Capitulo 5
Capítulo 05
- E essa boca aí ela só trabalha ou também come? Também come? - ouvi ao fundo ele cantando.
- Oi?! - levantei a cabeça para olhar para o Cantão e entender qual a graça da piadinha.
- Você almoçou, Flávia?
- Nem é hora de almoço ainda. Você já vai comer?
- Olha o relógio - falou me olhando com uma expressão irônica e sentando na cadeira que fica de frente comigo. Quando eu olhei entendi toda a piada, já passava das 16 horas. Desde que voltamos do café eu sentei aqui e fiquei trabalhando até agora, sem nem levantar.
- Nem vi a hora passar, sério - ele me retornou com um olhar de “eu sei que não viu o tempo” - Tentei te ligar quando voltei do IML, mas você não estava.
- Eu estava colhendo um depoimento, levou um tempo até fazer o vagabundo abrir a boca. Como foi no IML? O que o Legista falou?
- Como eu e você tínhamos sentido, é quente e grande. Todos os corpos estavam vazios, sem órgão algum.
- Tráfico de órgãos?
- Provavelmente - A excitação dele foi tão grande que ele bateu a mão na mesa, como se tivesse ganhado um prêmio de loteria. - Uma das vítimas não segue o padrão, temos que trabalhar nessa.
- Tá, como vocês chegaram a essa hipótese? - Expliquei cada detalhe que o legista havia me falado, com os detalhes nojentos também.
- Eu gravei toda a conversa, vou mandar pra você. Os corpos ainda estão no sistema para achar a identificação.
- Que linha você acha que devemos seguir? - Ele me perguntou. Em geral, ele já fala diretamente o que o investigador tem que fazer, mas depois desse tempo todo trabalhando juntos, realmente trabalhamos juntos.
- Eu estou aguardando a identificação dos corpos. Já pedi imagens de transito, pensando na desova mais recente. Estou procurando histórico de crimes com as mesmas características para tentar achar algo.
- Não me falou nada - me olhou com uma cara de “tá e aí?!”
- As 4 vítimas padrão não vai dar em nada, ou são pessoas desaparecidas ou alguém que precisava de grana e deu errado a tentativa. Acho que esses são agulha no palheiro. Mas a vítima 3 é diferente, quero a identificação dele e ir partir daí. Esse cara teve problema com alguém, ele mexeu com algo que não poderia, quero começar por ele.
- Ótimo. Levanta também ocorrências hospitalares, roubo a equipamentos, sequestro de profissionais, aliciamento médico.
- Pode deixar - fui anotando as informações conforme ele me falava. Eu sou analogico ainda, uso computador e celular claro, mas me sinto muito mais a vontade com um papel e lápis. Cada coisa que ele falava eu ia escrevendo no caderno que uso para anotações das investigações. - Tudo anotado.
- A Bia foi com você ao IML? Como ela se saiu?
- Foi tranquilo, não mexeu nos corpos porque não precisou, se ofereceu pra tirar foto, fez considerações no momento certo. Ela é uma boa pessoa Gabriel.
- Ela falou de mim? - perguntou baixinho, com vergonha.
- Ela gosta de você. Agora para de frescura que eu não sei qual dos dois é mais tímido. Chama ela logo pra sair, comer alguma coisa.
- Acha que ela iria aceitar?
- Velho, você praticamente chamou ela para ir ao necrotério? Você no mínimo é doente. Convida de boa, você nunca foi de ter medo das coisas.
- Não é medo … - antes de completar eu peguei a fala
- É medo sim. Ela fica toda vermelha quando pergunto de você. E você bobão tá todo tenso aí. Vou ter que fazer o que? Marcar um encontro a três e depois me retirar? Para de ser bocó. E outra coisa, já que entramos no assunto, eu vou ajudar vocês, sem problema algum, mas não vou ficar de leva e traz, de alcoviteira pra ninguém.
- Alcoviteira?
- Você bem sabe o que é, tinder humano, quem junta casais, essas coisas.
- Quem fala alcoviteira Flávia? Que palavra de velho.
- Careta como é, você consegue entender. Todo medroso pra chamar uma mulher pra sair, parece adolescente.
- Hoje você está mais ranzinza que o normal. - Ele soltou, rindo de mim.
- Acho que é fome, não comi nada.
- Não é só fome, eu te conheço e não é de hoje. O que está incomodando? - falou calmo, como amigo - Você quis um caso desses sua carreira toda, agora que chegou sua vez, o que está pegando?
- Eu sempre quis isso, sempre. Mas veio bem agora. Estou em período de prova, estudando pra delegada, cansada, cheia de problemas. Só não precisava de mais um agora, não precisava.
