Capitulo 1
Capítulo 01
Ela estava vindo em minha direção, percorrendo o corredor lentamente, claramente montada na maldade. A farda preta que ela vestia, com os botões abertos, não me deixava nem um pouco mais calma, me deixava com mais vontade, mais perdida. Eu me mantive sentada, agitando a perna direita em sinal da ansiedade que a vinda dela me causa. A cada passo minha boca secava mais e meu ventre tornava-se mais úmido e contraído. E meu sorriso foi se alargando cada vez mais.
Chegou pertinho de mim. Minha respiração afundou, mas o ar não entrou. Estiquei meus braços e passei pela cintura dela, estreitando o espaço, aproximando os corpos. Encostei a boca, por cima da roupa em sua barriga. Suas mãos se apoiaram em minha cabeça, massageando meu cabelo bagunçado.
Passei a mão por dentro da camisa da farda, sentindo a pele morna em contraste com a minha mão gélida, arrepiada. Que corpo desejado. Seu cabelo longo passava pelos meus dedos, embaraçando. Ao fundo uma música começou a tocar, suave, leve. Ela lentamente soltou alguns botões da blusa, enquanto balançava o corpo, seduzindo, estimulando. A música tornou-se mais alta, importante, quase a ponto de incomodar, mas ela continuava dançando e abrindo os botões, sem mexer o olhar, sem desviá-lo de mim. Levantou o corpo e sem desviar o olhar puxou seus cabelos e prendeu em um coque, nele mesmo.
Suas mãos passaram pelos meus braços, percorrendo lentamente, subindo até o pescoço e depois o rosto. As mãos se tornaram firmes e o toque endireitou minha face, com os olhos no meus ela disse:
- O celular está tocando!
- Que celular?
- O celular está tocando!
- Onde? Onde? O que?
Puta que pariu foi a primeira coisa que veio a minha mente quando abri os olhos. Meu celular jogado na mesa ao lado da cama estava convulsionando. Puta que pariu. Olhei rápido para a tela do celular, era o Cantão, delegado do plantão noturno. Se ele está me ligando é porque é algo importante ou no mínimo interessante. Atrapalhou um sonho delicioso, sim a gostosa dançando pra mim era só um sonho. Definitivamente devo estar precisando de sex*, esse sonho foi um recado do meu corpo, só pode.
Eu trabalho em regime de plantão, quando algo acontece é função do investigador daquele horário, mas nada como bons contatos e amigos para pegar casos “minha cara”. Sentei na cama rápido e peguei o celular.
- Flávia, bom dia. Acordada?
- Agora eu estou. Fala! - respondi xingando mentalmente
- Hoje é seu aniversário?
- Não Gabriel - para todos ele é o delegado Cantão, pra mim é o Gabriel, amigo e companheiro de bar - Tem algo bom pra mim?
- Estou indo agora conferir. Se conseguir chegar em uma hora tenho seu presente de aniversário, dia das mães, de São joão, de Cosme e Damião, da morte do papa se você quiser.
- Onde é?
- Sabe aquele matagal do da Zona Sul? Que eu fui com você dois ou três anos atrás, onde achamos aquele mundo de drogas?
- Claro que lembro. O que temos? - quando ele falou do matagal eu levantei na hora para me trocar, é coisa boa.
- Denúncia anônima, expectativa de 5 corpos. Consegue chegar em uma hora lá?
- Já estou saindo. Está com você o caso?
- Flávia, desde quando você já me viu perder uma festa dessas? Te vejo lá! - Eu sei que é meio mórbido pensar em morte como uma festa, mas alguém precisa fazer o serviço que ninguém mais faz, assim como tem que ter o médico que cuida de baleado, tem que ter o policial que mexe nos cadáveres, descobre a causa da morte, investiga, essas coisas. E esse é o meu trabalho, investigadora do departamento de homicídios.
Abri rapidamente meu armário, sempre deixo as coisas bagunçadas, mas organizadas, ou seja mesmo na bagunça eu achei rápido uma calça jeans preta, a camisa com o símbolo da polícia civil, vesti rápido cada peça. Por cima coloquei o cinto e depois o coturno. Abri o armário mais uma vez e peguei minha jaqueta de couro que só joguei lá ontem, ainda não nasceu o sol, vai estar bem frio lá fora.
