Capitulo 2
Capítulo 02
Eu fui andando até o local que minha moto estava estacionada, meu pensamento apenas era: espero que seja rápido no advogado, tenho tanta coisa da faculdade para fazer ainda hoje. Como já estava fora do horário pude soltar o cabelo, não gosto de deixar ele preso. Subi na moto mais uma vez nesse dia, peguei a rua augusta e depois cruzei com a Paulista, andei por ela dois quarteirões até parar ao lado de uma igreja jesuíta que tem lá.
Já era quase quatro da tarde quando estacionei a moto e entrei no predio comercial, espelhado, elegante e de muitos andares. Assim que eu entrei, o mais à paisana possível, o segurança já me olhou, com aquela cara de “sei o que você faz”. Encostei no balcão da direita e me identifiquei.
- Boa tarde. Preciso ir no escritório de advocacia, no 20o. andar. - A menina educada da recepção pediu alguns dados, me entregou um cartão de acesso. Eu nunca cheguei a entrar nesse prédio nenhuma das vezes, mas o Gabriel tem uma amiga que trabalha aqui, então já deixei ele aqui na porta tantas outras vezes. Apertei o botão do elevador e esperei, se fosse sete ou oito da manhã e até uns 5 andares, eu iria com as minhas pernas, mas a essa altura do dia, só com um bom elevador.
Não era um elevador super elegante, não mesmo, mas limpo, com um vidro ao fundo, normal. Assim que entrei bati o olho no espelho que tinha ao final da caixa de metal, eu estou com uma cara de cansada imensurável, por sorte minha pele parda não está brilhosa de transpiração, um salve ao banho no DP. O cabelo escuro, solto, liso pela escova progressiva, está até que bem alinhado apesar de todo o suor lá da ocorrência. Apesar de eu amar, confesso que a roupa preta me traz um ar de seriedade muito aquém de mim. Entrei sozinha no elevador, ótimo, não sou obrigada a conversar com ninguém, pra falar bem a verdade, nem gosto de conversar com pessoas aleatórias. Na minha maior expectativa, esse elevador vai do zero ao vigésimo sem parar, sem ninguém para eu ter que comprimentar ou conversar. Olhei rápido no relógio, ainda bem que a moça que me ligou não determinou um horário específico, porque eu com certeza iria me atrasar.
- Terceiro andar - falou o elevador, automaticamente, gravado. Merda! Abaixei minha cabeça, deixando claro a quem entrasse que não sou de conversa. Olhando para o chão, vi a sombra de dois saltos “tictaqueando”, me mantive com o rosto abaixado.
- Boa tarde - os saltos falaram, eu respondi “Boa tarde”, mas sem olhar quem ou o que falava comigo. O silêncio abrupto e mortal entre duas pessoas me deixa com mais raiva do que eu simplesmente estar sozinha em um elevador, comecei a batucar com os dedos, na lateral da caixa de aço, que continuava a subir, lentamente.
Tudo aconteceu junto, no mesmo segundo, papeis pelo elevador todo, barulho da queda deles e um “Merda” cuspido. Eu não vi, mas “os saltos” deveria estar carregando uma pilha de papéis, pesada ou pelo menos desajeitadas, que caiu espalhando pelo elevador todo. Ainda assim não olhei para completar quem é “os saltos”
- Deixa eu te ajudar - me agachei no chão do elevador e fui recolhendo cada uma das folhas, que eu podia, enquanto “os saltos” falava sozinha, reclamando da queda dos papéis. Quando finalmente consegui recolher as mil folhas espalhadas naquele quadrado, empilhei como eu consegui e levantei para entregar. Levantei meu rosto, pude finalmente entender quem estava acima dos saltos. Quando eu olhei ela, não devo nem ter piscado, percebi que ela estava um pouco sem graça com a situação e com certeza pelo meu olhar.
