Capitulo 4
Capítulo 04
O café que quero ir é o mesmo que acabei indo com a Bruna ontem, ou seja, fica em uma ruinha paralela ao paulista. Se da delegacia até o IML não foram 15 minutos, do IML até o café não deu 10. Eu e a Bia fomos conversando o caminho todo, apesar da questão dos corpos e tudo mais, ela estava bem mais leve, mais calma, como se de alguma maneira essa cena esdrúxula tivesse nos aproximado.
- Como foi ontem no advogado? Conseguiu resolver seu problema? - a Bia puxou o assunto,assim que saímos do IML.
- Até que deu certo cara. Fui lá para ele me ajudar com os documentos do apartamento. Acho que te contei, não contei?!
- Do que? Que tá comprando um apartamento?
- Isso. Aí como não entendo nada de escritura, tenho pouco conhecimento de contrato de venda e tudo mais, um professor da faculdade me indicou esse advogado e eu passei lá para ele me orientar. Ele leu o contrato, pediu alguns documentos. Mas aparentemente já posso fechar o negócio e ter meu espaço.
- Onde é o que você vai pegar?
- É perto do anhangabaú. Um apê mais velho, de uma idosa. Ela está indo para uma casa menor e eu vou ficar com o dela. Não é tão grande assim, dois quartos, uma sala pequena, lavanderia, banheiro, cozinha. O suficiente pra mim por enquanto.
- Suficiente mesmo, não tem porque você nesse momento ter algo muito grande. Não tem filhos, não é casada.
- To bem de boa por enquanto. Vou precisar de alguém para dividir o apartamento comigo.
- Mas já achou alguém?
- Ainda não. Estou esperando eu mobiliar, colocar uma cama, um fogão, sei lá, colocar algumas coisas dentro e vou anunciar lá na faculdade. Sempre tem um calouro perdido que precisa de um quarto para morar.
- Mas aí vai pegar qualquer pessoa? Homem, mulher?
- Ah, não me importo muito não. Eu sou quase um homem, então dividir com um cara não dá ruim. Se for uma mulher aí tem chance de dividirmos o mesmo quarto algumas vezes, então deixo rolar. Não me importo com o gênero.
- Hahaha, você é passa rodo assim mesmo?
- O que você ouviu de mim na delegacia? - fui direta, deu para perceber pelo tom de voz.
- Nada importante Flavia - e olhou pra fora, para a rua.
- Vou te falar o que você ouviu e você depois só concorda ou não, pode ser? - ela voltou a ficar vermelha, agitada e com vergonha da situação - Alguma mulher da delegacia, posso até te citar nomes, deve ter falado para você tomar cuidado comigo. Que eu fico com todo mundo que chega e mesmo que for hetero cai na minha rede. Que eu não poupo ninguém, uso e depois dispenso. Foi isso que ouviu?
- É, mas, hum - ela engasgou para falar.
- Eu não sou assim Bia. Eu respeito as pessoas, dou em cima de todas, isso é um fato, não vou mentir. Mas eu respeito. Primeiro vejo como são as coisas, me aproximo. Se não houver espaço, caminho, eu não insisto. E quando há espaço, eu deixo muito claro todas as cartas, eu não namoro, não quero nada. Gosto do flerte, da pegação inicial. Sempre deixo claro a todas. E antes de qualquer pegação eu valorizo uma amizade. Amigos são o alicerce de qualquer pessoa, nunca vou perder um amigo por uma ficada, uma balada. Eu tenho tanta coisa pra me preocupar. - Não me importo com o que falam de mim, nunca me importei, mas me importo com as amizades, com as pessoas. Percebi que a Bia estava um pouquinho mais travada que o normal quando entrou hoje na 003, achei melhor esclarecer.
- Não me importo com o que falaram de você. Flávia, você sempre me tratou muito bem. Por isso que aquela hora que estávamos conversando, sobre você não me conhecer eu falei que era porque não sou interessante, sou a nerd do fundo do laboratório. Não sou o tipo de mulher que você dá em cima.
- Bia, Bia, sou muito sutil na minha arte. Não te conheço porque nunca te vi até você chegar na delegacia, há uns… sei lá… 4, 5 meses. Eu já dei em cima de você, logo quando chegou.
- Sério?! Eu sou muito desligada.