Eu nem havia desmontado a mochila de ontem, peguei ela rápido e fui direto até a cozinha. Tentei não fazer barulho, minha mãe estava dormindo no quarto ao lado. Retirei uns potinhos da bolsa, deixei na pia e peguei outros na geladeira. Na garrafa térmica o café de ontem a noite ainda estava morno, não há tempo para fazer um novo, então vai esse mesmo.
- Senta e toma café direito Flavia! São quatro da manhã! - Cacete, acordei ela, mesmo fazendo silêncio. Se eu respiro um pouco mais forte minha mãe acorda.
- Não vai dar tempo mãe, eu tenho que chegar em uma hora no lugar da ocorrência. O Cantão acabou de me ligar.
- Você nem está de plantão.
- Deve ser algo meio que grande, ele me chamou. - deixei a caneca em cima da pia, passei por ela com a mochila na mão, acenei como despedida e saí quase que correndo - Tenho que ir, beijo. Até a noite.
Moro em um prédio de habitação social, daqueles de quatro andares. Para minha sorte ou azar, nosso apartamento é no último andar. Desci as escadas rápido até chegar no estacionamento, que fica na lateral do bloco. Minha moto estava lá, com o capacete vermelho preso nas rodas. Antes de subir nela, coloquei minha jaqueta preta de couro, amarrei meu cabelo longo, posicionei o capacete, arrumei a mochila e sai. O porteiro apenas sacudiu a cabeça, imagino o sono que ele deve estar as 4 da manhã, eu estaria se fosse normal.
Praticamente atravessei a cidade, mas considerando que São Paulo é um mundo dentro de uma cidade, qualquer distância é longa. Fui todo o tempo olhando no relógio, atenta a hora. Tenho que chegar em tempo ou o Gabriel vai ser obrigado a pedir outro investigador, mesmo eu estando a caminho.
Fui me estreitando mais na periferia da Zona Sul, em uma região que em dias normais eu não passaria ou evitaria, mas preciso chegar a ocorrência. Quanto mais perto do tal matagal, mais a adrenalina estava subindo no meu corpo. É uma questão do “o que vamos achar” com “ é seguro? Não é?” Trabalho na polícia civil desde os meus 19 anos, mas na divisão de homicídios, deve ter no máximo três.
Quando enxerguei as luzes das viaturas, a adrenalina baixou e eu me senti em casa, no meu território.. Antes de estacionar levantei a viseira do capacete e fui reduzindo a velocidade, com uma das mãos eu abri a jaqueta e puxei de dentro da blusa o distintivo. Minha equipe conhece minha moto, mas em geral o pessoal que está protegendo a cena não conhece, então é melhor evitar de ser abordada.
Embiquei a moto entre duas viaturas que ali estavam e desci. Tirei o capacete e guardei ele na lateral da moto. O sol começava a apontar lá no fundo, mas por ser uma região com mato e árvore, ainda estava bem frio. Da minha mochila tirei alguns materiais de trabalho e fui entrando no matagal acompanhando a demarcação da equipe que já estava por lá. O Gabriel já estava lá, delegando funções, todo agitado olhando atentamente cada milímetro do lugar, com uma lanterna na mão..
- Bom dia delegado! - Falei primeiro com ele, quase que séria, mas com vontade de dar risada - Bom dia, bom dia - completei cumprimentando os outros que também estavam lá.
- Cravado Flávia! Mais um minuto e eu iria chamar o Munhoz pra ficar de investigador - em geral os policiais usam o sobrenome como nome de guerra, eu prefiro usar meu primeiro nome, mais fácil de falar que o Albuquerque, sobrenome que traz a tradição de posse escravocráta do meu passado.
- Até parece Gabriel. E você detesta as análises do Munhoz - Falei baixinho, enquanto andávamos olhando por cima o local, ele deu uma risada, concordando.
- Detesto mesmo. Você chegou rapido.
- Vim acelerado e na moto tudo é mais rápido. O que temos?
- A principio é só uma denuncia de um ponto de desova. Estou esperando o Canil chegar pra ver se os catioros - sim, ele todo sério falou catioro - acham alguma coisa e o dia dar uma clareada para vermos melhor. Mas a denúncia falou que é comum enterrar corpos aqui, é só um chute, mas isso tem cheiro de coisa grande sabe?!