Saltos, mulher, jovrm, cabelos castanhos com mechas loiras quase do tamanho do meu, nas costas, bagunçado em cima, como se tivesse acabado de sair de uma maratona. A expressão de raiva e vergonha dela era nítida, deve estar tendo um dia catastrófico. A calça preta dela era completamente diferente da minha, era mais algo social, por cima ela estava com uma camisa dobrada até o meio do antebraço, dando um ar executivo.
- Obrigada pela ajuda. Hoje tá sendo um dia de cão, imagina o tempo que levei pra organizar tudo isso e agora vou ter que reorganizar.
- Se quiser eu te ajudo. Está indo para qual andar? - Ai cacete, tenho que falar com o advogado.
- Pro 24, “pra” gráfica. Não precisa, eu me viro. Não quero te atrapalhar, fica tranquila.
- Vigésimo andar! - gritou a caixa de metal escandalosa.
- Deve ser seu andar, obrigada pela ajuda. De verdade! - Ela sorriu verdadeiramente, formando uma covinha de cada lado da boca, mas o olhar se manteve cansado, triste. Eu sorri de volta, ela é linda, normal, mas linda.
- Não tem o que me agradecer. Boa sorte com os papéis.
- Obrigada, vou precisar - sai do elevador jogando minha mochila nas costas, na porta do elevador parei mais uma vez e olhei ela novamente, mas o automatismo da caixa de aço não permitiu examinar ela mais um pouco, fechado entre nós duas.
Levei alguns segundos para me nortear. Hum, sim, escritório de advocacia. Qual sala mesmo é? Olhei no celular, sala 20-09. A plaquinha no corredor me direcionou para a direita, e no final do corredor, ao lado do jardim de inverno, achei a sala. Abra sem bater dizia a instrução da porta, então entrei. A sensação de estar ali é bem mais tranquila que o habitual, acho que é a primeira vez que estou em um advogado para resolver algo meu, algo positivo e não problemas de outras pessoas, não resolvendo problema da minha irmã.
Entrei na salinha e me identifiquei. A recepcionista, muito educada, pediu para eu me sentar e aguardar o advogado me chamar para conversar. Escolhi uma entre as diversas cadeiras elegantes e confortáveis que havia no pequeno corredor. Automaticamente meus pensamentos voaram para a menina do elevador. Ela estava com uma expressão tão pesada, cansada, de triste, deve ter derrubado os papéis porque se desligou por alguns segundos. Sabe deu vontade de colocar ela no colo e proteger. Aff, que coisa idiota, é só uma menina no elevador, provável que eu nunca mais esbarre com ela na vida não é mesmo?!
- Flavia?! - senti um toque no meu ombro, me trazendo a tona.
- Oi?! Eu. Desculpa, estava distraída.
- Tudo bem, vamos lá? - segui o homem até a salinha dele, no final do corredor.
Fiquei na sala por uns trinta minutos, nem levou muito tempo conversando com ele, foi mais para eu pegar os documentos específicos da compra do apartamento. Como é meu primeiro imóvel, acabei pedindo ajuda de alguém que entende um pouco mais dessa confusão toda. Estava ficando completamente descabelada com essa historia de financiamento, escritura, herança. Mesmo sendo aluna de direito, isso tudo é uma loucura absurda.
Sai da sala bem mais leve, aliviada por ter conseguido resolver uma boa parte dessa documentação. Bati o olho no relógio, vai me sobrar duas horas e meia até minha aula na faculdade começar, quem sabe consigo finalmente comer alguma coisa ou pelo menos parar quieta uma horinha? Segui de volta pelo corredor, até o hall do elevador. Apertei o botão.
- Descendo! - o automatismo da caixa de aço falou comigo mais uma vez. Levantei o rosto para entrar, e ela estava lá de novo, no ápice de sei lá, 1 metro e sessenta, um e cinquenta. Dessa vez ela que estava de cabeça baixa, com um bloco de papéis encadernado. Será que conseguiu organizar as folhas todas?