- E se esse “problema” - ele fez aspas com as mãos - foi exatamente o gás que você precisa? Cai de cabeça, aproveita.
- Eu estou cansada Gabs, não tenho mais forças, não sei se aguento mais lutar - acabei me deixando enfraquecer e o olho começou a encher de lágrima.
- Há quantos dias está sem dormir? Não estou falando de cochilar, estou falando de dormir de verdade.
- Sei lá, há uns 7 ou 8 dias.
- Sonhando com ela?
- Sempre. É só eu pegar no sono que eu sonho com ela.
- E o remédio para dormir, você parou de tomar?
- Não vou mais tomar aquilo. Se eu tomo ele, durmo a noite e sou um zumbi de dia.
- E se não toma, não dorme e fica essa laranja azeda - o Cantão completou. - Você precisa de ajuda Flavinha, precisa conseguir seguir em frente. Quando eu falo que você precisa namorar, arrumar uma mulher, eu falo por conta disso. Existe a questão do físico, carnal, claro. Mas você precisa seguir em frente, pensar em outra mulher, se fixar com alguém. Você tem tanto medo de amar de novo que fica pulando de uma em uma. Olha o problema que isso te causa.
Respirei fundo, olhando para o chão. Eu estava fugindo dessa conversa há um bom tempo, mas hoje estou frágil, cansada, não consegui me moldar. Eu não estou mais aguentando segurar essa bomba toda, meu peito dói e doi a todo tempo. Sempre que pego no sono as imagens da Fabi vem a minha mente, ela sorrindo, ela de farda preta, ela rindo de mim ou fogosa. De dia eu me mantenho ocupada, mas a noite, sozinha no escuro do meu quarto, nunca consigo desligar.
- Flavinha, olha tudo que você superou na vida. Faz 3 anos já, você precisa seguir em frente, pela Fabi, na força do ódio. Você está terminando a faculdade de direito, trabalha, conseguiu seu apartamento, não está perdida no mundo como sua irmã. Superou tanto. Não pode deixar a peteca cair, tem que lutar mais um pouco. Chega de serviço por hoje, vai pra casa, toma um remédio e dorme. Não rola faltar na faculdade hoje?
- Eu tenho prova hoje, nem estudei direito. E já faltei ontem também.
- A prova é do que?
- Direito empresarial, falência e recuperação de empresas.
- Puta merd*, não dava pra ser outra matéria não?! Pega aí seu material, vamos revisar alguma coisa, eu faço uma video chamada com a minha mãe, vemos juntos.
- Claro que não, não vai incomodar sua mãe.
- Ela trabalha exatamente com isso.
- Mas não vai incomodar ela. Deixa quieto. Eu vou tomar um banho, comer algo e reviso lá, antes de começar.
- Você quem sabe, se quiser a gente revisa agora.
- Não, eu vou economizar neurônio.
- No final de semana você vai descansar pelo menos? Se você não desligar, vai parar.
- Sábado eu vou ir ver o apartamento e à tarde vou no rugby.
- Ir no rugby não deixa de ser diversão.
- É diversão sim, é um dos momentos que mais me sinto viva, bem. Você deveria ir, sempre perguntam de você lá.
- Ah é, quem pergunta de mim?
- Todo mundo. Os caras perguntam porque querem time, as meninas porque você é o muso delas. Toda semana é um tal de “Cadê aquele seu amigo? O policial” ou “O delegado não vem mais Flavinha?” - falei ironizando a voz, brincando com a cara dele. Eu já estava bem mais calma.
- Assim que der eu vou lá jogar com eles de novo, está corrido agora.
- Para de bobagem, oh aí uma ótima oportunidade, chama a Bia para ir em um treino com vc. Você corre, joga, se machuca, ela vai ficar vendo o machão em ação. Ela vai adorar.
- Você acha?
- Só dei a ideia, mas acho sim. Fica a dica e dica quente Bonitão.
- Ah, e como está o lance do apartamento, deu certo?
- Sim, finalmente. No sábado de manhã eu vou pegar a chave e já posso começar a mobiliar e mexer nele.
- Vai dividir com alguém mesmo?
- Preciso, não vou ter grana para segurar ele todo sozinha.
- Poderia oferecer para Bia um quarto.
- Eu falei com ela hoje mais cedo, na volta do IML. Ela gostou da ideia, mas não sei se chega a ser executável. Talvez ela precise de alguém dando uma forcinha, uma ideia positiva, sabe Cantão.
- Entendi o recado. Entendi.