Conheci o Gabriel quando ele ainda era molecão, recém chegado na polícia, fizemos academia juntos. Ele acabou indo para a equipe que trabalha com tráfico de drogas e eu fui escalada para papéis. Quando finalmente consegui uma transferência, acabamos nos esbarrando novamente, e aí a amizade acabou se estreitando mesmo. Ele é um rapaz de 31 anos, mesma idade que a minha, muito educado, bem vestido e com a barba garnde, mas milimetricamente alinhada é bem cuidada. Ele é um dos policiais mais dedicados que já conheci e depois que tornou-se Delegado é um trator, casos assim, numerosos, chamativos, ele bate no peito e faz gol. Ele acelerou tudo para chegar na cena antes das 7 horas, quando todos os novos casos se tornam responsabilidade do delegado do dia.
Perto das 6 horas a equipe do canil chegou, confesso que essa é uma parte que eu adoro. Amo cachorros, nunca tive um, então me apego absurdamente aos bichinhos das minhas amigas ou aos da polícia. Em geral são Pastor alemão ou outras raças do mesmo porte e sempre depois que terminam o trabalho, os adestradores deixam eu brincar com os pequenos. Mas antes da diversão eles precisam trabalhar, são praticamente os primeiros a mexer no local das ocorrências, farejam algum cheiro que chame a atenção.
Com a chegada dos cachorros, o contingente da polícia civil se dividiu. Eu fui para um lado e o Cantão subiu o morrinho de terra. A ideia aqui era achar os corpos, confirmar se existem, quantos são, meio que fazer um inventário geral desse lugar.
-Flávia , o Cantão está te chamando lá no topo - pelo visto a metade que se dividiu com o Gabriel deu mais sorte, porque no meu não achamos nada. Fui subindo a trilha que a equipe deixou. O céu ainda estava alaranjado, mas o calor já começava a incomodar. Todos estavam rodeando um local, provavelmente onde está o corpo, mas ainda não consigo ver, mas posso dizer a vocês, quando encontramos algo é algo mesmo.
Assim que cheguei o Cantão me olhou, com a expressão clássica de “É aqui”. Lidar com as imagens dos corpos é até que normal, mas olhar ao vivo nem sempre é confortável. Dessa vez era um pedaço de solo, com terra mexida, fofa, uma mão pra fora, como se a terra não tivesse sido o suficiente, pronto para ser explorado. Mas essa é a minha deixa e o que gosto de fazer, montar quebra cabeças. Puxei do bolso da calça um par de luvas azuis, sou alérgica as brancas, e cheguei mais perto.
Entre as pessoas que subiram com o delegado estavam peritos, fotógrafos, dois bombeiros, e policial com o cachorro. Todos com a função de ajudar a salvar o máximo de informações daquele talão, como chamamos os corpos, esperando que nos contasse sua história. Dei uma olhada rápida na equipe que eu tinha ali junto. Beatriz, a Bia, é quem tem a melhor técnica e mais detalhismo, quero as fotos dela.
- Bia, pega essa parte aqui, vou precisar da imagem da mão dele - fui conversando com ela, detalhando o que eu precisava, quais detalhes eu queria. Ela é umas peritos que mais gosto de trabalhar, cada imagem dela mostra detalhes que eu perdi, reforça como o corpo foi encontrado. Sabe aquelas pessoas que ama o trabalho e faz bem feito? Pelo menos demonstra isso.
Depois de colhermos tudo do lado de fora, de imagem a peças, o Gabriel me perguntou:
- Vamos tirar a terra? O que você acha?
- Estamos aqui pra isso, pode mandar. - Com a ajuda de uma outra parte da equipe a terra que estava por cima começou a delicadamente ser retirada, trazendo a tona não só a pessoa, mas o cheiro que veio com ela. Não quero detalhar tanto a vocês, é indigesto até, mas posso dizer que é um homem, jovem, no máximo 30 anos. O detalhe que mais chamou a atenção é a fita, um durex, grande, no tronco todo, da base do pescoço até o final da bacia. Aqui eu não posso mexer nisso, mas o legista quando olhar vai me dar algumas informações.