- Boa tarde! - falei apenas porque era a mesma menina de uma hora atrás, “saltos”. Ela levantou o rosto por educação para responder, mas em segundos deu para pegar que seus olhos antes cansados e tristes agora estavam vermelhos de quem deve ter explodido. Faz sentido, quando entrei no elevador ela estava tentando secar algo do olho, possivelmente uma lágrima? Não sei.
- Oi?! Você indo embora já e eu aqui perdida no elevador ainda - ela me falou tentando sorrir, ser gentil.
- Tá vendo?! Quem disse que não existe carma. Conseguiu arrumar as folhas?
- Sim, uma colega na grafica me ajudou. Esse é o esboço da edição, estou louca resolvendo isso.
- Dá pra ver, você está tendo um dia bem pesado pelo visto - fui gentil e educada, ela realmente parece estar fragilizada.
- Dia de cão. Já tive dias ruins, mas hoje se superou. - pensei por milésimos de segundo, e falei:
- Sabe, eu tenho umas duas horas até minha aula começar, você não topa ir tomar um café? Pra você dar uma respirada. - Caraca, de onde veio essa jogada? Tome tento Flávia. Até parece que ela vai aceitar.
- Nossa eu adoraria um café. Não vou te alugar? - ela até fez uma carinha mais delicada, de charme. Gamei, sério.
- Claro que não! Não gosto de ir sozinha e você parece precisar se distrair um pouco - ela olhou no relógio, acho que vendo se era horário de sair ou não, estou chutando, nem conheço a menina
- Putz, merd*. Ainda não deu meu horário, não fechei a edição. Acho que vai ter que ficar pra um outro momento. - completou com uma expressão de “que saco”.
- Ah, tudo bem. Claro - é claro que ela não iria aceitar, que idiota eu sou, chamar alguém aleatório para tomar um café. Poderia ter dormido sem essa hoje. Tentei não fazer, mas acho que eu automaticamente devo ter fechado o rosto, o mesmo silêncio do momento anterior preencheu o elevador, mas dessa vez eu não quis batucar na parede de aço, eu queria era um buraco no chão para fugir mesmo, que vergonha.
- Terceiro andar! - o elevador falou a nós duas. Me mantive em silencio. Ela se ajeitou no elevador, carregando o calhamaço encadernado. Deu dois ou tres passos até a porta e falou:
- Até mais.
- Tchau, tchau - falei quase que no mesmo automatismo do elevador. A porta rangeu, anunciando que iria fechar, eu fiquei olhando ela parada na porta, perdida e a ela lentamente se fechando. Voltei a olhar pro chão, esperando o caminho continuar. Um apito alto me fez de novo olhar pra porta, um braço e a caixa de aço voltou a se abrir.
- Espera eu pegar minha bolsa? Vou com você! - A menina havia colocado a mão para segurar o elevador e agora estava aceitando meu café, ai Deus. Acho que mesmo sem programar, eu respondi com um sorriso intenso, porque em automático as covinhas dela apareceram com o puxar dos lábios. - Vem, espera aqui na recepção, eu vou pegar minha bolsa, tem um café muito bom aqui na rua de trás.
Eu segui a menina por mais alguns passos até ela oferecer um sofá da recepção para eu aguarda-lá. Soltou um “fique a vontade, já volto”. Eu estava com um misto de ansiedade e medo, sou bem séria com todo mundo, fico sempre na minha, apesar que no assunto mulher eu sempre invisto bem, nunca perco uma chance. Mas daí chamar alguém do nada pra um café, supera meus limites
Comecei a olhar para os lados, procurando uma identificação do que era aquele espaço de trabalho, escritorio. O andar aqui é bem diferente do que estava a advocacia, aqui não existem salinhas ou um corredor, é como um grande galpão, separado apenas por mesinhas de escritório, com computador em cima. Pessoas andando todo o tempo, quase que correndo de um lado para o outro, papéis espalhados. Por cima do vidro da recepção eu não conseguia mais enxergar ela, mas na parede lá do fundo, vi o letreiro “DOI Notícias”. Agora faz sentido os papéis voando e o salto.