- Você super encarou como boas vindas e eu percebi que você não gosta do mesmo que eu. Então deixei quieto, não gosto dessa ideia de forçar ninguém a nada.
- Flávia, juro que não percebi - ela estava vermelha, como pela manhã, quando engasgou falando do Cantão.
- Agora chega dessa vergonha toda e de papo cabeça, chegamos no café e você nem percebeu.
- Já chegamos? - O caminho do IML até lá foi bem breve, como viemos batendo papo, ela nem reparou. A conversa foi rápida, mas achei bem importante, não gosto de perder amizades importantes por picuinha. Sou séria o suficiente para cortar esse tipo de coisa. Principalmente da Bia, que tem um jeito inocente, perdido, que precisa de um colo e proteção, sabe?! Sem contar que preciso ajudar o Gabriel a ficar com ela, apesar que os dois bobões estão caidinhos, só não se ligaram que é recíproco. Vou ter que ajudar os dois lesmas.
- Bora dona Bia, tem um café delícia aqui. - Falei isso assim que estacionei a 003, exatamente em frente a cafeteria que a Bruna me apresentou ontem. Segurei bem a arma enquanto saia do carro e dei uma olhada rápida em volta do perímetro. Essas são coisas que com o tempo de experiência aprendemos a fazer, por segurança nossa e dos nossos acompanhantes.
- Eu moro em São Paulo minha vida toda e não conheço o melhor daqui.
- Cola comigo que vai conhecer cada pedaço maneiro - e fomos entrando na lanchonete pequena, mas aconchegante. Assim que pisei dentro do lugar, o cheiro de café adocicado, misturado com o cítrico preencheu minhas narinas e minha boca quase que salivou. Eu realmente gostei do lugar. Mas não posso negar que assim que entrei, olhei na mesa ao fundo, procurando de algum modo a “saltos”, já é a segunda vez hoje que acabo pensando nela e no café.
- Que mesa quer Flávia?
- Qualquer uma. Melhor, pega ali do lado. - a mesa do lado fica mais protegida, reservada. As pessoas entram e seguem em frente, nem percebem que tem essa mesinha escondida de lado.
A Bia foi em direção a mesa que eu comentei e sentou, de costas para a porta. Eu segui mais dois passos e sentei de frente pra ela, olhando para a porta. A mocinha do balcão veio até nós trazendo o cardápio. Antes mesmo de pegarmos, eu já pedi:
- Uma água com gas, por favor. Bem gelada.
- Duas por favor, a minha com gelo e limão - a Bia completou.
- Claro. Mais alguma coisa?
- Vamos escolher um café. Obrigada - a mocinha da lanchonete saiu, retornando ao balcão, enquanto eu e a Bia continuamos a conversa - Tá vendo como você é gente boa? Toma água com gás.
- hahaha. O que?
- O mundo se divide em quem toma água com gás e quem detesta água com gas. Quem gosta de café frio e quem gosta do café queimando a boca. Em geral um namora ou é amigo do outro. O Cantão detesta água com gás, fica a dica aí pra vocês dois.
- Sério?! Ele não toma?
- Não, fala que arde a garganta. Ele é um fresco.
- Não, ele é um fofo. Super atencioso comigo.
- Bia, antes de escolher o café - me inclinei mais sobre a mesa -… porque café é da paz e não da guerra - respirei com calma e olhei plena pra ela - ele tá bem na sua, só cair dentro ou de boca, sei lá.
A Coelho ficou completamente vermelha, não engasgou o que é bom, mas ficou muito vermelha, com um sorriso bobo, toda fofa, envergonhada. Já entendi que ela é assim, tímida, na dela.
- Porque você entrou pra polícia? - ela falou gaguejando, como se faltasse combustível, tentando mudar de assunto.
- Boa técnica Bia, se safou hein?
- Se der certo - sorriu leve.
- Minha história não é muito bonita não Bia, nem interessante.
- Mas estou interessada - a mocinha nos interrompeu para entregar a água. Um copo com gelo e limão para a Coelho e pra mim apenas o copo e a água. Eu prefiro o gargalo, não é bonito, mas é sustentável no sentido de economizar a higiene de um copo. Abri minha garrafa e dei um gole, ao mesmo tempo que fechei meus olhos, buscando saborear aquele momento de plenitude, da sede sendo preenchida e do gás explodindo na minha mucosa, causando pequenas alfinetadas. Quando a água desceu pela garganta, ainda explodindo as pequenas bolinhas, abri os olhos e deixei uma nova onda de ar entrar. A Bia estava na minha frente, com a garrafa ainda fechada, desesperada, rodando o recipiente para os lados, tentando abrir, mas sem sucesso algum.