- Temos mais um ponto suspeito delegado - o policial com o cachorro gritou ao Gabriel que estava do meu lado. Acho que os pensamentos dele já estavam se alinhando com o meu. Mais de um corpo assim, próximo, em geral estão relacionados, mesma morte ou mesma causa.
Já passava das duas da tarde quando finalmente os cinco corpos tinham sido achados, fotografados e estavam esperando o carro vir buscar. Eu estava sentada na base do morro, no chão de terra batida, com a roupa preta toda suja de barro, suada, quase que jogada, brincando com um dos cachorros do canil, que estava deitado no meu colo, recebendo meu carinho.
- Ei sapatão, partiu? Ou vai ficar velando evidência? - Acreditem ele realmente é meu amigo, se qualquer outro falasse isso pra mim, na hora eu deixaria muito claro as coisas, mas ele tem um pouco mais de liberdade comigo - Eu estou indo pra casa, já deu por hoje.
- Por hoje bonitão? Deu por ontem, era pra você ter ido embora às 7, são 14 horas.
- Eu sei Flavinha, mas sabe, nada como um bom caso.
- Vai dormir cara, olha essas suas olheiras. Você trabalha de mais.
- Ah, falando quem trabalha, faz faculdade e estuda pra concurso. Acho que é o sujo falando do mal lavado Flávia. Só faltou você colocar nessa agenda absurda uma namorada pra tirar esse seu mal humor.
- Aí Cantão, sem essa conversa agora. Hoje não.
- Se eu não estivesse tão cansado, teríamos uma nova edição do “você precisa de alguém sim”, mas meus olhos estão fechando.
- Se você começar, vou lançar “ porque chamou a Beatriz? Ela faz imagem dos vivos e não dos mortos - ele ficou róseo na hora, tímido e sem jeito - Amanha cedo as imagens já devem estar liberadas, a gente conversa um pouco. Isso aqui me cheira a algo grande.
- Também acho, chegando as fotos eu já começo a analisar - nos despedimos, ele entrou no carro pessoal dele e partiu. Já eu, refiz o ritual da manhã, mas agora sem a jaqueta, já que o sol estava a pino. Em cima da moto, fui costurando São Paulo até o centro, onde fica a delegacia em que trabalho.
Estacionei a moto na porta do DP e entrei pelo corredor lateral, que dá acesso a equipe interna. Apesar de eu estar com uma sede absurda, o cheiro de corpo e de terra ainda estava bem impregnado no meu corpo, preciso pelo menos lavar o rosto. Entrei no vestiário e fui direto para o meu armário, por sorte eu sempre deixo uma ou duas mudas de roupa aqui, para ocasiões como essa. Enquanto eu pegava minhas coisas, ouvi o barulho de alguém saindo das cabines, me mantive concentrada em arrumar meus pertences para o banho.
- Flávia! - Não deu tempo de eu fingir que não vi, muito menos de fugir. Isabela, uma das delegadas do DP estava no vestiário. Diga-se de passagem, fazendo o que aqui?
- Tudo bem ISa? - e segui em direção ao meu armário, do lado oposto do vestiário.
- Tudo bem Isa? Só isso que você vai falar Flávia? Você está me devendo algumas coisas - mesmo eu de costas mexendo no armário, senti ela se aproximando. Colocou a mão esquerda na porta do armário ao lado do meu, estreitando o espaço.
- Isa, já conversamos sobre isso. E aqui não é o lugar também! - me mantive virada para o armário.
- Não é lugar? Até semana passada era lugar sim - Senti seu corpo bem mais colado ao meu e seu nariz na ponta do meu ouvido. A mão encostou na minha cintura em milésimos de segundos. Mesma velocidade que travei. Não quero.
- ISa, para com isso, você tem bem mais a perder do que eu. - Falei segurando a mão dela, e virando meu corpo. A Isa é linda, mas linda como todas as outras. Não sei que mel eu tenho que depois de um beijo essas meninas querem mais e mais e não me dão paz.
- Olha que você pode sair desse banho e ter uma surpresa aqui fora.
- Isa, dá um tempo, sem forçar a barra - falei voltando para o meu armário e pegando minha toalha e material de banho. Segui em direção ao box, mas não sem antes ouvir:
- Sou bem persistente em quem eu quero - e ela sorriu firme, cheia de si, mas nitidamente frustrada. Seguiu para fora do vestiário, sem olhar para trás. Era só o que me faltava, uma das minhas chefes gamada na minha. Essas mulheres não percebem que é só beijo, só pegação, só isso. Sou incapaz de amar alguém, e nem quero.
