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ACONTECIMENTOS PREMEDITADOS por Nathy_milk

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Palavras: 8111
Acessos: 2059   |  Postado em: 27/09/2022

Capitulo 3

Capítulo 03


          Estávamos na academia do Formiga, onde nos conhecemos. Ela desceu a escada, com a calça legging coladíssima e a camiseta preta da polícia. Porque está na academia com a roupa da polícia? Abriu um sorriso de me fazer perder a linha. Sai de trás do balcão e fui em direção a escada, esperar ela descer. Quero beija-la, quero seu calor. 

           Ela desceu lentamente, com seu gingado, rebol*ndo e me olhando, firme e certeiro, como sempre fez. Desceu o último degrau sem nenhuma palavra, segurou minha mão direita e encostou na parede. É o sinal de que está pronta e quer. Aproximei meu corpo do dela, passei a mão esquerda por sua cintura, estreitando os espaços. O nariz foi para o pescoço. Seu cheiro refrescante de maracujá é inconfundível. A mão direita foi para sua nuca, amaciar seus cabelos. Minha perna encostou entre as dela. 

          Subi o rosto procurando sua boca. Lábios, mordida sútil em cima, gosto de sangue. Dei um passo para trás, da boca dela estava saindo muito sangue, ela está engasgando com sangue, tentando respirar sem consegui. Alguém faz algo, alguma coisa.

         Quando a luz bateu forte no meu rosto, me arrependi por não ter tomado um remédio para dormir. Ontem eu estava tão cansada da ocorrência que mais uma vez não consegui dormir e o pouco que dormi foi tendo lembranças dela, sonhando com ela, na verdade tendo pesadelo. Bati o olho no relógio e vi que marcava 5:40, se quero que o dia seja produtivo, melhor eu levantar.

A rotina matinal é sempre a mesma, hoje como não recebi nenhum chamado pude levantar um pouco mais calma, tomar um café completo, apesar de que comer pela manhã não fazer o meu estilo. Antes de eu sair, minha mãe já estava pronta, então aproveitei o caminho e dei uma carona pra ela até o serviço, onde ela é copeira de uma empresa de tecnologia. Nunca faltou nada, mas a vida sempre foi bem dura pra nós duas, principalmente pra ela. 

A rotina do meu dia inclui antes de chegar na delegacia, passar na academia para um treino rápido. O concurso de delegado exige teste físico, então se eu quero melhorar de cargo e de vida, preciso investir um pouco mais agora. Acabei economizando tanto desde que comecei a trabalhar com 14 anos, de jovem aprendiz, que hoje finalmente estou começando a ver os benefícios desse esforço. O meu treino é bem pesado, mas rápido. Eu uso a academia como uma válvula de escape, meu mundo, meu espaço. Não vou pra lá para arrumar namorada, bem longe de mim isso, mas gosto de  investir nos flertes, quem sabe uma olhadinha aqui, uma ali, não me rende uma pegação de momento? Como já devem ter percebido eu sou fechada, marrenta, mas adoro soltar uns olhares por aí, só por diversão. 

O caminho entre a academia e a delegacia é realmente bem curto, muitas vezes faço a pé mesmo, mas quando estou de moto é melhor estacionar lá no DP, mais seguro, digamos que não é muito inteligente assaltar na frente de um estabelecimento de defesa pública. Para muitos entrar em um delegacia, mesmo que para um simples BO, é assustador, desconfortável, mas eu depois de tantos anos nessa labuta, me sinto em paz com o cheiro de prédio velho e de papel esperando ser lido. Assim que cheguei fui direto ao vestiário, mesmo eu tendo tomado banho e colocado a roupa de trabalho lá na academia, passei para dar aquela acertada e guardar minha mochila. Se tudo der certo, hoje eu fico aqui dentro analisando as fotos dos casos antigos e da desova de ontem, tenho muito trabalho para fazer. Larguei a mochila no armário, tirei apenas a marmita, que vou passar na copa para deixar, amarrei o cabelo e segui meu caminho. O dia já começou e será bem longo. 

- Bom dia, bom dia. - Sempre que chego na copa eu já entro falando generalizado, tentando não esquecer de ninguém. Os agentes que ficam lá nesse horário em geral são os viciados em café, ou seja, o meu time. 

- Flávia, pega café. Tá fresquinho. 

- Opa, aí eu curto, vou pegar um e subir. Tenho tanto papel para arrumar hoje, que nem te conto. - respondi para a senhora que faz o cafe. 

- Como tá a faculdade? - um outro agente, sentado na mesa, lançou, puxando conversa.

- Ah, tá bem corrido Souza. Agora no final de semestre aperta bem, mas dá pra levar. 

- Isso aí menina, segura as pontas, logo acaba. - Eu sou de falar muito pouco, tenho essa dificuldade, então sempre acabo com essas conversas sem sentido e sem importância alguma. Enchi minha caneca de café, coloquei algumas gotas de adoçante e sentindo o aroma de café bem passado, subi três lances de escada. A parte administrativa fica no terceiro andar do prédio histórico. Todo o contingente fica dividido em algumas salas, o pessoal da fotografia tem o laboratório, o investigativo uma salinha com computadores, o delegado tem uma sala separada e assim nos organizamos, mas em geral esse horario da manha é uma zona absurda, que parece uma escola infantil. 

Quando eu avistei a minha mesa, cheia de papéis empilhados, eu relaxei, não sei se pelo ambiente familiar ou de desespero. Coloquei a xícara de café em cima do porta copo e puxei a cadeira. Enquanto eu sentava, o computador foi sendo ligado. Respirei fundo, quase que como um exercício de meditação. Meu pensamento se perdeu, para onde eu nem esperava. Automaticamente fui levada ao café de ontem a tarde, o sabor de baunilha preencheu novamente minhas papilas, o rosto dela foi aparecendo ao fundo, caramba, que conversa gostosa que rolou. É muito difícil eu falar com quem desconheço e mais ainda me soltar a esse nível. O rosto dela ficando levemente vermelho depois de cada copo gelado de cerveja. 

- Flávia! - voltei em um pulo para a delegacia, sem nunca ter saído fisicamente.- Onde você estava? Te chamei umas 4 vezes - a Bia, toda tímida, rindo da minha cara de fora de foco.

