20. Teoria do Caos
— E agora, Laura? – Ana Clara sussurrou para ela sem deixar de olhar para eles – A gente encara ou corre?
— É... – ela engolia em seco, encarando-a de relance – vamos e fingimos naturalidade, eu acho.
— Seu irmão está com uma cara de bem poucos amigos... – Ana Clara ponderava sorrindo nervosa, acenando para uma Júlia com uma cara tão pouco convidativa tanto.
— Mas nós temos que ir lá – Laura segurou o braço de Ana Clara e a guiou com passos lentos – já nos viram mesmo...
Pararam em frente aos dois. Júlia com seu cenho franzido e maxilar travado encarava o copo ainda cheio enquanto José cruzou os braços, olhando para a irmã de sobressalto.
— Sentem – ele levou as mãos até as cadeiras, e assim elas fizeram. Ana Clara transpirava e engolia a saliva de sua garganta seca pelo nervosismo, enquanto Laura mantinha os olhos baixos.
— Então quer dizer que sua irmã é amiga da minha... – Júlia disse em um tom que ressaltava o “amiga” enquanto José ria com sarcasmo.
— Que ironia, né? – e olhou para ambas.
— Olha, em minha defesa... – Ana Clara começava a falar, mas Júlia gesticulou para que falasse.
— Não tem o que dizer – voltou a falar em seu tom sóbrio – não tem problema nenhum em vocês serem amigas, né?
E se voltou para José, que recuou sabendo do que se tratava nas entrelinhas.
— Ou você acha que seja?
— Não sei, você acha que não? – ele deu com os ombros.
— Minha irmã é uma ótima garota.
— E a minha também – e apoiou as mãos na mesa – com uma família por trás que se importa muito com ela.
— Se importa com ela ou com o que acham dela andar com Ana Clara?
— Dá pra pararem de falar como se não estivéssemos aqui? – Laura disse com estranheza, negando com a cabeça – Qual é o problema de estar com a Ana Clara?
— Todos – respondeu José.
— Nenhum – retrucou Júlia, e ele se voltou para ela – qual é? Você acha mesmo que ela é um problema?
— Eu sou um problema? – perguntou Ana Clara em um tom magoado para Laura, que logo negou.
— Não, ele só é meio babaca às vezes.
— Do que você me chamou, senhorita? – ele elevou a voz, mas Júlia interveio.
— Sua conversa é comigo – e olhou para as duas garotas – tem algum problema de vocês darem uma volta?
Laura se levantou e, antes que ele pudesse fazer qualquer menção contra, Júlia o encarou séria, intimidando-o. Se tinha uma coisa que Júlia era boa era nisso, e Ana Clara logo seguiu com sua amada para fora daquela tempestade que estava para se seguir.
— Quer medir força comigo na frente da minha irmã?
— Você que quer medir força comigo – Júlia respondeu assertiva – e sabe que eu defendo minha família tanto quanto você. Já conversamos sobre isso.
— Mas sua irmã...
— Eu sei que elas têm um caso, tá bom? – disse ela entre os dentes.
— E como você aceita uma coisa dessas, Júlia? – seu tom era tão confuso quanto ele se sentia, mas ela manteve-se rente.
— Não é algo que a gente possa controlar, só aceitar que às vezes... – ela respirou fundo, esfregando a unha entre os dedos – as pessoas são diferentes de nós.
— Você tá me dizendo que devo aceitar minha irmã com outra mulher?
— Se ela não tiver você, quem mais vai ter, José? – Júlia falava séria, encarando-o – Elas precisam do nosso apoio.
— Não, eu... – ele cerrava os olhos, suspirando – só não consigo entender o porquê.
— Você acha que é fácil pra nós? – ela se aproximou dele – Pra mim ter que defender minha irmã de tudo isso o tempo todo? Não, mas eu faço isso pra vê-la feliz, e como você disse...a felicidade deles é a nossa também, não é?
Ele ficou em silêncio, e Júlia complementou.
— E se ela é feliz com outra garota – e apontou com o queixo na direção delas, que conversavam – não sou eu que vou me opor. O mundo já se opõe mesmo. Você não disse que ela estava feliz?