O cheiro de terra podre estava me matando. Tomar banho na delegacia não é a coisa mais confortável, mas muitas vezes é o que dá pra fazer. Entrei rápido na cabine, pendurei minha toalha na porta e liguei o chuveiro. Banho aqui é emergencial, só pra tirar esse cheiro horrível, as vezes tirar sangue ou outros líquidos estranhos. Mesmo sendo rápido, não pude deixar de pensar na Isa e em como eu me escondo de problemas caindo em problemas.
Se querem saber eu já namorei, já amei e já fui amada. Hoje eu só passeio de boca em boca, sem vínculos. São raras as que conseguem um segundo lance, quem dirá um suco. Mas antes que me critiquem por isso já aviso, eu sempre deixo claro que a minha intenção é apenas curtir. Algumas meninas desencanam na hora, outras levam de boa e outras ouvem, ignoram e continuam tentando, enquanto isso eu vou levando essa vida, aqui na delegacia, na faculdade, em qualquer lugar.
O banho foi de menos de 5 minutos, mas o suficiente para me sentir bem mais limpa e confortável. Sai enrolada na toalha e segui para os bancos para me trocar. Por segundos de diferença, a Bia fotógrafa não esbarrava comigo zero roupa. Ela entrou no vestiário quando eu estava de calcinha, mas ainda sem nada na parte de cima. Quando escutei o barulho e olhei pra tras com o top na mão. A Bia estava parada, não vermelha, quase roxa, na timidez gigante dela.
- Tudo bem Bia, pode entrar. Precisa de alguma coisa? - perguntei porque a menina travou no vestiário.
- Me falaram que você estava aqui - continuei me vestindo, tentando não acelerar mais ela - Você precisa das imagens do matagal pra agora?
- Não Bia, esquece isso. Depois vemos com calma - ela mudou a expressão de apreensiva para leve em milésimos de segundos. Ela é muito tímida, travada - Você já almoçou?
- Ainda não, acabei de chegar e já vim ver se preciso correr com isso.
- Então vamos almoçar, depois você vê foto de morto - ela voltou a expressão apreensiva. Eu terminei de me trocar e sentei no banquinho para ir colocando o sapato.
- Não estou com fome. Melhor eu subir.
- Sem fome? Lá no matão não tem um butiquim pra comprar nada, você só levou seu equipamento, voltou agora e está ficando vermelha por ter sido pega na mentira. Vai pegar sua mochila e vamos almoçar - ela se manteve apreensiva, com uma expressão desconfiada - Bia, eu sou investigadora, observo todos os detalhes sempre. Vou terminar aqui e só falta pegar meu documento lá em cima. Te encontro em 5 minutos na entrada.
- Mas… Flávia…
- Sem Flávia. 5 minutos lá na entrada para almoçar. Se não aparecer, te busco lá no seu laboratório - ela ficou mais vermelha que antes. Ela deu um sorrisinho desconcertado e saiu do vestiário, sacudindo os fios soltos do coque mal feito. Isso Vai ser divertido, tenho certeza que vai, porque é super na dela, tímida, fechada. E mais ainda, melhor ir almoçar que ficar nessa pilha toda de que precisa agora resolver as imagens, que bobagem. Depois tem pico de burnout e não sabemos porquê . Não custa nada eu almoçar com ela, é quase que uma questão de saúde mental.
Terminei rapidinho de me arrumar, coloquei a bota e arrumei o cabelo. Peguei a carteira e o celular, tranquei o armário e sai. Antes de ir encontrar a Bia, passei na copa, sede é algo que tenho sempre, preciso de uma água geladinha. Assim que entrei na copa, cumprimentei as pessoas que estavam lá e fui direto para o filtro.
- Flávia, você foi lá na desova? Pegou o caso? - um colega começou a puxar o assunto. Sou super gente boa, só que bem na minha, tento um bom convívio com a equipe de trabalho, mas sem muita intimidade ou lero lero. Até mesmo as garotas que eu fiquei não houve muita proximidade além da física.
- Fui sim, está comigo - fui curta e grossa, sem dar corda - Vai dar bastante trabalho.