- Nossa, nem sei cara. “Tava” tão longe. - ela ainda rindo de mim, ficou na frente da minha mesa, cheia de pastas e papeis na mão. Levantei ainda perdida, eu não tinha nem cumprimentado a menina, mais que coisa feia, fui até ela - Bom dia. -  dei um abraço nela e um beijinho no rosto. Voltei para o meu lado da mesa e sentei. 

- Estava pensando no que? 

- Ah, nada não Bia, eu tomei um café de baunilha ontem. Curti muito, tava lembrando do sabor. Você toma esses cafés diferentões? Eu nunca tinha tomado.

- Eu também nunca tomei, bom? Eu só tomo o café preto simples mesmo. 

- Diferente, mas um diferente bom. Parecia um café com chantilly, mas sem o chantilly. Depois vou descolar um aqui perto, pra irmos tomar. E você, tá bonita! Fica bem de maquiagem - fica mesmo diga-se de passagem. O rosto tímido dela estava diferente com lápis, rimel e um batom leve, roseo. Deu um ar de maturidade que ela ainda não deve ter no ápice de seus 26 anos. 

- Ficou bom? - ela ficou super vermelha quando percebeu que elogiei. Ela é muito tímida, confesso que acho fofo e bonitinho. 

- Claro que ficou, te deu um ar de maturidade.

- Não passo maquiagem quase, não é minha praia. 

- Pode passar, ficou bem bonito. E outra, se está se sentindo bem é o que importa. 

- Primeira pessoa que não perguntou se passei por causa de algum menino. Todo mundo perguntando se eu ia ter encontro, sair. 

- É que eu sou da ideia que tem que usar maquiagem pra se sentir bem consigo mesma. Independente de um cara ou uma mulher na jogada. Então, na somatória, você ficou bem bonita. E acho que mesmo que passe maquiagem por alguém, nunca é pelo outro, é na verdade pra você se sentir bem consigo mesmo e assim chamar a atenção do outro. Aff, enfim, esquece, falo demais.

- Claro que não Flávia, eu gostei do seu ponto de vista. Sério. 

- Bia, queria te falar um lance sério - olhei bem fechada pra ela, bem intensa. Ela fez uma carinha de assustada. 

- Eu já trouxe as fotos, está tudo aqui. - esticando as pastas, tentando se justificar de alguma falta

- Hahahaha, não é isso, isso é bom, mas não é isso.

- O que é?

            - Você vai almoçar comigo de novo hoje, nada de ficar o dia todo no laboratório.

      - Não Flávia, não quero ficar te incomodando, como lá no laboratório. 

- Ah Bia, para com isso, sei que sou séria e assusto um pouquinho. Mas não quero você enfiada no laboratório o tempo todo. E deixa eu ver essas fotos aí, nada mais divertido que foto de morto, logo cedo - falei em um tom bem irônico. Ela acabou concordando com a cabeça e rindo. Ela me esticou uma pasta por vez, explicando.

- Como são cinco vítimas, eu separei uma pasta por cada corpo. E cada foto está marcada com a cor correspondente a pasta, para facilitar sua organização. Assim, quando as imagens se misturarem, você não confunde de qual corpo é cada uma. 

- Como assim você organizou as imagens? Me lembra de trabalhar mais com você, isso vai me facilitar muito. Mandou bem Bia. - eu realmente adorei a forma de organização dela, e mais ainda de ver ela toda perdida com o elogio que eu fiz, ficou com o rosto vermelho.

- Ah, é que uma vez ouvi você dizendo que prefere quando está organizado. Não tem porque não facilitar. Eu estou entrando para a equipe, preciso fazer certinho para me encaixar com vocês. 

- Vai me facilitar muito mesmo - falei longe, abrindo a pasta amarela, onde tinha a primeira vítima que achamos ontem. Assim que bati o olho, o adesivo, o durex cinza no abdome me chamou a atenção mais uma vez. Fiquei olhando fixo pra ele, pensando em detalhes, procurando. 

- Eu vou indo então Flávia, Flávia. Vou deixar você trabalhar -  ouvi quase que em outro planeta ela falando, mas na hora retornei à delegacia. 

- Você tem alguma coisa agora? Senta aqui comigo, vamos ver essas fotos. Em geral os fotógrafos pegam detalhes que eu perco. Vem cá. - Levantei rapidamente e fui até a mesa ao lado, peguei uma cadeira pra ela, coloquei ao meu lado. Dei dois tapinhas na cadeira, enquanto eu falei: Vem, senta aqui.

Ela abriu um sorriso perdido, mas de que gostou de poder ajudar. Sentou rapidamente  e se aproximou  da mesa, olhando firme para a foto enquanto eu retornava mentalmente ao descampado de ontem. 

- Você viu algum detalhe? - me perguntou.

- Não. Eu estou encucada com essa fita. Os 5 corpos tinham essa fita ou na barriga ou na cova. Vou precisar ver se é alguma fita especial, alguma marca específica. 

- Não entendo muito, mas parece um durex firme, coisa de usar em casa. 

- Também me parece isso, mas porque na barriga? É um padrão. 

- Acha que é algo em série? - indagou novamente

- Não, não tem um padrão além da fita. Assassinos em série são cautelosos, limpos. - abri uma das outras pastas -  olha esse corpo, está todo sujo de sangue. Não descarto, mas não tem cara de ser “serial”. 

- Você encontrou algum detalhe enquanto preparava as fotos?

- Não analisei, só preparei as fotos mesmo. Uma das covas tinha arranhões, como se alguém tivesse cavucado. 

- Qual? Eu não vi isso!

- Eu estava com o Cantão nessa, foi a segunda a ser encontrada. Você estava analisando a primeira. 

- Humm, deve ter sido por isso que não vi. Primeira coisa agora é analisar os detalhes mínimos dessas fotos e esperar o legista liberar o laudo. Se você lembrar de algo específico da cena você me fala. 

- Claro te dou um toque, mas confesso que não reparei muito nas coisas. Ninguém nunca pede a opinião do fotógrafo, fiz só o trabalho de imagem mesmo. 

- Tudo bem, mesmo você não tendo olhado desse jeito, você estava lá, sentiu o clima. Se lembrar de algo você me conta - falei manso com ela, quase que em um flerte, na verdade eu joguei um charme profissional - Eu gosto de analisar as imagens com os fotógrafos, vocês são muito detalhistas. Nada melhor que 4 olhos para achar uma agulha no palheiro. 