- Quebra essa, eu adoraria dividir com ela. Ela tem jeito de organizada e calma, só o fato de não ter drogas no apartamento eu já estou bem feliz.
- Eu falo com ela, o que você não pede gritando que não faço sorrindo?
- Eu nem grito, sou totalmente plena. Enquanto você absorve o recado, eu vou indo, vou comer um PF, tomar um litro de energético e rezar pra minha colega nerd sentar ao meu lado para eu não bombar nessa porcaria de prova de hoje. Pegar exame não é uma opção. Pensa em ir sábado no rugby, a Bia vai gostar, mesmo - Enquanto conversamos eu fui desligando o computador e organizando todas as minhas coisas.
- Ah FLávia, eu ouvi uma história - respirou fundo - pelos corredores. Imagino que não seja verdade - falou arrastando a voz.
- Que eu estou namorando a Isa?
- Você também ouviu?
- Ela fez xixi na Bia hoje cedo, por sorte na volta sua musa me contou.
- Mas ela foi mal educada com a Bia ou algo assim?
- A princípio não, ela queria me queimar pra geral. Falou pra Bia nem chegar perto de mim, que eu não respeito ninguém e o mesmo discurso batido de sempre.
- Você vai falar com ela?
- Gabs, ainda não decidi o que fazer. Uma bomba por vez, primeiro comida, depois prova, depois guerra. Até lá deixa o mundo acreditar em qualquer coisa. De todo modo, não tem mulher nova na delegacia mesmo, nada a me preocupar no momento. - Levantei da minha mesa, coloquei minha mochila nas costas, apoiei a mão no ombro dele, dando dois tapinhas de despedida.
- Você vai pra casa? - perguntei ao Cantão.
- Ainda não, uma amiga me chamou pra jantar.
- Uma amiga? A Bia sabe disso?
- É uma amiga, de longa data. Boa prova Flavia, toma o remédio pra dormir hein sapatão?! - falou com o pescoço esticado para trás, como se me olhasse de ponta cabeça.
- Tá. Até amanhã - desci os mesmos três lances de escada e no final do corredor, entrei no vestiário, por sorte e por todas as minhas preces estava vazio. A jogada aqui tem que ser rápida, abri o armário peguei uma muda de roupa normal ou seja, sem ser o uniforme da polícia e coloquei em cima do banco. Dobrei minha calça, coloquei por cima do coturno e joguei minha mochila por cima de tudo. Entrei no box do fundo, que é o que eu prefiro.
Quando falo banho rápido é banho rápido mesmo, nem 5 minutos depois eu já estava seca, de calcinha e sutiã, enrolada na toalha e de frente para o banco onde coloquei as roupas. Coloquei rapidamente a calça preta de sarja, imitando o social e uma camisa social azul clara, acreditam que é uma exigência do curso se vestir esporte fino pelo menos? Abri o armário e peguei a mochila. Enfiei na parte de baixo, um compartimento separado, a toalha molhada do banho. Joguei a mochila nas costas rapidamente e sai do vestiário. Já passava das 17h, horário que a copa fica cheia com cheiro de café novo, o turno do dia se arrumando e o turno da noite chegando, para quem quer fazer um BO o horário é um caos.
Sai tão rápido, fugida que nem peguei um gole de café. Eu escolhi muito bem essa delegacia quando tive a oportunidade, a faculdade fica exatamente a 2 quadras do DP, ou seja nem preciso tirar a moto do estacionamento. Sai andando em direção ao prédio histórico que fica na Consolação, com o celular na mão já estava mandando mensagem para a Ana Lu, minha colega de turma e se eu der sorte hoje, minha salvação na prova.
- Já chegou? Vou passar no bar do sr. Olimpio para almoçar. Passa lá? - digitei no aplicativo de mensagem, que um minuto depois apitou de volta.
- Estou aqui na porta já. Sabia que pessoas normais almoçam ao meio dia?
- Estou atravessando a rua. - Olhei para além da rua da Consolação e consegui ver a cabeça dela levantada, como um suricato me procurando. Atravessei rapidamente e entrei no primeiro bar, logo de esquina, o saudoso buteco do Sr. Olimpio. A Ana estava sentada na mesa que sempre ficamos, assim que entrei ela me olhou rindo.
- Pessoas normais comem ao meio dia.
- Não enche mala, não dei tempo de comer hoje - falei com ela, entrando na brincadeira e sentando. Logo em seguida o próprio sr. Olimpio veio me atender. - Sr. Olimpio, ainda tem um PF aí?
- Meio tarde pra PF, mas vou ver o que os meninos tem lá dentro.