Continuou em silêncio, mas Júlia nada mais disse. Pegou o copo comprido e bebeu até a metade, até que o viu suspirar pesado.
— Só não é fácil, ok? – ele a encarou com sinceridade – Eu não sei como fazer isso.
— Na hora aprendemos – ela se recostou na cadeira – quando nos sentimos ameaçados... – e o encarou sob o olhar franzido – sempre sabemos o que fazer.
Ele deu um longo gole na bebida espumada, e bateu com a língua entre os dentes.
— Se você diz...
— Ana Clara é uma garota incrível, José – ela batia com os dedos contra a mesa – não é por ser minha irmã, mas... – e revirou os olhos por um instante – caramba, ela tem os defeitos dela, mas é muito dedicada pras pessoas que gosta, é a melhor companheira que eu podia ter mesmo sendo tão diferentes e... Odeio admitir isso, mas ela realmente gosta da sua irmã.
— Está me dizendo pra eu aceitar isso?
— O que estou dizendo é que às vezes, pra fazer o que é certo, temos que passar por cima de muitos achismos nossos – disse ela por fim – prefiro errar fazendo o certo do que fazer o que parece devido e ser errado.
Ele balançou o copo entre os dedos, e pressionou os lábios.
— Digo por experiência própria.
— Eu acredito em você – ele respondeu passando o indicador na borda no copo – só queria entender como você age com tanta naturalidade com isso...
— Acredite em mim, tem muita coisa que você não sabe sobre mim.
— E um dia saberei? – disse ele encarando entre as sobrancelhas, dando um sorriso de canto.
— Um dia – ela deu com os ombros – quem sabe?
Júlia sabia que aquilo teria um impacto lá na frente, e torcia pra que fosse positivo. Se o convencesse a ficar do lado da irmã, as coisas seriam bem mais fáceis pra ela, e no final teria um resultado melhor.
— Chamo elas ou...? – ele gesticulou apontando para ambas, mas Júlia negou.
— Não – ela fez uma careta, balançando a bebida – deixa elas aproveitarem um pouco.
Porque nunca sabiam quando seria a última vez.
Ana Clara fazia poses engraçadas fingindo estar dançando, mas Laura só conseguia rir.
— Só você mesmo pra me distrair...
— Está tudo bem – ela apontou com o queixo na direção deles, que conversavam sobre outras coisas – olha como estão ali, tranquilos.
— Então posso me dar o luxo de dançar um pouco com minha garota? – ela fazia um bico com os lábios, e Ana Clara segurou suas mãos.
— Deve.
Ana Clara dançava de forma desengonçada enquanto Laura seguia os devidos passos de dança, assim como muitos ali faziam. Passaram bons minutos daquele jeito enquanto Júlia e José pareciam esquecer que tiveram um embate há pouco. Naquele pequeno espaço, esqueciam quem eram ou o peso de ser elas mesmo. Só eram duas jovens mulheres que apreciavam a companhia uma da outra mais do que uma mera amizade. Eram amantes com um desejo impassível relatado em seus olhos, em um sorriso de canto acanhado, um deslize de mãos uma na outra, um abraço mais demorado do que o habitual.
E quando se distraem, o tempo passa correndo, tanto que quando percebeu, Júlia já estava atrás delas.
— Vamos, temos que ir.
— Mas já? – Ana Clara fazia um bico com os lábios.
— Já, está na hora – e segurou seu braço – e não vamos deixar vocês duas sozinhas aqui.
Caminharam sem dizer nada para fora. Júlia não era o tipo de pessoa que deveria ser contrariada, e seguiram andando atrás dos dois, que discutiam sobre algum assunto trivial que não importava as duas.
Laura segurou em seu braço, e apoiou a cabeça em seu ombro como gostava de fazer enquanto andavam.
Até que sentiu um braço puxá-la pra trás. Eram três garotos de mais ou menos a idade delas que bebiam em um mercado ali perto, sendo que o que puxou estava visivelmente bêbado.
— Ei – disse ele com a voz embargada – pra onde vocês...
Só que Ana Clara não deixou sequer que ele terminasse de falar, o empurrando pra longe, o fazendo dar alguns passos pra trás, confuso, com a cerveja respigando em sua roupa.
— Sai fora, cara! – ela disse em um tom grave.