Incrivelmente eu estava meio agitada, ansiosa. A pergunta é: desde quando fico agitada para conversa com uma mulher, ainda mais uma mulher aleatória? Agitação desnecessária, diga-se de passagem. Hoje eu to bem na fita de ajudar pessoas, duas horas atrás almocei com a Bia, agora vou tomar um café com essa menina. Ganhei alguns tijolinhos no céu.
- Vamos indo? - eu nem tinha percebido ela voltando. O cabelo com mechas loiras estava mais adestrado, preso em rabo de cavalo. O salto continuava com tique taque, mas pude reparar na postura firme dela, andando em cima da finura de um lápis, eu sou incapaz disso. Ela colocou por cima da camisa um blazer cinza claro e estava com uma bolsa, daquelas executivas, pasta, pendurada na lateral do corpo. Devo ter ficado meio que sem reação, realmente achei ela encantadora. O rosto até estava melhor depois dessas mudanças, mas o olho ainda estava vermelho e por mais que esteja mais leve, ainda mantém uma expressão de um dia de cão. - Vamos? Tem um café delicioso na rua de trás, sempre acabo indo lá. Desculpa, acabei demorando né?
- Não, fica tranquila. Eu tenho tempo, até minha aula falta umas duas horas.
- Ah, dá tempo de um café. Eu tive que entregar o esboço da edição para a editora de serviço essa semana, bem complicado lidar com ego frágil.
- Não vai te atrapalhar sair agora? - perguntei pra ela, se o dia foi complicado melhor não arrumar mais problema
- Que nada. Mando mais aqui que na minha vida. Vamos indo, tem um café delicioso na rua de trás. Que café você gosta?
- Ah, café normal, preto, sem nada. Na verdade eu estou praticamente em jejum, então qualquer café já está ótimo.
- Passou o dia em alguma ocorrência né? Conheço vocês, primeiro os crimes, depois o estômago. - como ela sabe? Nem deu tempo de eu responder e já emendou - esse café que vamos, café amazônia, tem tudo, comida, cerveja, café, salgado. Vai ser bom pra você se alimentar. Lá é ótimo para ir depois de dias corridos. Que horas começa sua aula mesmo?
- Sete.
- Ah, perfeito. Dá tempo. É longe?
- Não, descendo a consolação.
- Perfeito, duas horinhas até lá. - Ela fala tanto que eu fiquei meio que monossilábica nessa história, mas digamos que eu também não sou muito de falar. Ela entrou em um monólogo sobre as opções de café, passou o crachá de funcionário na catraca da saida e foi embora, eu fiquei presa tentando liberar o meu acesso. Ela só deve ter sentido minha falta lá na rua. Eu tinha conseguido liberar a saída quando ela voltou meio perdida.
- Fiquei presa na catraca.
- Percebi, desculpa, acabei andando e falando sozinha. Eu sou tão acelerada que perco as coisas assim. É que a portaria é um ponto crítico, a maior parte dos dias eu estou saindo e alguém pede pra eu voltar, pra resolver algum pepino. Para evitar acabo saindo correndo. Você percebeu como sou acelerada.
- Fica tranquila, percebi. Te chamei pra um café por isso quase, pra dar uma acalmada. Seu dia deve ter sido péssimo.
- Sim, bem agitado. Eu estou com um chefe substituto, chefa na verdade, mas na real estamos na mesma linha hierárquica, mas a garota é uma perdida, então imagina a zona que está. O chefe de sempre volta em uma semana, aí tudo volta ao normal. Quando você me chamou parece que leu meus pensamentos, eu realmente precisava de uma pausa.
- Te entendo, muitas vezes o que mais precisamos é de um bom café e alguém pra conversar. - falei isso tentando ser simpática e gentil, espero que ela não pegue que a verdade, que sou mais do café em silêncio.