- Quebra essa sr. Olimpio, sabe que só como seu PF né?!
- Até parece, vou fingir que acredito nessa sua cara de pau. Só porque é cliente da casa vou ver o que eu faço pra você. Vai alguma coisa menina? - o senhor bigodudo perguntou a Ana Lu.
- Um café grande Sr. Olimpio. Vê um pão na chapa mal passado também, por favor.
- Fechado meninas. Quebro essas, mas quando precisar de advogado vou chamar vocês - ele continuou falando, na verdade brincando.
- Putz, sr. Olimpio, sabe que eu vou ser delegada. Se der ruim, mando uma viatura, já ajuda.
- Melhor ter amigo na polícia que amigo no camburão. - E saiu rindo, em direção a cozinha.
- Cara, esse velho é maluco.
- Que nada Lu, é nessas brincadeiras que ele ganha os clientes. Na época que eu trabalhava no mercado, quando eu tinha uns 15 anos, o dono era assim também, amarrava a clientela na lábia. Como foi a aula ontem?
- Ah, aula? Avise quando for faltar. Fiquei preocupada.
- Desculpa. Foi muito corrido ontem, não deu pra pegar o celular.
- Até parece Flavia, mentir é feio. Eu gravei a aula depois te mando.
- Obrigada. Sério.
- Obrigada nada, semana que vem eu vou faltar, você assina a lista pra mim e grava as aulas.
- Fechado.
- Porque não comeu? Não dá pra comer na delegacia?
- Cara, o Cantão me enfiou em um caso gigante, passei o dia trabalhando, só percebi que era tarde quando ele me chamou. Se duvidar eu estaria lá ainda.
- Ele não veio junto?
- Porque viria junto? Bebeu?
- Ah só pra eu dar uma olhadinha nele.
- Ah tá?! Até parece que ele ia vir aqui pra você ficar olhando. E vocês já tiveram a chance de vocês. Você que fez doce.
- Hummm
- Para de pensar e me ajuda aí, faz uma revisão rápida da matéria.
- Você não estudou?
- Claro que estudei, sabe que não deixo acumular as coisas, mas eu não consegui fazer a revisão final. Só preciso dar uma retomada rápida.
- Tá bom, tá bom - enquanto o Sr Olimpio entrega nossos pedidos, ela puxou as folhas de resumo da bolsa e começou a dar uma lida rápida pra mim. Ficamos ali na lanchonete quase uma hora, foi o tempo de comermos, mas também o tempo de eu conseguir revisar toda a matéria da prova.
Quando chegamos a sala de aula, eu e a Lu seguimos nossa regra padrão, quem sabe mais a matéria senta na cadeira da frente e quem precisa colar senta na fileira do lado, uma cadeira atrás. Essa técnica permite uma ampla visualização da prova de quem sabe mais, permitindo colar bem a matéria. Somos boas alunas, dedicadas, mas trabalhar e estudar não permite estar completamente em dia com tudo.
Antes mesmo do professor chegar já estávamos posicionadas e prontas para começar a prova. Eu estou bem tranquila para fazer avaliação, mas a Ana Lu perde a linha, fica agitada, tremendo, então nos 20 minutos antes de qualquer coisa do tipo eu deixo ela quietinha, se acalmando. Eu fico de canto mentalmente revisando a matéria. Peguei meu celular e comecei a ler meus resumos, deixo eles no meu email para acessar de qualquer lugar. Estava lendo quando o aparelho apitou na minha mão, olhei rápido, um número desconhecido. Por ser desconhecido, eu não tinha acesso a foto de identificação. Quase que automaticamente cliquei em cima e abri a mensagem, que falava assim:
- Flavinha, tudo bem? Aqui é a Bruna, sabe que Bruna né?! - Seguido de uma figurinha pensativa - Adorei esbarrar novamente com você. Quem sabe não te explico mais sobre café outro dia?! - essa ultima seguida de um gif do Bob esponja tomando café.
Assim que eu li tive uma sensação boa de flerte, de energia positiva. Gostei dela ter mandado a mensagem. Devo ter ficado com um sorriso no rosto, sorriso bobo, porque antes mesmo de eu perceber, a Ana Lu já estava azucrinando minhas emoções.
- Mensagem? Humm. De quem hein Flavinha?!
- Oi?! - A Ana Lu não perde um detalhe de nada, caramba.
- Fala ai, de quem é?! Você nunca fica com essa cara.
- Que cara? Se concentra aí.