- Imagino - ele apenas respondeu isso, agradeci mentalmente por não ter que falar absolutamente mais nada. Peguei minha água, pedi licença e sai da copa, mas não sem antes eu ouvir - Claro que vai dar trabalho, mas é óbvio que o viadinho do Cantão protege a sapatão de estimação dele. Me poupe.
Eu não estou em condições para bater de frente com ninguém ou arrumar briga, então em geral estou engolindo muito sapo de muita gente. Estou terminando o quarto ano da faculdade de Direito, no final do próximo ano poderei me candidatar ao cargo de Delegada. Sendo assim, não posso ter nada na minha ficha que ateste contra minha habilidade para assumir o cargo, uma simples briga ou bate boca na copa pode quebrar meu planejamento, isso faz eu evitar. Na vida eu já fui muito mais de bater de frente, em outros tempos eu voltaria lá e no mínimo iria bater no imbecil, mas hoje sou uma pessoa muito mais controlada.
Sai bebendo a água e quase infartando de raiva. O pior é eu ter que calar a boca e não revidar, em nome do maldito bom comportamento. Quando eu avistei a calçada, a Bia já estava lá, mexendo no celular.
- Tudo bem? Está com uma carinha estranha.
- Ah, acabei de ouvir uma merd* tão absurda na copa. E o mais tenso é ter que segurar, não posso meter a mão na cara de ninguém até o final do ano que vem.
- Nossa, nem imagino você fazendo isso.
- Ah, é que você me conheceu em uma fase bem boa, em tempos antigos eu não teria segurado não. Mas não vou estragar nosso almoço, vamos indo. Tem algum lugar que queira ir?
- Não sei, eu nunca comi aqui perto. Sempre trago marmita, hoje que sai correndo e não consegui pegar.
- Eu sempre trago também, nunca te vejo na copa Bia.
- Ah - ela olhou pro chão, envergonhada - eu como lá no laboratório de imagem, acabou nem saindo.
- Ah, isso explica muita coisa - a pergunta é até onde posso mexer, acho que o melhor é nem forçar muito não, nunca falei com ela mais que assuntos de investigação. - Então vamos comer no kilo que tem aqui do lado, pode ser? É um comida boa, não gasta tanto, e eu pelo menos adoro lá.
- Eu te acompanho, não conheço nada por aqui mesmo, é bom pra ir conhecendo.
Classicamente quando duas pessoas não tem assunto, acabam falando sobre o tempo, a cidade e o clima, essas coisas bobas. Ela realmente não deve ser de conversar muito com ninguém, estava travada, quase em nem olhar para o lado.
Chegamos ao restaurante, logo de cara eu avistei uma mesa lá no fundo, longe do barulho.
- Bia, vai pegando a comida, eu vou pegar uma mesa lá pra gente. Depois revezamos. - Sorri para ela tentando ser simpática, esse foi o primeiro momento em que ela acalmou um pouco a expressão, retribuindo o sorriso. Eu sentei rapidamente nessa mesa do fundo, para guardar lugar. Quando peguei meu celular do bolso, 3 ligações perdidas do mesmo número. Aproveitei que ela estava longe e retornei.
- Escritório de Advocacia Cordeiro e Carneiro.
- Boa tarde, recebi três ligações desse telefone. Eu estava aguardando um agendamento de horário.
- Qual seu nome senhora?
- Flavia Albuquerque
- Ah, claro. Eu que liguei pra senhora. Consegui um encaixe com o dr agora a tarde. A senhora pode?
- Qual horário? - Observei a Bia retornando para a mesa.
- O doutor estará aqui a tarde toda, até as 19h. Só a senhora vir.
- Tudo bem, vou almoçar e logo passo por aí. Obrigada. - desliguei o telefone e sorri para a Bia, que estava com uma carinha de perdida, que não sabia se falava, se esperava, o que fazia. Olhei pra ela e mesmo sem nenhuma obrigação expliquei - estava esperando uma reunião com um advogado. Ligaram agora marcando.
- Ah, que bom. Conseguiu pra hoje?