- Ah, fico feliz em ajudar. Na próxima eu fico mais de olho, ninguém nunca me pediu ajuda com isso. 

- Não Bia, não é uma obrigação nem nada. Eu que gosto de trabalhar assim, cada pessoa tem seu olhar, mas juntos  são conectados. Esquece, acordei com chá de filosofia, só pode. Você contou pro Gabriel desses arranhões? Ele vai gostar de ouvir. 

Quando eu perguntei isso, se ela falou com o Cantão, a menina ficou vermelha, mas não foi coradinha, foi vermelha que parecia que ia ter um treco. Pra completar a cena, ela esbarrou na minha caneca de café, por sorte eu segurei bem a tempo. Mas gente, pra que essa emoção toda? Pensando bem, faz muito sentido, ontem ele deu carona pra ela ir na ocorrência, buscou em casa, hoje ela está maquiada, como não percebi antes?!

- Calma Bia. Só perguntei.

- Falei, Falei. Mas não to passando por cima de você não, só comentei. - encostei minha mão na mão dela, tentando acalmar de alguma forma.

- Calma, não tem problema ter falado com ele, jamais. Ele gosta de ouvir as informações importantes, ele quer fechar o caso, só isso. Ainda bem que você comentou. Calma, vou pegar uma água pra você - Até levantei, tadinha, ela estava com vergonha da situação, de ter falo, de ter derrubado meu café, ela é tão tímida que se perdeu em uma reação boba. Voltei com uma água fresquinha, entreguei na mão dela - Bebe um pouco, e respira menina. Está tudo bem. 

Enquanto ela bebia e a cor começava lentamente a sumir, eu fiquei sorrindo para a Bia, tentando de alguma forma acalmá-la. Ela realmente é muito tímida, mas pra mim tem algo a mais, um trauma antigo, algum medo diferente, não sei bem, mas tem. 

- Acho melhor eu voltar para o estúdio. Já causei muito aqui - estava um pouco mais leve, até brincou - tenho umas outras fotos para organizar ainda. 

- Tudo bem Bia, vai lá. Se lembrar de algo me conta, por favor. 

- Sim sim.- e foi saindo. Fica como nota mental não perguntar mais pra ela sobre o Gabriel ou perguntar mais, ainda não decidi. 

Voltei para as pastas das vítimas que estavam na minha frente. Abri cada uma e peguei a foto principal, espalhei pela mesa. Uma por uma fui varrendo cada detalhe e fazendo anotações. As covas aparentam a mesma profundidade, o que faz pensar que foram cavadas pela mesma pessoa. As vítimas masculinas tem cerca de 30,35 anos, porque? Se uma das valas estava arranhada é porque a vítima estava viva quando foi colocada lá, mas o que leva alguém a ser enterrado vivo? Fui anotando as perguntas e os detalhes de cada corpo, a roupa, as características da vítima. 

- Oh Flávia, o Cantão te chamou lá! - Quase que me assustei, estava concentrada nas fotos, quando um colega passou e me avisou que o Gabriel queria me ver. 

- Obrigada Freitas, já vou lá - enfiei as fotos nas respectivas pastas e levantei. A organização da Bia acelerou bem esse momento. Levantei da minha mesa, peguei minha caneca de café já vazia. A sala dos delegados fica no mesmo andar que o resto do contingente, mas no fundo, como se em uma área reservada, mais arejada, mais limpa e silenciosa. Bati uma vez na porta, chamando a atenção dele, que estava lendo algo, concentrado. Acenou com a mão pra eu entrar. 

- Bom dia bonitão. Tá até com uma cara melhor. Dormiu? - Ele levantou da cadeira e veio me cumprimentar. Me deu um abraço e retornou a cadeira. 

- Apaguei quando cheguei em casa, tomei um banho e morri. Só acordei a noite quando minhas mães chegaram. Depois comi e morri novamente. 

- Você está bem melhor mesmo, até parece gente. O Freitas mandou eu vir aqui, que você estava me chamando. 

- Claro que chamei sapatão! Viu as fotos de ontem?

- Suas mães sabem que você me chama de sapatão? O que elas acham disso? - falei séria, mas em tom de brincadeira, sempre dei essa liberdade a ele, como parceiros e amigos que somos.

- “Ce é doido”, se minhas mães descobrem isso eu to morto. A Marta vai dar risada e falar que tudo bem, mas que eu não posso denegrir ninguém pela minha própria vontade e todo aquele discurso do politicamente correto que você bem sabe. A Cláudia iria me deserdar, vai jogar na minha cara -  começou a imitar a voz da mãe- “Onde já se viu ser mal educado com alguém, apenas sapatão pode chamar outra de sapatão e bla bla bla”. Elas nem sonhem com isso. Elas sempre perguntam de você. 

- Eu bem preciso ir na sua casa, fazer uma visita a elas. Gostei muito quando fui lá, elas são super “prafrentex”.

- São sim, aproveitam os filhos grande pra sairem por ai curtindo a vida. 

- Quero ser uma sapatão velha assim. Feliz e contente pela rua, com a minha camisa xadrez. 

- Pra isso tem que deixar de ser rabugenta agora Flávia. Arrumar alguem que te faça bem.

- Aff, lá vai começar o disco riscado do Cantão. To bem de boa nisso. Vamos ao que interessa, porque me chamou?

- Porque sou seu chefe e gosto de te encher o saco. 

- Aí que bicho besta. 

- O legista acabou de me ligar, ele precisa de um investigador, para ele mostrar algumas coisas dos corpos de ontem. 

- Um investigador? Normalmente ele chama um delegado. 

- Sim, ele me chamou, mas estou com várias ocorrências para registrar. Não posso sair da delegacia agora. Falei que vou mandar você. Tudo bem?

- Sério que tenho que ir? Aquele lugar deixa um cheiro horrível no corpo. 

- Ai Flávia, para de frescura. Precisa ir lá falar com ele. E leva a Bia junto. 

- A Bia? Porque eu preciso de uma fotógrafa junto? Não é só para falar com o cara? 

- Vai que precisa fotografar alguma coisa. - ele completou com uma cara de cão pidão. 

- É só levar ela Gabriel? Ou tenho alguma missão a mais? - eu já entendi bem a jogada. 

- Ah, só levar ela Flavinha.  -  respirou fundo e olhou pra baixo -  talvez falar bem de mim um pouco. 

- Fazer o que? - ele falou tão baixinho que eu quis provocar. 