- Você ficou sorrindo pro celular. Nunca vi isso….não de você. É mensagem de mulher? - falou em um tom de zombaria
- Boa noite senhores, vamos nos organizar para a prova - fui salva pelo gongo. O professor entrou na sala, vestindo terno. Claro, faculdade de direito sem terno, não é direito, pegou a piadinha?!
A prova estava longa e chata, mas não complexa. O pouco que revisei com a Ana Lu junto com o que já tinha estudado antes deve ter sido o suficiente. Três questões que eu fiquei com dúvida deu pra pegar dela, então na soma deve dar pra segurar um 7. Por ser a última prova do semestre nem preciso de 7, se eu tirar 4 já vai dar certo, mas não gosto de sujar o histórico com nota baixa. Uma hora e pouquinho depois de começarmos, a Lu já tinha concluído a avaliação, deu uma olhadinha rápida pra mim. Eu sacodi a perna em um sinal que nos duas entendemos, é o sinal de "pode ir, já peguei o que precisava". Ela voltou a olhar para frente, organizou seus materiais, levantou e foi entregar a prova. Eu ainda esperei uns minutos, tempo para passar as alternativas a caneta. Quando saí da sala ela estava me esperando fora da sala.
- E aí, foi? - me perguntou assim que sai da sala.
- Sim, menos uma. Esse semestre está me matando, ou ele acaba ou eu acabo.
- Partiu ou você vai querer comer alguma coisa?
- Eu estou bem de boa. Você vai querer carona?
- Sabe que eu aceito. Não vai te atrapalhar/
- Claro que não, te deixo na sua casa, é caminho mesmo. Só que a moto está na frente da delegacia, tudo bem?
- De boa. É o tempo de você me contar sobre a mensagem no seu celular.
- Aff, não esqueceu isso?
- Eu não, Flávia. Só fiz a prova, não tive amnésia. Quem era? Sério, nunca vi você sorrindo pro celular, tirando as mensagens da… - e ficou muda
- Da Fabi?!
- É… Desculpa, eu não…
- Fica tranquila. Não é nada importante não - fomos andando em direção a delegacia enquanto conversávamos - Foi uma menina que conheci ontem.
- Ah, explicado sua falta. Tinha uma mulher no meio, eu sabia.
- Não foi isso. Eu estava morta, passei o dia todo ontem em uma desova, estava cheirando a mato, terra, cadáver. E estava cansada, muito cansada.
- Tá e a menina?
- Quando eu voltei da ocorrência almocei com a Bia, a fotógrafa, sabe?- ela fez uma careta, como se fosse um sinal de que compreendeu mas não gostou - Depois consegui um horário no advogado, pra ver aqueles problemas no documento do apartamento. Aí tudo bem, quando cheguei no prédio do escritório, peguei o elevador de boa, uma menina entrou cheia de papéis na mão.
- E você atacou a coitada? Sua cara fazer isso.
- Eu não faço isso. - A Ana Lu deu quase que uma gargalhada, como se falasse “faz sim”, ignorei a expressão e continuei contando - Eu nem tinha olhado pra ela, so reparei que usava saltos, por causa do barulho que fez quando entrou no elevador. Ela acabou derrubando todos os papéis.
- E você ajudou ela a pegar tudo e já descolou o telefone? Que lindo.
- Vai deixar eu falar ou vai ficar me zuando? Você e o Cantão são o par perfeito, dois tontos.
- Isso eu concordo com você. Continua, não vou te interromper.
- Eu ajudei ela com os papéis, é uma questão de educação. Desci no advogado e fiz tudo que precisava, levei quase uma hora lá com ele, mas deu certo. Quando eu saí ela estava no elevador de novo. Eu cumprimentei, falei boa tarde, normal. Mas reparei que ela estava com uma expressão de choro, uma cara de raiva.
- Humm
- Chamei ela pra tomar um café. Ofereci na verdade. Ela primeiro falou que não poderia ir, ainda estava em horário de serviço. Eu fiquei na minha. Mas aí quando parou o elevador no andar do serviço dela, ela desceu, falou tchau eu falei também. Quando a porta estava fechando ela colocou o braço, falou que aceitava o convite. Pediu pra eu esperar ela pegar a bolsa e tals.
- Ela trabalha com o que?
- Eu não entendi exatamente, acho que ela é jornalista, mas não dessas que sai na rua atrás de coisas pra escrever, ela é mais interna. Não sei explicar. Ai eu fiquei esperando ela pegar a bolsa e tudo mais. Aí fomos tomar um café na rua de trás do advogado, uma paralela com a avenida Paulista.
- E você faltou porque? O café era bom? Tinha alucinógeno?
- Eu fiquei conversando com ela quase umas 2 horas.