- Dá aqui, abro pra você.
- Ah, falou a fortona. - apena sorri para ela, confirmando a informação, enquanto que o barulho do gás emanava da garrafa sendo aberta, mas sem espalhar pela mesa. Servi o corpo dela e entreguei.
- Prontinho.
- Obrigada Flavia. Bom ter gente com força na mesa. - e virou o copo, delicadamente, dando apenas um gole e depois afastando-o da boca. Sem colocar o copo na mesa, levou-o a boca pela segunda vez, virando novamente. Afastou ele do rosto e colocou na mesa, eu acompanhei cada movimento dela. Acho um barato ela ficar vermelha, envergonhada a todo momento. - Que linda a blusa dela.
- Blusa de quem?
- Da mocinha que entrou ali, elegante né?! - e apontou educadamente com a cabeça para a menina que havia acabado de entrar na cafeteria. Claro que eu olhei o conjunto completo da obra, mas posso dizer que era uma obra de se perder. A blusa que a Bia falou era uma camisa social, de algum pano que não sei o nome, mas soltinho, leve, rosa pink, elegantissima, completava com uma calça social bege escuro, quase que cinza e claro, um salto alto que deixava seu 1,50m próximo a 1,60m. A princípio não reparei que era a Bruna, mas assim que ela virou o rosto, para olhar algo na porta, eu me perdi na franja bagunçada ela e na expressão de firme, forte. Se já tinha gostado ontem com o jeito cansado e frágil, hoje eu gamei com essa carinha de mandona, que bate a mão na mesa e fala o que quer.
- Conhece? - ouvi de fundo, quase que em outra vida - Conhece Flavia? - A Bia me perguntou, mas não tive condições de responder já que a Bruna havia me visto. Quando me identificou abriu um sorriso foda, verdadeiro, que deixou os olhos castanhos mais abertos, expostos e veio em minha direção. Eu gostaria de ter acesso a câmera daquele lugar pra ver se fiquei com uma expressão de boba ou se mantive séria, mas acho que na verdade eu devo ter me derretido. Não imaginei encontrar ela no café, mesmo sendo o que ela mesmo me apresentou. Veio vindo em minha direção, nos 7 ou 8 passos que separavam a mesa do balcão, quase que desfilando, equilibrada no salto fino, enquanto eu levantei da mesa, usando toda minha destreza para não derrubar nada. Isso tudo aconteceu em segundos, mas pra mim foi bem mais que esse tempo.
- Flavia! Oi! - Se aproximou de mim, passando pela Bia, esticou os braços e me abraçou, como se me conhecesse a anos. Os braços se fecharam em mim, em um abraço firme, sem tapinhas, sem massagem, só abraço. Eu sou bem anti social, tenho dificuldade de falar com as pessoas, até converso, mas só com quem conheço bem, então acabo achando lindo quem tem essa flexibilidade social toda. Acho que quem ficou vermelha agora fui eu, se não foi pelo abraço, foi pela cara de risada que a Bia estava fazendo pra mim enquanto eu abraçava a Bruna.
- Como você está? Não imaginei te encontrar aqui. Esse horário pelo menos. - puxei assunto assim que nos soltamos do abraço e ficamos uma olhando pra outra com aquele sorriso meio bobo, deslocado.
- Não costumo vir cedo, mas precisava dar um tempo da redação, está um caos lá.
- Senta aqui, toma um café com a gente. - olhei para a Bia e a apresentei - Essa é a Bia, trabalha comigo e com o Cantão na delegacia.
- Então você é a Bia? Fotógrafa não é? - Falou puxando uma cadeira e sentando, com as pernas de meio metro cruzadas. Eu claro que sentei também, não nela, óbvio, na cadeira mesmo - O Bibo falou de você.
- Bibo? - a Bia estava perdida.
- É o jeito como a Bruna chama o Gabriel. Eles são amigos de longa data.
- Crescemos juntos, morei um tempo com ele, conversamos esses dias sobre você - o rosto naturalmente tímido da Bia foi ficando com uma expressão de raiva, vermelho, fechado. Eu entendi de primeira era ciúmes do Cantão com a Bruna, minha vontade era gargalhar naquela mesma hora - Ei, calma Bia. Ficou estranho a frase, né?!