- Falar bem de mim, faz uma propaganda legal pra ela. - falou todo sem graça, quase completamente sem a capa de delegado. Com o rosto rosa quase. 

- Só pela timidez eu garanto que formam um casal, bem encaixado. Ela me levou as fotos da desova de ontem, aí chamei ela pra analisar junto e tals, como sempre faço. Quando entrei no assunto Delegado Cantão, a menina ficou roxa de tanta vergonha, toda vermelha. 

- Ela é linda toda tímida não é?!

- Você tá mais tímido que ela! Olha essa sua cara de bobão! Vê se toma jeito. 

- Não é porque a senhorita mau humor não quer nada com ninguem, que eu não posso conhecer alguém. 

- Claro que pode. Ainda mais ela. Eu tenho uma sensação de que ela precisa contar algo, tipo que precisa viver, desabrochar. Não sei explicar. Só que falta algo. 

- Eu acho ela só muito tímida, muito guardada na dela. 

- É um pouco de timidez excessiva, enfim, não sei. Olha, eu vou te dar uma ajuda, mas você vai ser gente boa com ela. Se eu souber que forçou qualquer barra eu deixo de ser a Flavinha e me torno a investigadora. E você bem sabe que não sou gentil. 

- E desde quando sou homem que força barra?

- Não é, mas sempre vale o recado. 

- Para com isso Flávia, sou bem gente boa - deu uma risadinha - até você cai no meu charme se eu quiser. 

- Aff, hetero top sendo hetero top. Vou te ignorar e trabalhar. Depois quero falar com você das imagens da desova. Ainda não analisei tudo, claro, mas tem coisas importantes. 

- Viu a cova arranhada Flávia? 

- A sua musa Bia que me falou, eu não tinha visto. Acho que o caminho vai ser esse corpo, é o único que deve ter sido enterrado vivo e deve ter um motivo pra isso. Acha que aquele durex gigante da barriga é algo especial? Ou só um durex normal, que vende em depósito?

- Aparenta ser bem basicão, de depósito, que qualquer um compra. Mas acho válido uma perícia nele, vai que aparece algo a mais. 

- Sim, pensei nisso também. Eu vou indo, vou pegar uma viatura pra ir, ok? Não vou levar a Bia na minha moto. 

- Claro que não Flávia - ele quase pulou da mesa - vai matar ela na sua moto, você dirige igual um cachorro louco. Sem moto, pega a 003, já voltou do mecânico. Devolve ela inteira.

- A Bia?

- A Bia e a viatura. Quando voltar passa aqui ok?

- Sim chefe. Deixa comigo - soltei um sorrisinho zueira com ele e sai. Voltei rapidamente para a minha mesa. Repassei a organização das fotos e coloquei tudo dentro da pasta. Coloquei  o distintivo no peito e peguei a arma que estava na gaveta, posicionei o coldre na perna e ela no coldre. Pronta para passear. 

Segui pelo corredor, mas em vez de ir reto até a sala do Cantão, virei a direita para chegar no estúdio. Uma janela de vidro mostrava a equipe lá dentro, trabalhando. Dei uma olhada rápida, a Bia estava lá no fundo, no computador dela, com o fone de ouvido. Entrei devagar, acenei aos outros 2 peritos que estavam na sala. Cheguei pertinho dela e coloquei a mão no ombro, delicadamente para chamá-la. 

Quando encostei a mão, ela deu um pulo, acho que tomou um susto gigante. A mão dela foi automaticamente ao peito como se tentasse acalmar algo. O olhar era completamente de medo e pânico. 

- Desculpa Bia, sério, mil desculpas. Não quis te assustar -  todos da sala olhavam para a gente. 

- Não, não, fui eu, tava distraída - falou ofegante, ela realmente se assustou.

- Vou pegar uma água pra você tudo bem? - apenas acenou o rosto, concordando e pedindo. Voltei pela segunda vez em uma manhã com uma água gelada pra ela, esperando ela se acalmar. 

- Obrigada Flávia. Desculpe, me assustei.

- Desculpa eu, não deveria ter chego assim de mansinho, desculpa. Melhor?

- Sim, foi só o susto mesmo, desculpa. - eu que me preocupei com o susto dela, isso sim.

- Bia, o Cantão pediu para irmos no IML para falar com o legista, sobre o caso da desova. Tudo bem? Consegue ir? Se não estiver bem eu chamo outro fotógrafo. 

- Posso ir sim, já passou. Porque ele quer um fotógrafo? - quase que eu fico vermelha agora, detesto mentir. 

- Talvez precise fotografar algo lá. Não sabemos bem o que o legista quer. 

- Tudo bem, claro. Vamos com o carrro daqui ou de onibus? 

- Ele liberou uma viatura para o deslocamento, imagino que estaremos de volta até o horário do almoço. 

- ok… É… me dá uns 10 minutinhos? 

- Claro, dá tempo. - respondi com calma pra ela, sorrindo. 

- Só preciso ir ao banheiro. 

- Vou te esperar lá na rua, pode ser? Já vou pegando a viatura. Vamos com a 003. - ela me acenou em confirmação ao entendimento, mas ainda desnorteada pelo susto que eu dei. Estou me sentindo bem culpada, mas juro que não foi um susto tão forte, foi uma coisa tão sutil, a intenção não era nem assustar. Era só chamar a atenção, mostrar minha presença. 

Desci as escadas do casarão, passando pelo térreo, local de atendimento da população, onde aguardam para fazer boletim de ocorrência, aguardam advogado. Passei reto sem maiores constrangimentos, mas com muitos me acompanhando com o olhar. As viaturas ficam algumas na lateral da casa e algumas na rua. Olhei por cima, rapidamente procurando a 003. É um carro normal, apenas se difere por ter a "decoração e arte" que identifica como viatura. A 003 estava quase na saída já, até que fácil para manobrar. O cheiro de mofo e velharia delegacia é tão absurdo que impregnou até no carro. Sentei no banco do motorista e empurrei para trás, no ápice da minha altura de 1.80m, dirigir qualquer carro compacto é bem complicado. 