- Por sorte é. Depois que a gente almoçar eu dou uma passada lá. Vou pegar a comida. Já volto. - ela concordou com a cabeça enquanto eu fui saindo em direção à comida. Peguei praticamente o de sempre, uma carne bem frita, bastante salada e meia dúzia de batatinhas cozidas. Voltei rápido para a mesa - O cardápio tem bastante coisa hoje. Gostou daqui Bia?
- Tinha bastante variedade, valeu para conhecer. - Reparei que ela não tinha começado a comer, estava me esperando.
- Pode ir comendo Bia, não precisava me esperar não.
- Ah, o que isso? Você me convidou, o mínimo era eu esperar Flávia.
- Para com isso, sem formalidades.
- Hahaha, tudo bem. Eu acabo sendo super formal mesmo, desculpa.
- Você chegou rapidinho na ocorrência hoje. Mora aqui por perto?
- Não tão perto, mas é perto. O Cantão me ligou falando que minha casa era caminho e perguntou se ele passando lá eu não ia. Acabei aceitando mesmo sendo de madrugada.
- Ah, ele deve ter te escolhido a dedo então. Ele faz bem isso com a equipe. Acaba chamando os de sempre para as coisas. Eu nem estava de serviço também, mas ele me ligou e eu vim rapidinho.
- Ele é bem tranquilo não é?! - falou dando um sorrisinho bobo. Adoro ser investigadora, pego as coisas no ar. Os dois bobões são a fim um do outro, mas na velocidade da timidez de ambos, vão ficar empacados.
- Ele é muito gente boa, tímido que só ele. É super profissional e comprometido. Aproveita, ele deve gostar do seu trabalho, por isso te chamou.
- Ah, espero. Já trabalhei em alguns departamentos bem pesados.
- Ele quer resultado, sempre. Mas sabe respeitar horário, medo, problemas pessoais. Somos amigos de longa data.
- Não imagino que ele seja tímido.
- Vocês tem muito em comum, começando pela timidez - ela ficou vermelha novamente - Ficamos no almoço jogando conversa fora, acho que pra quem, até hoje, só teve conversas pontuais e profissionais, até que rendeu bem o almoço. A Bia tem uma carinha de menina calma, na dela, mas que precisa de uma oportunidade para viver e contar sua história. Um cabelo moreno, acho acho que longo, porque estava em um coque todo bagunçado e quase solto,com a franjona atrás das orelhas, as unhas bem feitas, curtíssimas, com um esmalte escuro, acho que marrom. Uma sensação de que precisa contar quem é, viver. Gostei muito do almoço com ela, de verdade. Eu também estava bem precisando de um bate papo, de alguém diferente pra trocar informação. Não foi nada premeditado, nem desejando segundas intenções, mas foi bem gostoso, vou tentar repetir mais vezes.
Depois do almoço voltamos para a delegacia, no caminho da volta ela já estava bem menos travada que na ida, mas ainda bem tímida e na dela. Vou contar que gostei muito do almoço, faz tanto tempo que ou como só ou com o Cantão, que nem sabia mais a sensação de almoçar conversando. Quando chegamos na delegacia, eu nem entrei, deixei ela na lateral do casarão.
- Bia, eu nem vou entrar no DP, vou aproveitar daqui e ir lá no advogado que eu falei, consegui um horário agora pra tarde
- Ah, entendi - meio desconcertada - Ah, certo. Boa sorte lá. - falando baixinho.
- Não é nada de mais, eu estou terminando de comprar um apartamento pra mim, aí preciso ir lá pegar alguns documentos.
- Sério? Que legal. Eu to bem longe do meu ainda.
- Você é super nova Bia, quando menos perceber já vai ter o seu.
- Eu espero. Ah, amanhã as fotos já vão estar prontas. Eu deixo lá na sua mesa. Pode ser?
- Bia, relaxa. Fica tranquila. Trabalho nunca falta, se não der tempo pra amanha eu pego depois. Relaxa a bisteca. Eu vou indo para não perder o horário, ainda tenho aula hoje a noite.
- Ah… claro. Boa aula Flávia. - Eu estava meio sem jeito também, ela é tão tímida, que posso até estar invadindo o espaço dela, educadamente dei um beijo na bochecha, desse padrão de cumprimento mesmo. Depois disso ela voltou andando pelo corredor lateral da delegacia,entre as viaturas, logo desaparecendo pela porta lateral, de acesso ao contingente local.
Fim do capítulo
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