran quis sair de si; Somente Ashlor foi capaz de contê-lo.
— Papai… — Ethel esfregou os olhinhos. — Quem são essas pessoas?
— O que você vai fazer com o meu filho? — Era a única coisa que Kyedar conseguia dizer antes de partir para a violência. Loenna emitiu um sorrisinho de canto de boca, mas nada disse.
— Muito bem. — Ela caminhava lentamente pela sala, passando por entre os Eran. — Sabemos que a sua irmã tentou incendiar minha casa. Agora descobrimos que ela sequestrou Narael.
— Incendiar sua casa? — Lochiar franziu o cenho. — Do que você está falando?
— Não se façam de desentendidos. — Disparou Loenna, simplesmente. — Eu vou ser misericordiosa se vocês cooperarem conosco e nos disserem onde sua irmã está. Caso contrário…
— Diga-me você onde está Arien! — Kyedar desferiu um soco contra a parede. — Ela não está conosco e disso temos certeza.
Loenna ergueu a sobrancelha.
— Não vão nos dizer?
— Não há o que dizer, rainha. — Respondeu Ashlor, ainda sereno.
Loenna suspirou fundo. Passou os dedos pela mesinha da sala e se manteve calada por um longo minuto.
— Sendo assim… — Ela respondia as palavras com a maior vagarosidade possível. — Matem-nos.
Os Eran arregalaram os olhos. Ethel berrou e Kyedar tentou agredir Loenna, mas foi impedido por um dos seus guardas corpulentos. Júnior apertou os punhos intensamente e Lochiar cuspiu o cigarro. Ashlor, incrédulo, parecia ser o único que ainda estava com forças para negociar.
— Isso só pode ser um engano… — Ele tentou ainda solucionar o problema. — Nós podemos ser mais valiosos vivos do que mortos. Podemos ajudá-la a encontrar Narael, e Arien. Nós podemos...
— Ah, cale a boca. — Respondeu Loenna, com desdém. — Vamos lá, guardas, eu os quero mortos. Todos os cinco.
Cada um dos guardas sacou seu revólver e o apontou para um Eran diferente. Ao fim, todos eles estavam sob a mira de uma arma e Ashlor chorava silenciosamente. Era o destino final dos irmãos Eran.
— Mas, Rainha… — Lenrah Moran foi o único guarda que não sacou a pistola de imediato. — Até a criança?
— Eu disse “todos”, não disse? — Ela levantou uma sobrancelha. — Que bom que fui ouvida. Você vai acatar minhas ordens?
— Loenna… — Fowillar sussurrou em seu ouvido. — Será que não seria caso de…
— Calado, ou eu executo você também. — Ameaçou. O homem retraiu-se e se calou no mesmo segundo. — E então, Lenrah, como vai ser?
Lenrah se via num beco sem saída. Não queria executar os Eran, principalmente estando entre eles uma criança; Olhava nos olhos de Ethel e via as lágrimas de um garotinho de sete anos que não queria ser morto. Aos prantos, o menino dizia:
— Por favor, moço, não me mate. — Sua voz era fanha. — Eu não fiz nada, moço, por favor.
O chefe da guarda real chegou a hesitar. Perguntou a si mesmo se não deveria desafiar Loenna pela primeira vez, rebelar-se contra sua tirania e seus mandos e desmandos. Talvez ela tenha chegado longe demais.
Mas, ao encarar os olhos de sua rainha mais uma vez, se lembrou do juramento que havia feito. E de quem o havia ajudado a se tornar o homem que ele era hoje.
— Como quiser, minha rainha. — Respondeu, ainda que seu peito protestasse contra.
E, ao contar até três, as balas foram disparadas diretamente na cabeça dos cinco Eran: Júnior, Kyedar, Ashlor, Lochiar e Ethel. Os cinco caíram ao chão, moles, com os miolos espalhados pela sala. Era o fim de quase toda a dinastia de Morius Eran.
***
— Narael, eu estou com fome…
Já era uma hora da tarde e o sol estava em seu auge. Arien e Narael tiveram o cuidado de colocar em suas mochilas um punhado de roupas e um cantil de água, mas esqueceram-se da comida — Bem como o dinheiro para comprá-la. Saindo da luxuosa Quentin Nalan, o que se via eram os subúrbios da capital: Casas simples, muros pichados, crianças brincando com petecas e homens já bêbados conversando na calçada. Depois de caminhar por tanto tempo rumo a um local em que pudessem se alojar, Arien sentiu sua barriga roncar; Era a hora da pausa para o almoço.
Mas onde conseguir esse almoço?
— Você tem alguma ideia de onde podemos comer? — A fome também se manifestava no corpo de Narael. Ela sentia-se frágil e prestes a desabar.
Arien apontou para um boteco do outro lado da rua. Era uma instalação discreta, perdida no meio das pitorescas casas que ali estavam. Necessitava de uma pintura nova, pois o bege das paredes estava se desgastando, e havia algumas teias de aranha se acomodando nos cantos. Se não fosse o homem que acabara de sair com uma lata de cerveja nas mãos, Narael duvidaria até mesmo que estivesse aberto.