- Aquela hora hoje você desceu no vigésimo, foi em qual sala? - falou tentando puxar assunto, mas acabei dando uma travada perceptível. Falar de advogado em geral sempre me remete a alguma merd* da minha irmã e uma explicação gigante - Ah, Desculpa, não tenho nada a ver com isso.
Por sorte chegamos a lanchonete, não tivemos tempo para aquele clima chato, silencioso. O espaço era pequeno, com cara de lugar gostoso para ler e passar horas. Eu adoro café nesses lugares
- Vem, prefiro ficar lá dentro, tudo bem pra você? - eu acenei a cabeça, concordando. Segui saltos pelo espaço de mesinhas circulares, cheiro de café, paredes creme, um espaço aconchegante e delicioso. Tirou a pasta e o blazer, apoiando em uma cadeira ao lado.
- Boa tarde Bruna, o que quer hoje, o de sempre? - Assim que sentamos a garçonete veio conversar com ela, claramente me ignorando na mesa. Pode ser que ela venha tanto aqui que a mocinha já saiba até o pedido, mas fiquei levemente incomodada.
- Me vê o cardápio, hoje estou com uma colega, vamos descobrir o café que ela gosta. - abriu um sorriso tão sereno e calmo, como se o dia de cão tivesse ficado no passado e incrivelmente mais calma- A propósito, Bruna.
- Flavia - manteve o sorriso calmo.
- E conta Flávia - deu ênfase no meu nome, confirmando que entendeu e anotou mentalmente - vai beber o que? Esse café aqui, de baunilha é uma delícia, vale se você gosta de sabores mais adocicados. Eu vou tomar uma cerveja, quer uma cerveja também?
- Você não vai voltar para o serviço? Parece que eu te arranquei no meio do expediente.
- Não vou voltar mais hoje, não tenho que ficar alimentando ego de marmanja mal resolvida. Não vou nem te incomodar com essa parte da minha vida. Vai de cerveja também?
- Não, melhor o café mesmo. Tenho aula daqui a pouco - estiquei a mão e chamei a atendente, educadamente claro, mas com o meu jeito firme e decidida.
- Um café de baunilha e um pedaço de torta de frango, por favor - dobrei o cardápio e entreguei - Bruna?
- Eu quero um litrão, por favor.
- Quando você se forma?
- Estou no quarto ano, falta terminar esse ano e o próximo, um ano e meio.
- Humm, vai dar certinho com o concurso de delegado, abre sempre em dezembro - Oi?! Primeiro falou do lance de eu ter ficado na ocorrência, depois soltou do concurso de delegado, como assim produção?
- Vai mesmo, vai dar pra encaixar bem. Como você sabe?
- Não tem que pensar muito, só juntar as linhas - fomos interrompidas pela atendente que deixou na mesa um copo congelante e a garrafa de cerveja. Antes dela se mexer para colocar no copo, eu claramente fiz as honras, aproveitei o momento e servi olhando pra ela, procurando detalhes, sabe um olhar profundo.
- Nossa, sou tão previsível assim?
- Não cara. Só pensar e juntar tudo, sua postura é firme, militarizada. Mas a roupa preta puxa mais a ideia de civil e não de pm. Se faz faculdade deve ser de direito e dentro desse contexto todo deve ser pra ser delegada. Você não é previsível, eu que formulei uma tese partindo de conhecimentos prévios e um meio comum, amarrei tudo e mostrei pra você. Se você não tivesse confirmado eu teria que abrir um outro leque de hipóteses.
- Que pensamento rápido. Pegou tudo isso nesses dois minutos que esbarrou comigo no elevador?
- Não sou tão ligeira assim não. Eu tenho um amigo delegado, então metade dessa tese toda foi baseada em alguns anos de experiência. Penso rápido, mas não tem como premeditar tudo isso, assim do nada.