- Não, não, não tenho nada a ver com isso - A Bia vermelha, fechada, respondeu. Eu até bebi um gole de água para não rir da cena toda.
- Bia, ele é meu amigo, praticamente um irmão. Crescemos juntos. As mães dele me acolheram quando precisei. Fica tranquila, eu sou bem sapatão. - Esse último trecho ela falou olhando pra mim, abrindo mais sorriso forte, quase que sacana. Eu bebendo água, engoli seco. Claro que eu sabia, óbvio, mas sempre espero uma confirmação. Não esperava ela meiga, carente, como estava ontem, estar tão direta e firme hoje.
- Vou pedir o cardápio, ajuda a gente a escolher algum café diferente - levantei a mão, pedindo-o para a mocinha do bar - Comentei com a Bia que tomei o de baunilha ontem.
- Você gostou?
- Sim, acabamos de sair de uma encrenca que o Sr. Cantão nos enfiou, aí comentei com ela sobre esse lugar. Viemos provar sabores diferentes e esfriar a cachola.
- Aqui é um ótimo lugar. Sempre fujo pra cá quando as coisas complicam no jornal. No que o Bibo enfiou vocês? Invasão a cativeiro? Ele adora essa.
- Nada importante, só que vale um café pra abstração. Um cafézinho sempre vai bem. - consegui me livrar bem, eu e minha língua grande. Não se deve contar nada dos casos a ninguém, muito menos a uma jornalista.
- Você gosta de café como Bia? É Bia de…. Bianca, Beatriz?
- Beatriz. Meus pais nao são muito criativos. Eu só tomo café padrão, preto ou com leite, no máximo com chantilly.
- Então podem provar o de creme brulée. É um pouco mais leve que o de baunilha que você tomou ontem Flávia e tem um gosto de canela ao fundo. - explicou a Bruna, com maestria
- Então estou fora, não gosto de canela - completei
- Aff, que fresca. Vamos ver outro aqui - olhou o cardápio, mas fazendo um charme, me olhava e olhava o cardápio. - Hum, café havaiano. É uma dose de café, batido com leite de coco. É uma delícia.
- Diferente. - olhei para a Bia, tentando trazer ela para a conversa - Vamos pegar um desse de creme brulée pra você e um desse havaiano pra mim? Provo um gole do seu e você do meu.
- Pode ser, eu topo. - ela estava com uma expressão bem mais leve, não tão fechada, mas ainda meio que desconfiada
- E você Bruna, toma o que?
- O meu é um árabe. Ele é bem forte, pra acordar mesmo. Não dormi quase nada essa noite.
Chamei a moça do balcão novamente, informei os três pedidos. A Bruna completou com uma torta da loja, a Bia pediu uma empada. Eu fiquei apenas no café. Agradeci a moça. Dei uma olhada rápida na Bruna, os cabelos dela são da altura do meu, nas costas. Mas enquanto dos meus são lisos pela progressiva, o dela parece um ondulado natural, é castanho, mas com mechas loiras. Seu rosto é bem maquiado, acredito que o cargo dela exija isso. Mas o sorriso é o que completa tudo, é firme, intenso.
- Você já trabalhava com fotografia antes? Antes da polícia - A Bruna tentou puxar conversa com a Bia.
- Sim, eu fazia casamento, batizado, eventos em geral. Até hoje faço, sempre que aperta as contas.
- E já fotografou para jornal?
- Não, eu sou das artes e não das reportagens. Gosto mesmo é de paisagens, pessoas, retratar um momento único e poder replicá-lo, mostrar a todos. Mas infelizmente isso não paga nem o material, quem dirá as contas.
- Os equipamentos são caros mesmo né?!
- Sim, o bom da polícia é que alguns eu recebo, outros eu consigo comprar.
- Tenho uma noção bem por cima, na época da faculdade eu tive aula de fotografia, mas era com o equipamento deles mesmo. E aqui no Brasil tem o equipamento do jornal em si, mas sempre escuto os fotógrafos falando do preço das peças, das lentes.
- Sim, como são equipamentos específicos, o preço é alto - completou a Coelho.
- Quando tiver algum material bom, me procura. Eu que organizo a edição final do domingo, dependendo como for dá pra encaixar.