Com tudo organizado e pronto, antes de dirigir, desbloqueei meu celular e abri o aplicativo de música, escolhi uma sequência da minha adolescência, ou seja anos 2000-2010, e deixei rolando ao fundo. Manobrei a 003 para sair do corredor da garagem, aparentemente o serviço do mecânico foi bom. Estacionei em frente ao DP e fiquei aguardando a Bia. Uns 10 minutos depois ela apareceu, com uma expressão bem mais calma, segurando sua maletinha de fotografia. Confesso que ela fica até com uma expressão de mais velha, madura. Quando ela levantou o pescoço procurando a viatura, eu dei uma buzinadinha, dirigi em sua direção e soltei:

- Pediu um uber gatinha? - Claro que ela ficou vermelha, mas deu risada, se soltando. 

- Pedi sim moça, vou ali no IML, sabe? Tirar umas fotos.

- Jura?! Pro seu “book”? Você que escolheu o plano de fundo?! 

           - Acredita que foi meu chefe biruta?! - e caiu na risada. Eu acabei gargalhando junto. Ela entrou na viatura, no banco do carona. Quase que em automático puxou o cinto, se acomodando. 

- Pronta? Podemos ir?

- Sim Sim. Eu fui lá algumas vezes já, mas não gosto daquele lugar. 

- Acho que ninguém em sã sobriedade gosta de visitar corpos. Entendo que alguém precisa fazer esse trabalho, assim como precisamos de um médico capaz de operar as tripas de alguém, mas que não é gostoso não é. - conversamos enquanto eu dirigia.

- Se pensar por esse ângulo é verdade, alguém tem que fazer o serviço estranho. 

- Onde você estava trabalhando antes daqui?

- Eu passei pela divisão de sequestros e um tempo na de drogas. Entrei na polícia há uns 2 anos só. 

- Como a gente nunca se esbarrou por aí? Eu já passei por esses dois departamentos.

- Flávia, eu sou a nerd escondida no laboratório de fotografia. Nem se eu saísse de lá você nunca teria me visto. 

- Acha mesmo? Eu sou super social, apesar da cara de má.

-  Não é isso, só não acho que eu seja bem o foco da sua sociabilidade. - Claro, alguém já falou de mim pra ela, como não pensei nisso antes. 

- O que você ouviu? - perguntei diretamente.

- Nada que eu ache importante. As pessoas falam de mais e sou nova na equipe, só quero trabalhar certinho, fazer parte do time. 

- O que você ouviu de mim não tem nada a ver com ser parte de um time. Estou certa?

- Esqueci isso Flávia. Eu tomo minhas decisões sozinha. Ainda não entendi porque pediram um fotógrafo, eles não tem peritos lá?

- Devem estar sem, por isso pediram um - menti pelo Cantão. Ela queria fugir do assunto, não forcei a barra, mas eu sei bem o que as pessoas falam de mim. Quando chega alguma mulher nova na delegacia, lésbica ou não, eu acabo sempre me aproximado com minha gentileza e educação, pois sou assim. Mas a real é que se der espaço eu fico. Já contei pra vocês que eu não me ligo a ninguém, não quero namoro, não quero sentimentos, quero apenas beijos, aquele flerte inicial, a disputa de quem vai dar o primeiro passo. Duas ou três ficadas, no máximo, quando começa a ter cobrança, sentimento, qualquer coisa mútua, eu sou a primeira a cair fora e cair fora o mais rápido possível.

Não ficou um clima estranho no carro, apenas ficou um silêncio, como se duas pessoas que não tem  assunto algum estivessem andando no mesmo carro. O que não é mentira, pensando que mesmo ela estando na delegacia há uns 6 meses, entrou para a equipe a pouquíssimo tempo. Por sorte o caminho entre o DP e o IML não era muito longo, no máximo uns 15 minutos de carrro pela consolação, então antes do climão ficar pesado, já estávamos na porta do instituto. 

- Chegamos Bia - ela estava distraída, olhando o caminho e com o pensamento longe. 

- Identificação senhora - o segurança do estacionamento solicitou antes de liberar o acesso ao pátio do IML. Passei pra ele meu nome e registro, assim como mostrei o distintivo. Estacionei a 003 de frente ao prédio central e desci. Logo em seguida a Bia, carregando a maletinha da fotografia desceu também. Ela nitidamente tinha mais aflição do lugar que eu. 

- Tudo bem Bia?

- Sim sim, só não gosto de vir aqui. 

- Mas consegue entrar? 

- Consigo sim. Tiro as fotos de boa, mas prefiro um entrar e sair, bem rápido

- Tudo bem, vou tentar ser o mais rápido possível. 

- Obrigada - o fato de eu me posicionado ao lado dela, em tentar fazer algo rápido, parece que por segundos deu alguma alegria a ela, já que me respondeu com um sorriso sincero. 

Me identifiquei com o rapaz da portaria interna, que pediu para aguardarmos. Nos sentamos em umas cadeirinhas secas que tinham na entrada do instituto. O cheiro de alvejante já ardia o nariz só de passar pela porta inicial. O lugar não é escuro, mas parece que é iluminado apenas pela luz do dia, mesmo com todas as luzes ligadas. Quase uns 5 minutos depois, um senhor acima do peso, gordinho, de barba branca, polida e bem aparada, vestindo um jaleco branco, bem limpo, veio ao nosso encontro.

- Investigadora?!

- Sim. Vim em nome do delegado Cantão. Essa é nossa perito de imagem, Coelho. 

- Porque ele mandou uma fotógrafa? - Cacete, terceira vez. 

- Ah dr, não sei. O chefe manda e eu faço.

- De todo modo é bom, estamos com poucos fotógrafos. Se você quiser acelerar a investigação já pode fazer algumas imagens. - falou de um modo profissional - Me acompanham?!

- Claro - O legista barbudo foi indo na frente, nos duas seguindo ele. A Bia estava com uma expressão de enojada, o que acho bem incoerente se pensarmos que ela trabalha com morto todo o tempo. Mas tudo bem. Quanto mais avançávamos no corredor, mais a luz ficava opaca, como se precisasse trocar de lâmpadas amarelas para brancas. O cheiro foi se intensificando, na mesma mistura de alvejante com mofo. 

- Então - ele começou a falar, antes de entrar no espaço que estavam os corpos - Temos 5 vítimas, correto?!

- Exatamente. Preciso ter uma ideia de quando foram os assassinatos, a causa de morte, detalhes que possam me passar. Hoje cedo recebi a informação que uma das valas estava arranhada, o que me faz pensar que a vítima estava viva. Preciso da identificação deles se o senhor já conseguiu. 