- Isso explica você não ter ficado assustada ou estranhado.
- Em relação ao que? - falou bebendo mais um gole longo da cerveja gelada, mas sem desviar o olhar, se mantendo atenta.
- Mulher, de preto, firme, com cara de mal.
- Eu não, pra mim mulher pode ser o que quiser. Mais ainda se for desafiador. Quando eu entrei no elevador, antes de eu derrubar toda a edição do domingo, eu percebi que você deveria ser agente ou algo próximo, mas também poderia ser uma doida fantasiada - não resisti acabei dando risada.
- Edição de domingo? Você é jornalista? Não que eu seja boa de tese - falei imitando a gesticulação dela- é que me pediu pra eu esperar na frente de um jornal, então A+B.
- Você é boa de observação. Então, eu sou e não sou. Minha formação é mesmo em jornalismo. Mas a tempos não saio a campo, hoje eu sou mais interna, fico trabalhando no editorial, no formato e no conteúdo do jornal do dia seguinte. Eu derrubei o esboço do domingo, como é uma edição mais completa, quase que um resumo da semana, a maior parte já fica pronto, só mesmo os detalhes finais ficam pra colocar no sábado a noite.
- Não entendo quase nada disso, só de ler mesmo. Na verdade nem de ler, está tudo tão corrido que nem tenho tempo.
- Imagino, faculdade e trabalho juntos não dá paz. Você é de qual DP?
- Do 202, aqui pertinho.
- Como eu não te conheço? Está lá a quanto tempo? Esse meu amigo delegado que te falei é de lá, do mesmo DP que você, já fui em algumas confraternizações de voces.
- Estou lá a uns tres anos, em geral chego com a festa já bombando, todo mundo bêbado e vou embora rapidinho, nem fico muito. Quem é o seu amigo? Vamos ver se eu conheço.
- Você deve conhecer, é o Bibo. Em geral ele trabalha a noite.
- Bibo? - quem chama bibo? Dever ser apelido só pode. - não tenho ideia de quem é. Esse é o sobrenome dele?
- Ai caraca. Verdade, ninguém chama ele de Bibo. Cantão, esse é o sobrenome dele. - Ela falou imitando o Cantão sendo formal, pela segunda vez não resisti e ri, ela imitou direitinho a pose dele.
- Conheço, claro. Você fez igualzinho ele. Eu vou chamar ele de Bibo amanha, só pra ver a cara dele.
- Nem faz isso, ele vai ficar puto comigo. Ele é um amor não é?!
- Sim, todo serio, um profissional de ponta e um super gente boa.
- Devo muito a ele e as mães dele. Foi com base nele que chutei que você estava fazendo faculdade de Direito.
- Ah, agora faz bastante sentido. Ele me dá umas ajudas monstras, as vezes “tô” perdida antes de uma prova, ele faz um resumão ligeiro e eu me salvo.
- Ele é muito bom, desde a escola sempre tirava as melhores notas, quando começou a faculdade de direito não foi diferente.
- Ele é bem filhinho de mãe, barba sempre feita, roupa impecável.
- As mães dele são ótimas, sério. Já conheceu elas? Dona Marta e a Dona Claudia. Criaram ele e o irmão dele assim, a pão de ló, isso fez dele o cara educado e gentil de hoje em dia.
- Eu fui uma vez só na casa dele, em um churrasco, elas estavam lá. Uma delas é bem séria, tipo firme, mas muito gentil, a outra é palhaça, brincalhona, fala com todo mundo, tipo mãezona, só não sei quem é quem.
- Eu morei um tempo na casa dele quando eu era adolescente, elas são quase que minhas mães também. Sempre que consigo passo na casa delas, adoro as duas.
- Morou na casa dele?
- Ah, coisas da vida, nada que seja gostoso de ouvir - delicadamente ela deixou claro que não iríamos ter essa conversa, deve ser algo intimo dela.
- Sim claro, desculpa me intrometer nisso.