Fomos interrompidas momentaneamente pela atendente trazendo os três cafés. O da Bruna tinha cheiro de café forte, o da Bia um aroma adocicado, já o meu tinha um cheiro de praia, de férias. Todos bem quente, de queimar a língua. Achei de bom grado esperar o meu dar uma esfriadinha antes de queimar a garganta. Já as meninas foram na caruda, só foram esperar esfriar depois do primeiro gole.
- Não é exatamente artístico, é mais técnico, mas as imagens da Bia me ajudam muito nas investigações. Ela manda muito no que faz. - me enfiei na conversa delas.
- Imagino que seja cheio de regras, maneiras específicas de mostrar cada coisa. O objetivo é descobrir um crime, não pintar uma tela.
- Sim, sim, as vezes eu dou uma fugida do protocolo para ilustrar melhor, mas é sempre um padrão. Você trabalha em um jornal, é isso? - A Bia perguntou.
- Sim e não Bia. Sim eu trabalho em um jornal, mas sou mais uma executiva que uma jornalista em si. Eu gosto mesmo é de ir a campo, meter a cara onde não pode, mexer em vespeiro. Mas aqui eu trabalho mesmo escolhendo layout, tirando no palitinho quem vai publicar hoje ou não. Eu sou uma das editoras do jornal diário, e chefe na edição do domingo.
- Eu sempre pensei em um editor como sendo um velho barbudo, gordinho - completei a conversa. Mas ela claramente não gostou do meu pensamento.
- Em geral é. Na verdade o nosso diretor de redação é assim mesmo, mas o corpo editorial não, o manda chuva é barbudo, o resto é assim como eu. Ou eu sou como o resto, não sei bem. Sou a mais nova desse passeio todo.
- Nunca entrei em uma redação de um jornal, imagino que seja uma gritaria.
- As vezes é Bia. Em dia que algo grande acontece, queda de avião, atentado terrorista, deslizamento de terra, aí é uma zona, sem controle algum. Nos dias normais tem sempre um burburinho ao fundo, mas não chega a ser gritaria. Minha sala fica no fundo, então às vezes o barulho nem chega lá. E eu fico de fone o dia todo mesmo. Gostaram do café?
- Eu achei o meu bem praia, tem um gostinho de férias.
- É o sabor do leite de coco, quando mistura dá essa brisa de verão.
- Café é um hobbie? - continuei conversando
- Eu gosto muito, acabei começando a ler sobre isso. Tem gente que estuda sobre vinho, eu estudo café. Mais como diversão mesmo.
- Eu sempre fiquei tanto no basicão, no preto coado, que não conheço nada. Já tomou todos daqui?
- Já sim. Meu padrinho me trazia aqui quando eu era pequena, uns 13 anos. Acabei criando o hábito de sempre que vinha pro jornal, passava e tomava um café. Meio que ele que me ensinou a gostar do pretinho - quando falou pretinho, olhou mais uma vez pra mim e levantou a sobrancelha, novamente com o sorriso sacana que já havia feito antes. Eu bem entendi a ironia.
- Vou começar a provar esses sabores diferentes. Sempre estou aberta a novas experiências - sorri de volta para a Bruna, com a mesma expressão que havia acabado de lançar. O recado foi bem dado porque o retorno foi um sorriso natural, verdadeiro.
- Uma coisa boa é que você já toma água com gás, é ótimo para limpar o paladar - desviou do assunto facilmente - Eu precisei aprender a tomar, até hoje acho amarga horrível.
O celular dela, em cima da mesa, tocou. Nós três acabamos olhando ao mesmo tempo. Na tela estava escrito “Redação - Mayra”. Ela acenou educadamente a cabeça para eu e a Bia, pegou o celular e levantou da mesa para atendê-lo. Continuei a conversar com a Bia.
- De onde conhece essa doida Flávia?
- Conheci ela ontem Bia. Acabamos vindo tomar um café. É a segunda vez que vejo ela na vida.
- Ela é doida, você sabe né?!
- Porque ela doida?
- Olha o jeito dela, andando de um lado pro outro enquanto fala no celular. E está brigando com alguém. Ela é doida.
- Ela é doida ou você ficou com ciúmes por ela conhecer e ser amiga do Cantão e mais ainda, por ele ter falado de você pra ela?
- Não tem nada a ver com isso Flávia. Nada a ver com isso. Olha aí, ela está voltando. E é doida.