- Oi? - acho que a Ana Lu estivesse bebendo algo, tinha engasgado - Você conversando com alguém por mais de 5 minutos?
- Sério Lu, a conversa foi tão leve, tão gostosa.
- Gente, nunca vi você fazendo isso. E aí você pegou o numero dela?
- Não. Só tomei o café mesmo, ela bebeu cerveja, depois acabei oferecendo uma carona pra ela. Ela mora em Santana, era meio que meu caminho, dei uma desviada, mas não atrapalhou tanto.
- Uma desviada monstra Flávia.
- Não me atrasou e foi isso, fiz esse rolê de boa. Sem nenhuma intenção, só para ajudar a menina que estava com cara de choro mesmo. Aí hoje passei a manhã no IML, quando saí de lá chamei a Bia pra tomar um café junto. Fui no mesmo lugar.
- E a menina estava lá?
- Chegou uns 5 minutinhos depois, sentou comigo e com a Bia, conversamos novamente. Aí ela pediu meu telefone, deu em cima. E agora a noite mandou uma mensagem. Só falando que gostou do café, que pode me explicar mais sobre as variedades de café um outro dia. O hobby dela é café e suas variáveis.
- Meio que ela te chamou pra sair, algo assim?
- Pelo que eu entendi sim, nem respondi ainda
- Aff Flávia, responde a menina. Até parece que você deixa alguém passar assim. Achei bonitinho você sorrindo para a mensagem, não vejo isso a muito tempo.
- É um pouco estranho, sempre eu que ataco, que invisto, mando mensagem, peço telefone.
- E será que esse diferente não pode ser bom? Já está na hora Flavinha. Você fica pulando de mulher em mulher, sem se fixar a ninguém, a maior parte do tempo sem nem saber o nome de ninguém. Talvez seja um momento de você repensar e se jogar.
- Que nada, só mandou uma mensagem. Depois eu respondo pra ela, não deve nem ser nada importante.
- Acho que deve responder bonitinho. E outra, às vezes precisa de uma mulher firme, que tome atitude pra você se acalmar e se abrir.
- Eu não tenho tempo pra isso agora, nem quero.
- Flavia, vai esperar até quando? Você merece ser feliz, tem direito disso. A vida segue em frente. Responde a menina. Qual o nome dela?
- Bruna.
- Responde pra Bruna. Salvou pelo menos o número? E outra coisa, não é você que troca meia dúzia de palavras e já sai ficando com alguém? Mal não vai fazer tentar. Quem não garante que ela não está fazendo a mesma coisa? Só trabalhando o meio campo. Mas achei fofo você sorrindo pra mensagem.
- Acho que me assustei, sempre sou eu a ir atrás, nem tinha pedido o número dela. Ela que pegou o meu. Estou bem tranquila, preciso terminar o semestre isso sim.
- Ah Flávia, o semestre vai terminar de todo jeito. Chega de ficar arrumando desculpa esfarrapada, que coisa feia. Cadê sua moto?
- Mais meio quarteirão, está bem em frente ao DP.
- E você deu carona pra ela de moto?
- Dei sim, ela tem uma moto também pelo que entendi. Eu estava sem capacete, ela pegou o dela no escritório.
- Sério Flavinha, talvez seja um bom sinal. Algo pra você seguir em frente. E sem medo - terminou de falar pegando o capacete da minha caixinha da moto e colocando na cabeça.
A Ana Lu mora perto da Freguesia do Ó, como eu moro na Brasilândia, é meio que o mesmo caminho, então sempre que posso dou carona pra ela, em pagamento ela me ajuda a estudar, assina umas listas de presença aqui ou ali. Vamos nos ajudando. Fomos o trajeto todo quase que em silêncio dessa vez, eu realmente estava cansada e pensativa. Acho que vou seguir o conselho do Cantão e tomar um dos remédios de dormir que o psiquiatra receitou, talvez uma noite só não me deixe tão grogue, preciso dormir com qualidade, e quanto mais cansada estou, menos consigo me desligar. Eu costumava dormir bem, mas desde o acidente eu não consigo dormir em paz, já faz 2 anos e meio que isso aconteceu. Acabo sempre tendo algum sonho ruim ou sono agitado.
- Flávia, pode parar por aqui, já está ótimo.
- Te deixo lá na sua casa. Não vai andar esse pedaço todo a pé não. Perigoso aqui, cheio de crackudo.
- Não quero incomodar.
- Não incomoda, sabe disso. Pode desembarcar xuxu, em casa - esperei ela descer da moto, logo em seguida desci. Ela me entregou o capacete, guardei de volta na caixinha.