- Claro que não, fica tranquila. Mas e aí, eu acertei no lance do concurso de delegado?
- Sim, você é boa nisso. Chutou na direita e fez o gol.
- Sou péssima em futebol, nem deve ter sido isso - dei uma risadinha para disfarçar.
- Digamos que você não tem muito o porte de futebol mesmo, nem pensei isso. Sei lá, você tem mais cara de artes, de que vai no jogo de alguém, mas fica lá no canto lendo alguma coisa.
- Quase acertou, fico metabolizando crônicas ou histórias. Algo que eu possa escrever para entreter e encantar o outro. Minha mente flui quando filósofo uma situação do dia a dia. Hoje eu fico mais como editora, mas o que eu amo mesmo é escrever, sair a campo, pegar chuva, correr para pegar um detalhe antes do outro. Registrar o atual, não deixar passar os detalhes superficiais. Loucura demais pensar isso?
- Acho que não Bruna, eu trabalho com corpos, pessoas que morreram, famílias que precisam de respostas. Pra mim cada informação que consigo dá uma peça a mais de um quebra cabeça enorme. Se não houver esses detalhes pra alguém achar não tem graça. Mas confesso que quando é um crime grande, de repercussão, os jornalistas enchem a paciência.
- Tudo tem seu jeito correto de fazer, eu não acho certo ficar explorando a dor de uma família, apertando algo que machuca. Isso só pra mostrar e ganhar dinheiro. Eu cresci aprendendo a ser jornalista, então criei uma sutileza em como perguntar, como testar as hipóteses. Isso eu sinto falta hoje, só fico presa atrás de uma mesa.
Acreditem senhoritas, ficamos conversando no café Amazônia por mais de três horas, quando ela bateu o olho no relógio, já se passava das oito horas da noite. Nesse tempo conversamos mais sobre escrever, matérias, fotografias, sobre os corpos que trabalho, sobre jornal, tempo, São Paulo, sobre tantas coisas. Uma conversa gostosa, leve, sem pressão alguma.
- Caramba, olha a hora! Já são oito da noite, o tempo passou que eu nem percebi - falei assustada quando olhei o relógio.
- Sua aula Flávia, não era as sete?
- Eu perdi já, esqueci. O dia foi tão pesado que eu nem iria absorver nada mesmo, melhor fecharmos essa conta e eu ir pra casa, tem chão até lá.
- Eu também, preciso pegar o metrô ainda. São Paulo tem tanto trânsito que anda sendo mais fácil andar de metrô que de carro.
- Eu nem me arrisco mais com carro, de todo modo vendi o meu. Precisei dar um pouco na entrada do meu apartamento, o carro foi vendido nessa jogada. Estou só com a moto. Você mora onde?
- Em Santana, pertinho do metrô.
- Eu estou de moto, não sei se você gosta, mas quer uma carona? Eu passo por Santana de todo modo.
- Passa mesmo? Vai pra onde?
- Eu moro na Brasilândia, bem mais acima, mas o caminho não foge muito. Se quiser ir na garupa, dá certinho - quando me liguei na merd* que eu estava fazendo, tentei reverter - estou sem capacete extra, não vai rolar te levar sem capacete.
- O meu está na minha sala, se não se importar eu subo rapidinho pra pegar.
- Você tem um capacete no seu escritório? Como assim, você anda de moto?
- Não é porque sou do tamanho de um anão que não posso andar, eu tenho aquelas motos sem marcha.
- Não falei isso, é que não imaginei você em uma moto, você é tão… fofinha, menina.
- Ah Flávia, não me conhece, sou mais macho que muito homem. Vou pedir a conta e vamos indo, onde está sua moto? - antes dela levantar a mao para pedir a conta eu fiz isso. Quando a conta chegou, antes mesmo dela pensar eu tirei o cartão pra pagar. Desde quando eu deixo outra pagar a conta? Machista da minha parte, eu sei.