- Me desculpe meninas. Eu vou ter que voltar para o jornal. As impressoras pararam de novo, preciso resolver essa merd*. Só torçam pro meu chefe voltar logo, ou logo virão me buscar em uma viatura da homicídios. - Ela mesmo deu risada sozinha, a Bia me olhou com uma cara de “ eu falei, doida!”.
- Fica tranquila Bru, pode ir lá. Trabalho é trabalho. - Ela pegou a bolsinha, como uma carteira, que estava sobre a mesa.
- Quanto devo Flávia?
- Nada. Fica pelo preço da conversa.
- Você já pagou ontem.
- Depois você me paga um jantar e fica tudo certo - claro que eu não iria perder a chance. Falei isso sorrindo na caruda, vai que cola.
- Fechado. Não quer me passar seu numero? Para vermos esse jantar aí, sabe, não gosto de dever nada. - Gosto assim, direta, são as mais fáceis de desapegar depois ou melhor, são as que não se apegam.
- Claro. Anota aí. - fui ditando o número para a Bruna, enquanto ela anotava dava para ver ao fundo a Bia fazendo uma cara de deboche, apenas assistindo a cena.
- Prontinho Flávia. Número anotado. Eu preciso ir antes que a edição atrase e a Mayra tenha um infarto. Adorei te ver de novo, sério - Esticou os braços em minha direção para um abraço de despedida. Eu claramente deu espaço e retribui, enlaçando o tronco dela. Novamente um abraço firme, forte. Eu adorei. Assim que nos soltamos ela sorriu pra mim, leve, quase que em agradecimento.
- Até mais Bia. - Se aproximou dela, não houve abraços, houve um sorriso educado seguido daquelas trocas de beijinhos na bochecha. Antes de sair da lanchonete, a Bruna olhou mais uma vez pra mim, sorrindo, com os olhos abertos, leves. Eu retribui, sorrindo e ficando em pé até ela sair do local, quando voltei a sentar na cadeira. Na minha frente a Bia estava com a caneca de café na boca, apenas me acompanhando com os olhos.
- O que foi?
- Nada! - falou afastando a caneca, claramente rindo com o olhar
- Qual a palhaçada Bia?
- Essa sua cara de bobona, sorrindo e acompanhando a doida.
- Ela me deu mole, não perco ninguém. Retribui só - respondi com uma cara de desentendida, virando minha xícara de uma vez.
- Percebi, até rolou uma troca de telefone. Pegou o dela pelo menos?
- Vou ter se ela mandar alguma coisa. E se mandar significa que tá na minha.
- Se é só para uma ou duas vezes, como você tinha falado, porque esse trabalho todo?
- Porque é disso que eu gosto, do flerte, da pegação, do explorar. Quando começa a ficar sério eu dou uns perdidos.
- Tá, agora uma segunda pergunta.
- Manda.
- Como fica a Isa nessa história toda, é um relacionamento aberto?
- Que Isa? - eu sei bem de quem ela está falando, quase cuspi o último gole de café.
- A Isa da delegacia.
- Ela que falou com você hoje cedo não foi?
- Sim - a Bia percebeu minha mudança abrupta de humor, falou um sim quase que com medo.
- Se eu soubesse o problema que ela seria na minha vida, eu nunca teria ficado com ela. Eu não tenho nada com a Isa, ficamos um tempo, agora ela não larga do meu pé. E você Bia, para de acreditar facilmente no que as pessoas falam, isso não é bom. - falei bem irritada
- Não acreditei, só estou conversando. Desculpa.
- Não acredito que a Isabela foi falar com você. Juro que não acredito. Que merd*. - estiquei a mão para a mocinha do atendimento, me mantendo em silêncio, com uma raiva que não cabia em mim. Assim que ela chegou pedi mais uma água com gás. Perguntei se a Bia queria mais alguma coisa, ela respondeu que não - Fecha a conta por favor.
- Flavia, desculpa. Não deveria ter contado, tocado nesse assunto com você.
- Bia, eu que peço desculpas - passei do limite de bobeira, tentei usar uma voz bem calma para falar com ela - você fez bem em ter me contado. Eu estou muito puta, mesmo, mas não é por você ter me contado e sim pelo que ela fez, pelo que está falando de mim e por ter te abordado. Desculpa ok?!
- Tudo bem.