- Temos quase tudo isso - falou empurrando a porta vai e vem que dava acesso a sala de necropsia. Já vim aqui algumas vezes, mas definitivamente nunca me acostumei com o cheiro. Assim que uma das portas vai e vem abriu e pude entrar na sala, o cheiro de alvejante subiu muitos níveis, se misturando ao cheiro de formol e de algo vencido, podre. Meus olhos em automático começaram a lacrimejar e meu nariz entupiu. O espaço era bem grande, um salão. A direita, a parede toda era de refrigerador, com as portas prateadas.

Mas essa não foi a primeira e principal imagem. Sempre, mas sempre me choco com a natureza material da vida humana, somos apenas carne, só carne. O salão, por ser amplo, possui várias mesas de necropsia, as daqui são feitas de mármore ou algum outro tipo de pedra,que ficam na altura da cintura de uma pessoa com tamanho habitual. Quando a necropsia é recente, o chão acaba sendo respingado de sangue e outros resíduos do corpo, por sorte essas vítimas já perderam o sangue a um bom tempo. 

Os 5 corpos que achamos ontem, no matagal, estavam distribuídos em cima das mesas de necropsia, um ao lado do outro, com um número em cada cabeceira. No chão  não tinha o sangue que comentei, mas tinha terra, terra podre. Mesmo eu trabalhando com isso a mais de 3 anos, sempre me sinto desconfortável com a vulnerabilidade humana. 

Os 5 homens estavam expostos na pedra fria, sem roupa, sujos, com o peito e a barriga abertos. As fitas de durex, que antes seguravam os corpos, para mantê-los fechados, estavam nas mesas acessórias prontas para serem descartadas. 

- Qual seu nome mesmo? -  voltei a conversar, mas meu estômago continuou se revirando.

- Flávia. 

- Então, chamei o delegado aqui por que acho que estamos lidando com um crime em especial. Venha cá -  passou em uma das mesinhas e retirou um par de luva para mim e um para ele. Vestiu um  e me entregou o outro. A Bia ficou a uma distância segura dos “talões”. Ele parou em frente ao primeiro corpo. - O que vê?!

Me estiquei para olhar dentro da barriga e do peito do morto, não havia nada. Não tinha órgão algum, nada. Como assim? Não tem nada?

       -  Não tem nada. Cadê os órgãos? Você tirou?

- Não senhora. Eles vieram assim, todos eles. Ocos. Sem nenhum órgão dentro. Sem rim, sem pulmão, sem nada. Temos 4 vítimas que seguem esse padrão. 

- Quem é a vítima que muda o padrão? 

- Esse aqui - ele se afastou da mesa 01 e seguiu até a mesa 03 - Esse é o único que tem coração e pulmões. Os demais foram retirados, mas ele não ficou sangrando, os vasos foram cauterizados. Ele demorou para morrer, ficou agonizando, mas consciente, até o coração e pulmões não ter substrato algum pra trabalhar mais. - puta que pariu. Quem faz isso a outro ser humano? Minha mente quase explodiu em pensar na agonia desse homem 

- Os outros morreram do que? - a Bia perguntou. Deve ter percebido meu desconforto

- Da retirada dos órgãos, na verdade do clampeamento mecânico da aorta, o que é feito após a retirada dos órgãos. Vem cá, olha isso. - andamos até a mesa seguinte, a 4. - Olha a laringe deles - a garganta estava aberta pela frente, mostrando tudo que um pescoço humano tem.  - Aperta isso aqui, vê se sente mais durinho. -  com delicadeza coloquei minha mão direita no buraco que o legista abriu na garganta do morto. Claro que não senti nada molinho, nem nada durinho, só nojo e a vontade de tirar rápido minha mão de lá. - Sentiu menina?!

- Sim -  menti -  o que significa?

- Essas vítimas foram intubadas, tiveram ventilação mecânica. E para ficar duro desse jeito foi por pelo menos 12 horas. - Ele explicou colocando a mão na mesma cavidade que eu havia tirado e ficou apertando. 

- Acha que foram os mesmos causadores? A mesma pessoa assassinou todas? - instiguei a conversa

- Sim e não.

- Facilita pra mim Dr.

- Posso te garantir que foi a mesma equipe que operou, mas não o mesmo que matou. 

- Não entendi.

- Flávia, para tirar órgãos de alguém, é necessário uma estrutura hospitalar, equipe treinada, pessoas habilitadas e além disso, pelo menos dois cirurgiões, um anestesista e alguém que cuide daquele espaço. Ou seja, uma equipe. Na verdade é necessário uma para retirar os órgãos e pelo menos uma para receptor, caracterizando uma rede - ele falou enquanto encostava na mesa 05 - Olha isso aqui, vai precisar forçar o olho.

Ele colocou de novo a mão em uma das vítimas, mas agora no abdome e puxou alguma coisa de lá, puxou é modo de dizer, na verdade pegou, acho que um vaso, parece um caninho. Esticou como deu e falou:

- Olha isso aqui. Isso é um nó cirúrgico. Aperta ele.  - Coloquei a mão na barriga da vítima e apertei o tal ponto, senti como um ponto de roupa, quando mãe costura algo a mão e faz um nó final para arrematar. - Esse provavelmente é um nó com dois laços de segurança. Pode tirar a mão - acatei a ordem - Agora vem aqui - voltou para a mesa 02 - aperta esse aqui. Vê o que acha?

Meu primeiro pensamento foi: absolutamente nenhuma diferença. Tem alguma?

- Sentiu alguma coisa?

- Sinceramente não, parece outro nó dr. 

- Fica tranquila, só um especialista para ver isso. Esse aqui é um nó de sapateiro com uma volta. - enquanto ele explicada, tirei minha mão da barriga do morto. 

- Tá, mas porque tem diferença?

- Um nó ou a técnica de operar é o mesmo que uma impressão digital de um cirurgião. O fato de ter dois nós diferentes mostra que pelo menos dois cirurgiões estão envolvidos nessa lambança toda aqui. 

- Os dois operaram juntos ou cada um separado?

- Provavelmente os dois juntos, cada corpo tem mais nó de um tipo, mas tem dos dois tipos, o que mostra que os 2 médicos operaram juntos em todas as vítimas, mas em cada uma havia um cirurgião principal.

- O que te faz pensar que foi um cirurgião que operou essas pessoas e não um zé ninguém - perguntei firme para ele

- Você sabe segurar um bisturi?