- Quanto deu minha parte?
- “Deu nada”, já ta pago Bruna.
- Tem certeza?
- Claro, eu que convidei, vamos?
- Certeza mesmo? - confirmei com a cabeça mais uma vez - Ah, então tudo bem. Onde está a sua moto?
- Ficou no estacionamento lá do seu serviço, já deve ter dado um útero para pagar.
- Que nada, passo na minha conta, eu tenho direito a estacionamento gratuito lá.
- Pronto, estamos quites - enquanto eu fui pegar a moto com o cartão de estacionamento dela, a Bruna subiu até a redação para pegar o capacete, que eu ainda não acredito que ela tenha mesmo.
- Partiu Flávia?
- Sim. Quer que eu te deixe onde?
- Pega a rua do metro santana que eu te explico.
- Tudo bem? Só que eu estou com a mochila, vai ter que ir na suas costas, tudo bem?
- Dá aqui, fica tranquila. Seguro na moto ou em você?
- A escolha é sua - dei uma piscadinha, não claramente dando em cima, mas dando uma resposta divertida, ambígua. Coloquei o capacete e subi na moto, ela logo montou também. Aparentemente minha moto é alta demais pra ela, deu pra ver a dificuldade pra ela subir. A risadinha deu certo, porque ela segurou firme na minha cintura. Segui em direção a zona norte, rápido, mas sempre tomando cuidado com ela. Andar de moto é perigoso, mas eu gosto do vento batendo no meu rosto, bem mais que a sensação de andar de carro. Fui todo o tempo sendo atenciosa com ela, perguntando se estava tudo bem.
- Na próxima a direita você pode entrar - falou alto, da garupa, concordei com o rosto. Entrei na rua que ela pediu e uma nova informação - Pode me deixar naquele prédio bege.
A velocidade da moto foi sendo reduzida calmamente, senti ela ficando mais dura e travada na moto. Estacionei na frente do prédio que ela pediu.
- Bru, pode descer. - Quase que caindo daquela moto alta, apoiou um pé no chão e puxei a outra perna, se equilibrando no seu metro e meio. Em seguida desci também, na calçada retirei o capacete e arrumei o cabelo que estava todo bagunçado do vento.
- Flávia, obrigada pela carona e pelo café, foi muito bom, eu realmente estava precisando desse tempo.
- Não tem que me agradecer, foi só um convite bobo. Espero que tenha dias mais calmos no jornal. Tenta descansar agora para repor as energias. - Mesmo ela me conhecendo ela a cerca de 4 ou 5 horas, esticou os braços, me abraçando como agradecimento. A diferença de altura entre nos fez o meu pescoço ficar quase na cabeça dela. Pude sentir o cheiro do cabelo longo dela por alguns segundos, era um cheiro de castanhas com algo doce. De alguma forma eu me prendi aquele cheiro por alguns segundos, só voltei a mim quando ela foi se soltando do abraço. Que estranho, uma desconhecida completa, mas que eu me senti tão bem próxima.
- Cuidado no caminho até sua casa. - completou depois do abraço.
- Sim, tomo cuidado. Não fica na rua não, melhor você já entrar - Falei voltando para a moto. Coloquei o capacete, liguei o veículo, duas buzinadinhas de despedida e sai. Não tive coragem de pedir o número de telefone dela, mas deveria, gostei muito da tarde, sério.
Fim do capítulo
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Sem cadastro
Em: 29/10/2023
E eu gostei muito do capítulo Flávia. Confesso, que embora formada em direito, converso muito como a Bru e é o tipo de resposta que daria.
Adorei as duas.
Excelente capítulo.. parabéns!
Sua escrita também é uma maravilha.
Sem cadastro
Em: 20/03/2023
Deveria ter pedido o número! O mais difícil já tinha feito de chamar pro café kkk
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Marta Andrade dos Santos
Em: 28/09/2022
Eita Flávia custava dá o teu número mulher.
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