- Obrigada Flavinha. Suas caronas quebram “mô” galho.
- Relaxa, tá pago com as questões da prova de hoje. Entra lá que ainda tem chão até em casa - Ela sorriu de volta, me deu um abraço de despedida e seguiu em direção ao portão de casa, onde a luz da sala ainda estava acesa. A mãe da Ana Lu espera ela chegar da faculdade todos os dias, acha perigoso as caronas de moto, mas gosta dela chegar mais cedo. Antes dela entrar soltou:
- Responde a menina, para de ser medrosa. Tchau - eu apenas acenei com a cabeça, já com o capacete e ligando a moto. Ela tem bem razão no que fala, ela e o Gabriel na verdade.
Entre a casa da Ana Lu e a minha foram mais uns 15 minutinhos. O porteiro do meu prédio sempre dorme em serviço e como eu chego tarde tenho que buzinar para ele acordar e apertar o botão do portão automático. Estacionei rapidinho minha moto no térreo, na mesma vaga de sempre. Peguei minha mochila na caixinha e prendi o capacete na lateral da moto. Confesso que aos finais de semana morar no 4o. andar é ótimo, considerando o barulho da criançada, mas a meia noite, depois de um dia de trabalho e estudo, quatro andares tem cara de dez. E hoje eu subi os 120 degraus como se alguém me empurasse.
Abri a porta de casa no máximo de silêncio que consegui, não quero acordar minha mãe. O apartamento é tão pequeno que uma agulha caindo já parece um tijolo. Antes de entrar tirei meu sapato, com ele na mão fechei a porta lentamente reduzindo o barulho. Passei pela pequena sala e entrei no meu quarto, que fica na primeira porta à esquerda. Hoje durmo sozinha aqui, mas por muito tempo minha cama era o colchão do chão e a beliche ficava com a Alice e com a Beta, minhas irmãs mais velhas. Deixei minha bolsa encostada na lateral da cama e comecei a tirar a roupa me organizando para tomar banho. Meu quarto não é milimetricamente organizado, nunca consegui esse talento, mas dentro da minha bagunça me organizo bem. Abri minha bolsa retirando a toalha molhada de hoje cedo e a marmita suja do dia, com comida vencida. Nem abri ela. Passei rápido na cozinha, que fica de parede com o banheiro, deixei as coisas por lá e entrei para tomar mais um banho rápido. Meus olhos já estavam pesados, como se um mundo de coisas empurrasse eles para fechar.
A água morna bateu nos meus ombros fazendo eles começarem a relaxar, lentamente. Gradualmente minha respiração foi ficando mais compassada, enquanto fui fazendo exercícios de relaxamento. Meu corpo finalmente foi ficando mais leve, sem barreiras, sem tensão, sem toda a tela de proteção que coloco em mim todos os dias, sem o adrenérgico onde vivo. Não me deixei cair, nem mesmo nos 5 minutos de banho, não posso.
Sequei o corpo rapidamente, com os olhos fechando. Coloquei um pijama leve que gosto de usar, bermudão e uma camiseta amassada, fresquinha. No máximo de silêncio possível, estendi as duas toalhas e lavei a marmita. Eu e a minha mãe criamos algumas regras de facilitação, eu deixo limpinho os potes, aí seguinte quando ela vai jantar, montar uma marmita para eu almoçar no dia seguinte. Voltei para o meu quarto com o meu corpo desejando ardentemente dormir.
Assim que deitei na cama os olhos fecharam, em segundos. E no mesmo segundo pulei da cama, preciso responder a Bruna. Não posso deixar de responder. Vai ser muito chato se eu não responder. Levantei rapidinho, quase que em um pulo. Enfiei a mão dentro da minha mochila, sacudi no meio de um monte de coisa jogada e pesquei meu celular. Abri novamente a mensagem dela, em cima, logo abaixo do nome mostrava que ela estava online.
- Flavinha, tudo bem? Aqui é a Bruna, sabe que Bruna né?! - Seguido de uma figurinha pensativa - Adorei esbarrar novamente com você. Quem sabe não te explico mais sobre café outro dia?! - essa ultima seguida de um gif do Bob esponja tomando café.
Reli a mensagem dela. Acho que acabei sorrindo novamente, de algum modo o sono sumiu por alguns segundos. O que eu respondo? Que gostei de encontrar ela aleatoriamente? Se eu respondo isso vai ser padrão, monótono. Digitei na mensagem “ Oiii Bruna. Claro que eu sei sei quem você é, não esqueceria”. Ai, Que coisa brega, apaguei. Vou tentar escrever novamente “Pode esbarrar sempre, te ajudo com os papéis. Só cuidado pra não esbarrar de salto, pode machucar o tornozelo”. Ai Deus ficou pior que a primeira, apaguei, apaguei correndo. O que eu mando pra essa menina. E porque estou com essa dificuldade? É o sono? Droga.