- Não, mas se alguém me ensinar eu consigo. 

- O que faz quadrilhas de tráfico de órgão tão grandes é o sucesso dos transplantes. Ninguém vai comprar um órgão  roubado se ele não funciona. Para isso a mão de obra especializada é essencial. Quem faz isso - apontou para o nó- é um cara ou uma mulher que fez medicina, que sabe fazer, que no mínimo entrou em uma residência de cirurgia. O cara sabe o que faz. 

- Por ser uma impressão digital, você consegue rastrear ou me dizer de quem é o nó?

- Jamais. Não tenho um banco de dados para rastrear nó cirúrgico. Talvez, na presença de duas opções, eu possa te dizer qual é mais compatível, mas isso é um talvez bem talvez. Nenhum júri vai achar que essa suposição é uma prova. 

- Cacate, que bomba. Isso vai me dar um trabalho absurdo.

- Vai mesmo, se essas vítimas forem as únicas, já vai ser bem trabalhoso. Mas se pensar que cada corpo pode doar para umas 10 ou mais pessoas, já temos receptores em um número bem grande. 

- E junto deve ter algum crime quanto a roubo hospitalar - a voz fina e leve da Bia soou pela sala. Eu e o legista olhamos para ela, acho que ambos haviam esquecido de sua presença - Porque não dá pra conseguir material médico desse nível facilmente. Deve ter furto de material ou algo do tipo. 

- Sim, não devem ser bandidos pé rapados não Coelho, deve ser algo grande isso aqui. - O legista completou

- Dr e essa vítima 3, que é a única fora do padrão. O que ele tem? - ela continuou

- Esse foge bem a regra dos outros. Tem o coração e o pulmão, como eu disse essa morte não foi causada pela cirurgia e sim algo agonizante. Esse é o único que tem terra nas unhas, ou seja, estava consciente quando foi enterrado e tentou sair, por isso a cova estava arranhada. O que me leva a pensar que alguém queria ele nessa situação, não só tirar os órgãos, alguma vingança. Mas isso é com você investigadora. Muda também que esse é um pouco mais jovem que as demais vítimas, por volta de 30 e os outros entre 35 e 40 anos. 

- Algo mais de diferente? - Perguntei. 

- Por enquanto isso. Eu colhi amostras da unha dele, na verdade de todos, para ver se acho algum DNA, mas se vier algo será desse aqui mesmo. 

- Dr, essa fita, esse durex que segurava o abdome deles. Acha que é algo específico?

- Não, isso aí, ao meu ver, é uma fita padrão, comprada em qualquer depósito de construção. O carniceiro que arrancou os órgãos deve ter usado a fita apenas para o transporte. É mais fácil carregar um corpo fechado que um corpo todo aberto, e é muito mais fácil passar um durex que suturar o tronco de alguém. 

- Certo, faz sentido - apesar do que ele falou, ainda estou encucada com essas fitas. - Manda elas para a análise também, algo me chama a atenção nelas. 

- Tudo bem, mando junto com as outras amostras. Mais alguma dúvida Flávia?

- Acho que não, doutor. O senhor libera seu laudo quando? 

- Entre hoje e amanhã. As digitais que consegui resgatar ainda estão rodando no sistema, se alguma coisa aparecer entro em contato na hora. 

- Certo. Certo. Tem alguma pia que eu possa lavar a mão e jogar fora essa luva? - Eu ainda estava com a luva cheia de sangue e terra. 

- Ah, Claro. Venham, aqui fora tem. 

- Quando irão liberar os corpos doutor? - perguntou a Bia, enquanto o barbudo me mostrava a pia. 

- Se acharmos familiar, assim que ele vierem. Caso não ficam aqui por um tempo e depois libero como indigente. 

- Ok. Flavia, precisa que eu tire alguma foto? - ela perguntou antes que saíssemos do salão. 

- Por enquanto não Bia. Já tenho informações para brincar essa semana, dá tempo de esperar as fotos da necropsia. 

- Tudo bem -  e sorriu pra mim, aliviada de não ter que mexer nos corpos. Segui o legista até a pia que ele mostrou. Arranquei as duas luvas e joguei no lixo metálico ao lado da pia, apertei o distribuidor de sabão e depois molhei a mão. Eu definitivamente havia saído mentalmente do IML, mesmo que fisicamente ainda estivesse no mesmo lugar. A água gelada fez a alma voltar ao corpo. Sacudi a mão molhada na pia e sequei com duas folhas de papel. O legista seguiu o mesmo protocolo, mas claramente na metade do tempo e sem o mínimo de desconforto. Bia, mesmo sem ter tocado em ninguém, também lavou as mãos. 

- Então é isso doutor. Se o senhor tiver qualquer novidade, entra em contato comigo ou com o Cantão. Por favor. Só com o que me passou hoje já vou conseguir dar início às investigações - voltei a falar com o legista

- Claro Flávia. Me mantenho em contato com o Cantão. Vocês terão bastante trabalho nesse caso.

- Sim, acredito que é algo grande. Então ficamos conversados dessa maneira. Obrigada pela atenção dr. - estiquei a mão em despedida e agradecimento ao barbudo. Ele retribuiu esticando a mão e sacudindo a cabeça em saudação. Esticou a mão para a Bia também. 

Seguimos pelo mesmo corredor da entrada, mas agora a iluminação era crescente, em direção ao pátio e a luz solar. Estavamos em completo silêncio, pensativas. A Bia agarrada a maleta de fotografia, como se tivesse ouro lá e eu sacudindo as chaves da viatura por dentro da calça preta. 

Quando a luz do dia bateu no meu rosto  meus olhos arderam. Quase que engasguei com o ar poluído da avenida, não pela poluição, mas pelo ar sem formol, limpando minhas narinas. O silêncio se manteve entre nós duas. Estiquei o passo e segui rápido para a viatura, preciso de um lugar seguro, fechado, protegido. Entrei no pequeno carro e empurrei o banco para frente, segurando firmemente no volante, em uma posição confortável. A Coelho entrou logo em seguida, se acomodou e colocou o cinto de segurança, enquanto me mantive todo o tempo olhando para a frente, respirando fundo, como em um processo de meditação. 

- Tudo bem Flávia? - Foi o que primeiro ouvi.

- Huhum!