— Tá maluca, vagabunda? – ele a empurrou de volta, no qual ela retribuiu com um soco na cara dele.
Ana Clara estava longe de ser alguém agressiva, a não ser que mexesse com a garota que ela gostava. Aí sua postura mudava drasticamente.
Só que ela não contava que ele tinha amigos que logo foram revidar o ataque do amigo, que segurava o rosto e rosnava de raiva.
Porém, pior do que uma Ana Clara irada por homens sendo intrusivos era uma Júlia que tinha a sua noite atrapalhada pela ação de terceiros.
— Eu só vou avisar uma vez...
E voltaram a atenção para a voz ríspida que vinha de trás de Laura e Ana Clara.
— Saiam de perto delas, agora.
Só que eles riram e empurraram Ana Clara, que caiu. Quando fizeram menção de a agredirem, nem mesmo José foi capaz, em sua pose pouco máscula entre os músculos franzidos de alguém que nunca tinha se metido em uma briga na vida e passava a maior parte do tempo atrás de um balcão, e nem ninguém fora capaz de impedir Júlia.
Foram suficientes só poucos segundos para que ela sacasse seu canivete da bota, o colocasse entre o braço e segurasse o que foi socado pelo pescoço, com a lâmina contra ele.
— Encostem um dedo nelas que eu corto o pescoço desse aqui.
— Júlia, não... – José pedia, mas poucas vezes alguém tinha visto ela realmente com raiva. A lâmina passava devagar contra a pele, que começava a ficar vermelha.
Quando um deles riu em tom de deboche estendeu o braço para ataca-la com um soco, seus reflexos treinados foram suficientes para segurar seu alvo pelo pescoço e ainda assim, com uma tacada certeira, cravar a faca no braço do homem e puxar de volta, fazendo todos olharem atônitos enquanto ele gritava.
— Jesus Cristo! – ele gritava, segurando o ferimento que jorrava sangue – Por Deus!
Júlia tinha um olhar que poderia ser considerado maníaco. Ela tinha os olhos injetados, e não hesitou ao vê-lo desesperado, empurrando o cara que segurava na direção dele com força, fazendo-os cair.
— Saiam daqui, agora. Eu vou contar até três.
Eles se levantaram trôpegos, deixando os respingos de sangue cair na calçada enquanto corriam para longe dali. Ana Clara e Laura a olhavam boquiaberta enquanto José nada expressava. Na verdade, se sentia mal em ter borboletas no estômago ao ver uma mulher daquele jeito. Ela andava armada, disso ele já sabia porque ela já tinha mostrado seu canivete a ele, mas não esperava que ela fosse enfiá-lo em alguém com tanta naturalidade. Seu rosto nem tremeu...Será que ela era alguma psicopata? Não, ela fez isso pra defender a irmã e sua irmã também. Ela era corajosa pra caralh*.
Queria que ela fosse a mãe dos seus filhos, mas deixou isso consigo mesmo enquanto ajudava as duas.
— Puta que pariu, que merd* foi essa? – Ana Clara perguntava desacreditada, e Júlia deu com os ombros, guardando a canivete.
— É o que acontece quando mexem com a pessoa errada.
— Júlia, você esfaqueou um cara! Você tá maluca?
— Maluca seria de não fazer nada... – e tocou em seu rosto, na direção do machucado – você está bem?
— Estou, mas...porr*, Júlia! Você met*u a faca no cara! Por que não deu só um soco ou coisa assim?
— Ele só vai ganhar uma cicatriz... – ela revirou os olhos – olhando pra ela aprende que, na próxima que mexer, leva outra.
Júlia tinha boas reações para ter essa reação considerada exagerada. A menor menção de ataque a deixava apreensiva, e as três pessoas que estavam com elas eram inofensivas. José mal podia se defender, e Ana Clara não fazia mal a uma mosca morta, mesmo tendo esse ato de coragem pra defender Laura.
E eles não se sentiram ameaçados nem mesmo pela presença de um homem, o que a levou a concluir rapidamente que eles não tinham pudores em ataca-los com o que podia, além de estarem bêbados. Homens alcoolizados costumam fazer barbaridades e colocar a culpa na bebida e saírem impunes por isso.