Enquanto esbravejava de cansaço e de insegurança, meu celular apitou. Abri a tela de imediato.
- Oiii - seguido de um emoji - E essa digitação eterna? - Ela é bem mais rápida e esperta.
- Eu não sabia o que te responder, acho que é o cansaço.
- Só responder se gostou de me ver hoje. E se o café que experimentou hoje estava bom. - Ela facilitou meio mundo pra mim, puxei a primeira mensagem e respondi:
- “Sim, gostei” - a segunda mensagem eu puxei e respondi - Preferi o de caramelo, o havaiano tem gosto de praia
- Quando você quiser, podemos ir em uma cafeteria perto do Anhangabaú. Lá tem muito mais opções, dá pra misturar, um outro mundo.
- Eu aceito sim, como falei só tomo o café preto simples. E o chafé da delegacia. Se você tomar o do DP até desiste de estudar café de tão ruim.
- O da redação é forte que arde os dentes, é feito de grão moído na máquina. Só tomo lá se não der mesmo para sair e pegar outro. Gostei muito de ter ver de novo Flavinha, a conversa é boa.
- Eu estava meio que correndo, você me ajudou a desligar um pouco. E conversar com você é tão fácil. Também gostei de te ver. Me fez bem. Como foi o seu dia Bru?
Ela não respondeu de imediato, meus olhos que já estavam pesados foram fechando, fechando, acabei pegando no sono.
Era uma tarde, provavelmente uma tarde de domingo, eu estava sentada no corredor da casa dela, em um banquinho de tijolo que o pai dela tinha feito. O sol queimava lá em cima, mesmo sendo de tarde. Ela estava em pé, ao lado da porta da sala, o cabelo escuro, cheio de cachinhos, encaracolado, armado com o vento leve que batia. Estava sorrindo, sempre foi uma menina sorridente e que sorriso lindo, acho que a primeira coisa que reparei nela foi o sorriso.
- Flávia, tem pudim de leite. Quer um pedaço? - A mãe dela perguntou, da porta seguinte, a da cozinha.
- Eu aceito dona Arminda. Sabe que não consigo rejeitar o pudim da senhora. - Levantei do banquinho e fui até a cozinha, ela me entregou o pratinho com uma colher. É uma casa bem humilde, na comunidade ao lado do bairro onde eu moro, mas é na casa da Fabi que eu me sinto em família.
- Trabalhou hoje Flávia? - o pai da Fabi, sr. Lucio que perguntou.
- Sim, a academia abre meio período de domingo. Aí esse eu trabalhei, no próximo que é o do concurso fico de folga. Pra poder fazer a prova.
- E você está preparada? Está pronta para a prova?
- Ishi pai, se a Flávia não estiver preparada ninguém está - ela me olhou da porta, ainda sorrindo - deixa de me ver para estudar pro concurso.
- só não estudamos juntas mais porque você já está na academia, já conseguiu sua aprovação amor. Esse é o meu ano. Estou me dedicando Sr. Lucio, vamos ver o que dá. Mas estou confiante.
- Você é dedicada, vai dar certo sim.
- É bom dar certo, daqui a pouco Fabi arruma uma policial lá no treinamento dela e me chuta - falei olhando pra ela em tom de brincadeira, ela mostrou a língua, rindo. O pai dela sempre nos aceitou com facilidade, meio que a regra era: tratando bem minha filha, não tem problema algum.
- Flavia - quando eu olhei de volta pra ela escorria sangue da boca dela, estava vestida toda de preto, de farda. O rosto arranhado e machucado. - Flavia - Ela continuava me chamando enquanto engasgava com sangue da boca.
- Flavia - meu nome veio do corredor, olhei rápido, os pais dela sumiram, não havia mais nada, só uma voz gritando meu nome do portão. Voltei a olhar para a Fabi, não consigo me mexer, tem sangue no chão, não consigo fazer nada, tem sangue em todo lugar, o sangue dela.
Fim do capítulo
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Elliot Hells
Em: 29/10/2023
Começo a pensar nas possiveis teses...
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jakerj2709
Em: 20/01/2023
Autora conta oque aconteceu com a Fabi...
Flavinha tem q superar....
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Marta Andrade dos Santos
Em: 12/10/2022
Acorda Flávia é um sonho muito ruim .
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