- Tudo bem mesmo? Você está pálida. Quer uma água? - Não consegui segurar mais nenhum segundo, a gargalhada veio impulsionada da minha garganta, quase que sendo ejetada pelas cordas vocais. Uma gargalhada longa, profunda, de pânico e desespero. A Bia, primeiro ficou assustada, perdida, depois não segurou também e riu, gargalhou, mas gargalhou até os olhos começarem a lacrimejar. Ficamos na viatura, rindo, igual duas fugidas do  hospital psiquiátrico. Não sei se ela riu por reflexo ao me ver rindo ou se por ter achado graça em algo, mas eu me mantive em desespero gargalhando. 

- Cof, Cof, Cof, Cof, Cof, Cof, Cof, Cof, Cof   - só paramos de rir, aos poucos, quando a Bia, com o rosto vermelho e os olhos lacrimejando, anunciou em um acesso de tosse que engasgou com algo dela própria no meio da gargalhada.

- Tá bem? Quem precisa de água agora?! - mais algumas risadas

- Engasguei com a saliva. Está rindo de que Flávia?! Estamos saindo de um necrotério. E você tem um surto de risada? 

- Desespero! Só desespero!

- Do que? De ter colocado a mão na barriga do morto? - mais uma gargalhada nossa.

- Ah, percebe a diferença entre um nó  duplo e um nó cirúrgico? - falei imitando o legista. 

- Você percebeu alguma diferença?

- Eu não. Bia, parecia que nó de costura, que minha mãe faz nas roupas. Imagina, tava cheio de terra, sangue velho, os caras ficaram na vala por meses, como eu iria sentir a diferença de algo. 

- E seu desespero é do que?! - fiquei séria, sem gargalhadas, apenas segurando o volante novamente, olhando para frente. 

- Eu esperei minha carreira toda por um caso desses, grande, cheio de vítimas, com repercussão. 

- E conseguiu. Qual o problema?!

- Estou no último ano de faculdade, tenho o TCC pra fazer, estou estudando pro concurso de delegado, trabalhando como uma condenada, com mil atividades. Esse não era o momento, não é o ano pra isso. To muito ferrada, muito ferrada. Bia, onde vou arrumar tempo pra fazer tudo isso? Como vou dar conta de uma quadrilha de tráfico de órgãos? Como Bia?

Me mantive com os braços no volante, segurando-o firme, com força. Respirando pausadamente, não entrando em pânico, não surtando. Fechei os olhos tentando me concentrar, sempre quis um caso desses. Pode ser minha projeção a delegado, mas se algo der errado vai ser meu poço, o fim da minha carreira. 

- Vai dar tudo certo. As batalhas mais difíceis vem aos melhores soldados - em meio a todo o meu caos, a Bia falou isso, enquanto eu me assustava com a mão dela no meu ombro, tentando de algum modo me acalmar. - Respira fundo mais uma vez, depois pega todo esse seu medo e desespero e guarda. Vai ser a energia para você fazer o seu melhor trabalho. O melhor. 

Quase me assustei com ela falando isso, dessa maneira. Tão firme, tão madura, tão vivida. Essa garota tem algo a contar, definitivamente. Algo que eu ainda descubro. O Cantão está apostando no prêmio certo. Respirei fundo mais uma vez, como ela mandou. Quando abri os olhos, a Bia estava calmamente sorrindo pra mim, plena, como se nada naquele mundo estivesse fora dos eixos, absolutamente nada. 

- VAmos tomar um café? Minha mãe sempre diz que para lidar com um problema, só tomando um café! - fiz a proposta pra ela, soltando o volante e sorrindo em retribuição a calma e a paz que ela me passou. - Pode ser?!

- Não vai dar ruim pra gente não voltar agora pra delegacia? - e a Bia tímida e introvertida voltou, ficando vermelha, com a voz baixinha e fina novamente. 

- Claro que não. Um que o Cantão deve isso pra gente, depois de termos visto todos esses corpos. E depois que ele não vai brigar comigo nem com você. Relaxa. Conheço um café bom aqui perto, aquele que falei pra você.

- Qual?

 

- Que conheci ontem, que tinha café de baunilha. Vamos lá provar um? Te devo um depois de hoje. - Ela sorriu novamente, leve. Acertei novamente o banco da viatura e liguei o motor, seguindo viagem pelas ruas do centro de São Paulo.  

 

Fim do capítulo


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Comentários para 3 - Capitulo 3:
Lea
Lea

Em: 02/01/2024

Vou ter uns pesadelos,mas,estou adorando a história!

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Elliot Hells
Elliot Hells

Em: 29/10/2023

a fala " Jamais. Não tenho um banco de dados para rastrear nó cirúrgico. Talvez, na presença de duas opções, eu possa te dizer qual é mais compatível, mas isso é um talvez bem talvez. Nenhum júri vai achar que essa suposição é uma prova. " me faz querer conversar com a Flávia e pensar: Ok, conhecemos algum perito forense que trabalha bem em traçar perfis? 

Será trabalhoso, principalmente que a identidade desses nós e confecção, será que não teria como analisar o nível de como foi elabora se com muita experiencia ou baixa, para separar os recem-formados dos vetaranos e traçar uma linha temporal. 

Pesquisar cirurgiões com algum processo jurídico. 

 

A fala de Flávia "Estou no último ano de faculdade, tenho o TCC pra fazer, estou estudando pro concurso de delegado, trabalhando como uma condenada, com mil atividades. Esse não era o momento, não é o ano pra isso. To muito ferrada, muito ferrada. " traduz exatamente a minha vida, sente-se querida e pegue uma ficha. 

Depois do tcc, quando pegamos dissertações, concursos e processos, de fato vamos desejar muito um tcc de volta. Você consegue, só não pira, Flávia. Vai por mim, para alguém que vive com 3 mil atividades, você consegue! Eu só não sei como você encontra tempo para paquerar, porque... de fato já não consigo.

 

Cirurgiões me recordam muito um serial Killer de uma escritora que aprecio muito. 

Estou adorando a escrita e claro, todo o contexto.

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thays_
thays_

Em: 21/03/2023

Autora, queria dizer que estou amando essa história! É uma riqueza de detalhes tremenda!! Me sinto realmente projetada na cena! Adorei sua escrita! Parabéns! 

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Marta Andrade dos Santos
Marta Andrade dos Santos

Em: 29/09/2022

Misericórdia senhor! Flávia está ferrada.

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