Mas com Júlia, as coisas funcionavam diferentes. Ou ela retribuía na mesma moeda, ou em um preço maior. Nesse caso, tinha dado o aviso, e esperava que tivesse sido bem dado, o que só fez confirmar a fama de que ela era alguém que não deveriam mexer, e muito menos com aqueles que ela protegia. Uma forma de retribuir o favor de estar ao lado dela, acreditava assim.
— Caramba, Júlia... – José dizia desacreditado – onde aprendeu a manusear uma faca tão bem?
— Sério que se importam com isso? – Ana Clara revirou os olhos – Quer saber? Deixa pra lá – e se voltou para Laura – você está bem?
— Bem... – ela continuava boquiaberta – sua, é... Irmã nos salvou, né? Claro que poderia, bom, ser menos, é... Com menos sangue, mas está tudo bem, e acho que sua cara vai amanhecer dolorida amanhã.
— Isso é o de menos – ela dizia arrumando a roupa, e tentando seguir o caminho para casa – se você der um beijo, talvez sare logo.
Ela revirou os olhos, rindo e comentando baixinho.
— Só isso?
— Bom...pra começar – Ana Clara deu um sorriso de canto – sim.
José olhava ainda meio desacreditado para Júlia, que se prestou a olhá-lo de soslaio.
— O que foi? – disse ela entre os dentes – Te falei que na hora, a gente sabe o que fazer.
— Você é a mulher mais incrível que já conheci, Júlia – seus olhos praticamente brilhavam – não tenho muito o que dizer além de te admirar.
— Ah, obrigada – ela riu sem graça – eu acho.
Talvez em ver que Júlia fazia o que podia pra proteger aqueles que ela gostava fez com que ele absorvesse melhor tudo que ela tinha dito sobre sua irmã e as relações. Júlia era forte e imponente, corajosa como ninguém que ele tinha conhecido, e era decidida. Admirava esse traço nela justamente por não o ter. Se sujeitava a cosias que não queria, ou tinha entendimentos só por considerar que era certo. Ela, não. Ela fazia o que seu coração dizia.
E talvez isso fizesse ele se decidir em ficar do lado da irmã e ser tão forte como Júlia era para a sua.
Mas também Júlia, envolta em sua razão, esquecia que tudo que fazia ali trazia consequências para todos. Inclusive quando, no outro dia, não era segredo para ninguém que, em uma deturpada versão, a grande maioria da cidade pequena já sabia do incidente.
Incluindo os pais de Laura, que ouviram a tudo atentamente por terceiros, e estavam dispostos a ter uma conversa séria com os dois filhos mais velhos envolvidos em uma desordem daquele tamanho.
Assim como a íntima presença de uma companhia diferente, a quais muitos diziam viver com ela mais do que eles sabiam.
Mas não só José e Laura, principalmente ela, estariam prestes a se envolver em uma discussão homérica.
Graça e Emanuel esperavam pacientemente para que as duas acordassem e se reunissem na mesa. Coralina, por outro lado, não estava realmente a par da situação e sabia, conhecendo seus pais, que algo estava errado.
O que foi concretizado no momento em que sua mãe se ajeitou na cadeira, engoliu em seco e as encarou.
— Meninas, podemos conversar?
Fim do capítulo
Júlia, que só estava esperando o fogo no parquinho acontecer, mal podia saber que seria vindo dela...
Agora, me pergunto no que tudo isso vai dar? Não sei, mas não espero em coisa boa.
Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 30/08/2022
Olha a faca kkkkk.
Lea
Em: 30/08/2022
Gostei do embate da Júlia em defender a Ana Clara,diante a José!
Esses bêbados mexeram com a pessoa errada,foi bem feito o que a Júlia fez!
Os pais da Coralina, será que vão tomar medidas drásticas,tipo confiscar o canivete Júlia ??
Creio eu que,o problema maior vai ser com os pais da Laura.
Espero que a polícia não entre no caso.
*
E esses merdinhas devem ter mentindo,sobre como tudo aconteceu.
*
Boa noite,shoe!
Só complicando um pouquinho mais,a vida das nossas garotas!
Resposta do autor:
Boa noite! O capítulo posterior vai dar uma luz nisso, mas espero que não a pegue de surpresa rs
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