— Arien, nós não temos dinheiro. — Respondeu Narael, pesarosa. Mesmo um estabelecimento tão desleixado se recusaria a fornecer comida de graça.
— Nós podemos lavar pratos em troca de alguns petiscos. — Não era exatamente o lugar onde Arien gostaria de estar, mas era a única saída. — Não deve ser tão caro…
— Se você diz… — Afinal, a outra opção seria roubar, e Narael realmente não queria recorrer a ela. — Vamos, espero que ele nos aceite.
Arien e Narael atravessaram a rua e adentraram o bar vagabundo. O cheiro de cachaça barata era forte e invadia as narinas das garotas, embrulhando-lhes o estômago. Sentada às mesas de madeiras velhas, via-se apenas uma única mulher: Cerca de cinquenta anos, magra, alta, pele amarronzada e cabelos cacheados escuros. Ela parecia totalmente desligada da atmosfera ao seu redor, aproveitando solitária uma garrafa de cerveja.
O dono do bar era um homem gordo, de careca brilhante e bigode espesso. Ele limpava o balcão de seu estabelecimento com o máximo desânimo e carregava um cigarro por entre seus lábios moles e finos. Quase não notou quando Arien se pôs na ponta dos pés para chamá-lo.
— Senhor. Senhor! — Disse ela. O homem desviou em poucos graus o seu olhar e Arien soube que seria a oportunidade única para fazer seu pedido. — Você tem comida?
Sem tirar o cigarro da boca, o dono do bar soprou a fumaça do cigarro e fez que sim com a cabeça.
— Temos petiscos de carne, frango, peixe. — Respondeu. — Vocês vão querer algo?
— Acho que um prato de petiscos de carne é o suficiente para nós. — Pediu Arien, empolgada. Narael, contudo, lembrou-se de que ela não havia mencionado um detalhe…
— Nós não temos dinheiro. — E Arien, que não tão acidentalmente assim havia se esquecido de mencionar este detalhe, fez uma careta. — Teremos que pagar lavando os pratos… O senhor aceita?
Ainda desanimado, o senhor do bar fez que não.
— Por que você acha que lavamos pratos por aqui? — E o estômago de Narael se embrulhou. — É dinheiro ou nada, garota.
— Mas… — Narael tentou ainda argumentar.
— Não tem “mas” por aqui. — E, de forma extremamente rude, o homem assoprou a fumaça do cigarro no rosto de Narael. — Se não pretendem pagar, saiam.
Arien olhava feio para Narael. A jovem Wuri, diante da situação desagradável, deu de ombros e virou-se de costas. Quando a dupla estava prestes a dar seu primeiro passo, porém, uma voz feminina invadiu a cena.
— Eu vou pagar para elas, Gilgen.
A reação de ambas foi a mesma; Viraram-se para o lado no mesmo segundo e a mulher solitária que tomava um gole de cerveja parecia agora não tão alheia ao seu redor quanto antes.
Gilgen, o homem do bar, ergueu uma sobrancelha.
— Você é algo dessas garotas? — Ao que tudo indicava, a mulher dos longos cabelos pretos era já conhecida de Gilgen. — Ou está tentando…
— Não sei o que você está insinuando, mas é melhor parar por aí. — Contudo, ela ameaçava soltar uma risada. — Eu jamais negaria um prato de comida a quem tem fome, Gilgen. Traga um prato de petiscos de carne para as garotas.
Gilgen assentiu, limpou as mãos num pano mais emporcalhado do que o chão e retirou-se para dentro do que Narael imaginou ser a cozinha. As condições higiênicas do local a faziam querer vomitar, mas teria que ser assim se quisessem almoçar; A sorte sua e de Arien não permitiria que encontrassem outra senhora benevolente em algum outro bar mais limpo da cidade.
A mulher seguiu tomando sua cerveja como se nada acontecesse. Não olhava para Arien e muito menos para Narael. A mãe da garota Wuri sempre lhe avisou para que não confiasse em estranhos, mas a Eran não tinha o mesmo discernimento; Antes que Narael pudesse impedi-la, Arien já estava sentada na mesa junto à mulher benevolente.
— Obrigada! — O sorriso da garota era imenso. — Jamais poderei agradecer suficientemente à senhora.
— Vou cobrar com juros na próxima. — Ela lançou uma piscadela, e Arien riu da brincadeira. Narael, contudo, ainda não se sentia confortável com a mulher misteriosa, apesar de ter tomado uma cadeira e sentado-se rente à ela. — Vocês são novas na cidade?
— Nós somos de Quentin Nalan. — Respondeu Arien. — Estamos fugindo da lei. Somos procuradas pelo governo.
Narael olhou feio para a amiga. Não era o tipo de confissão que se fazia à uma estranha.
— Vocês são criminosas, é? — Perguntou a mulher, rindo com o canto da boca.
— Pode-se dizer que sim. — Narael se pôs na frente antes que Arien lhe fornecesse mais detalhes.
— Você… — Arien vacilou. Só então lhe surgiu a ideia de que uma mulher conhecida há menos de vinte minutos não era o tipo mais confiável do mundo. — Você não pretende nos entregar, pretende?