- Vou pagar a conta e voltamos pra delegacia, já deu nosso tempo. Hoje está sendo um dia bem pesado.
- Quanto devo Flávia?
- Fica pelo preço da conversa. - fui até o caixa e paguei a conta, peguei umas balinhas para a garganta e retornei em direção a mesa. A Bia não estava mais lá, olhei para fora da lanchonete. Ela já estava em pé, encostada na 003, me esperando. Observei ela de longe, estava fechada novamente, olhando para o chão, com uma expressão triste. - Partiu Bia só Bia, uma balinha para adoçar a alma, entra aí na minha limusine.
- Flavia, sério, desculpa - soltou mais uma vez assim que entrou na viatura, sem nem rir da minha piadinha ridícula.
- Bia, já foi, eu sou estressada. Estou preocupada com esse caso, fui eu que errei ali dentro. Pode ficar tranquila, está tudo bem. - sorri de volta, tentando passar uma calma e plenitude para ela. Encostei a mão em seu ombro, perguntando indiretamente se estava tudo bem depois da conversa. Recebi um sorriso envergonhado de volta, mas recebi - Bia, agora pega aí meu celular, poe uma musica legal até chegarmos no DP. Deixo você escolher o que quiser.
Chegamos ao DP depois das 11 horas, aquele lugar já estava uma bagunça que só. Estacionei a 003 em frente, já que a lateral estava lotada de carro de pessoas que aguardavam algo na delegacia.
- Bia, vou pegar um café aqui na copa. Quer um?
- Não Flavinha, acabei de tomar café. Acho que você também.
- Café nunca é demais - aproveitei que o lugar estava praticamente vazio de funcionários - Obrigada por ter ido comigo lá no IML, é um lugar bem desagradável, você ajudou bastante.
- Não fiz nada. Só acompanhei.
- Só por me acompanhar já me ajudou muito. Obrigada mesmo.
- Que nada, sempre que quiser meu apoio moral para mexer em morto, só me chamar.
- Hahaha, acredite que chamo mesmo. E desculpa pelo meu surto.
- Nem lembro mais Flávia. Qualquer coisa, estou no laboratório.
- Ok. Obrigada. - esperei ela seguir pelo corredor e entrei na copa, enchi mais uma vez minha caneca com café, dessa vez já estava quase frio. A copa estava vazia, raridade para o horário. Bebi um gole lá mesmo e depois subi os três lances de escada até a sala dos investigadores onde fica a minha mesa. Assim que sentei, antes mesmo de tirar a arma, peguei o telefone e disquei para a sala do Cantão, precisava conversar com ele sobre o legista. Sem sucesso.
Em geral quem dá as instruções dos próximos passos das investigações é o delegado, mas na falta dele e como já sei muito bem como a banda toca, comecei por conta própria. Se pensar que a vítima mais “recente” tem por volta de 2 semanas, preciso de imagens de trânsito da região da desova desse período para trás, o que vai consumir horas vendo fitas de trânsito. Puxei meu computador e comecei solicitando essas imagens. Quase uma hora depois todos os formulários estavam preenchidos.
Assim que terminei isso comecei um outro processo, não tão chato quanto, mas que requer uma atenção minuciosa. Com o computador ligado, entrei no sistema de registros da polícia, que armazena dados sobres os foragidos, detidos, soltos. Preciso achar rostos prováveis, pessoas a procurar nas imagens de transito. Digitei tráfico de órgãos, considerando o período dos últimos 10 anos, serão mais de 1000 processos e ocorrências para eu ler e pesquisar. Uma delícia, sendo bem irônica na consideração. Abri a gaveta na lateral da escrivaninha e puxei um caderno que lá estava, abri, na primeira página limpa escrevi no número da atual investigação e a cada leitura de ocorrência, anoto itens consideráveis. Esse trabalho inicial é bem massante, mas confesso que são as pecinhas iniciais de todo o quebra-cabeça e é essa montagem toda que me encanta, a maneira como os pontos se ligam e chegamos a um resultado, em geral, impactante.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Sem cadastro
Em: 21/03/2023
Estou shippando a Flávia com a Bia e a Bruna ao mesmo tempo kkk
Elliot Hells
Em: 29/10/2023
kkkkkkkkkkkkkkkk - eu te entendo!
a vida é para se aproveitar... trisal? podemos, a vida é bela!
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]