Ela soltou uma gargalhada intensa e tomou mais um gole de cerveja.
— Garanto que meu currículo criminal é mais extenso que o de vocês. — A frase fora dita na descontração, mas Narael sentiu um nó se formar em sua garganta. Estavam diante de uma pessoa verdadeiramente perigosa. — É a primeira vez que as mocinhas fogem da lei, não é? O que vocês fizeram, afinal?
— Narael, que é ela, — Arien apontou para a amiga. — Colocou fogo na mansão Nalan. Meu nome é Arien e eu fui incriminada porque sou uma Eran, mas não fiz nada.
Narael queria simplesmente calar a boca de Arien com o que quer que estivesse ao seu alcance. Ela estava revelando detalhes demais a uma criminosa perigosa.
— Mansão Nalan, é? — A mulher sorriu, e por um segundo seu olhar viajou para um lugar distante. — Eu já estive lá uma vez.
— O que foi fazer lá? — Narael não se lembrava de ter visto aquela criminosa dentro de sua casa, e tinha certeza que Loenna executaria qualquer estranho que tentasse invadir sua mansão.
— É uma longa história. Uma história que ficou no meu passado. — A mulher deslizou os dedos sobre o bico da garrafa vazia. — Mas quem vive de passado é museu, não é?
— Bom, eu estou achando que estamos revelando demais e tendo informações de menos. — Narael, irritada, encarou a criminosa com os olhos semicerrados. — Nós sequer sabemos o seu nome…
A mulher deu de ombros e emitiu um sorrisinho. Seu hábito de sorrir a cada segundo irritava Narael profundamente.
— Eu tenho muitos nomes. — E, como sempre, uma resposta difusa. — Alguns me chamam de Gillani, outros de Erimar. Mas a maioria me chama apenas de Serpente.
Serpente lançou um sorrisinho travesso; Naquele mesmo segundo, Gilgen trouxe uma porção de petiscos em um prato engordurado e uma nova garrafa de cerveja para a companheira da dupla. Narael fez uma careta ao ver que há tempos aquele prato não via água, mas Arien logo foi saciando sua fome com um pedaço de carne.
— Serpente, é? — Ao contrário de Narael, a jovem Eran não parecia estar igualmente desconfiada da mulher que as acompanhava. — Por que você se chama assim? É um apelido, não é?
— Ah, minha querida, essa resposta eu vou ter que ficar te devendo. — Serpente abriu a garrafa de cerveja no tampo da mesa. — Um dia desses, talvez vocês saibam. Quem sabe, se voltarem a ouvir falar de mim…
— Você se acha mais importante do que realmente é.
Serpente ergueu uma sobrancelha. Parecia achar graça da petulância da garota Wuri, embora Arien a encarasse com repreensão.
— De fato. — E deu de ombros. — Mas, mudando de assunto… Vocês tem onde passar a noite?
Arien encarou Narael. Narael encarou Arien. Era mais um detalhe que as duas não haviam planejado durante sua fuga; Onde se alojariam? Não tinham dinheiro sequer para comprar petiscos de carne…
— Nós… Não pensamos nisso. — Narael foi obrigada a admitir. — Não temos onde dormir…
— Você não parece muito interessada na minha ajuda… — E Serpente tornou mais um gole de cerveja. — Mas, se te interessar, eu estou em uma estalagem vagabunda cuja diária é duas moedas de prata.
— Não temos duas moedas de prata. — Adiantou-se Arien. — Nós realmente não temos nada.
— Bem, esse é o preço usual… — Serpente sorriu. — Mas, como eu salvei a vida do dono, ele faz de graça para mim. Posso ver se consigo estender o benefício a vocês.
— E se você não conseguir? — Narael era cética.
— Consigo apertá-las no meu quarto até vocês arranjarem um lugar definitivo para ficar. — Respondeu. — Quanto tempo isso irá durar? Duas semanas? Acho que não mais do que isso.
— Por que está nos ajudando? — Rugiu Narael. Serpente sequer as conhecia; Por que estava oferecendo uma vaga em seu quarto para duas estranhas?
— Porque é isso que eu faço. Eu roubo e ajudo as pessoas. — Ela brincou. — Mas e aí? Vão querer a minha ajuda?
Arien encarou Narael com expectativa. A jovem Wuri sabia que, se dependesse da amiga, a ajuda de Serpente seria aceita sem sequer pestanejar. Ela, contudo, não estava convicta de que deveria confiar em alguém que conhecia havia meia hora.
Entretanto, elas não tinham escolha. Era aceitar o auxílio de Serpente ou morrer de frio nas calçadas.
— Nós vamos. — Narael suspirou. — Nos leve ao tal albergue.
Arien sorriu e Serpente tomou mais um gole de cerveja. Parecia já imaginar que Narael se renderia.
— Ótimo. — Ela respondeu. — Assim que terminarmos aqui eu as levo ao meu pequeno recinto. O dono é um senhorzinho simpático, vocês vão gostar dele.
Fim do capítulo
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