21. Uma de nós
Na noite anterior, antes de chegarem em casa, Ana Clara fez um simples pedido.
— Posso ter um momento em particular com a Laura?
Júlia deu com os ombros em um sinal positivo, e José fez o mesmo. Sabia que elas tinham muitos momentos a sós, e um a mais ou a menos não faria diferença. Caminharam um pouco mais à frente e elas fizeram uma pausa.
Ana Clara pigarreou e pegou de seu bolso algo que estava planejando há algum tempo. Entregou o envelope nas mãos de Laura, que olhou surpresa.
— É pra mim? – ela sorriu, abraçando-a.
— Sim, é... – Ana Clara passou a mão no pescoço devagar – espero que goste.
Nele tinham algumas folhas de papéis escritas à mão, e um fio de aço enrolado na forma de um pequeno círculo.
— É que...nós nunca sabemos o que pode acontecer amanhã, então... – suas bochechas ruborizavam – eu quis deixar alguma coisa contigo. São alguns pensamentos e uma lista de música que um dia você pode gostar, bem...
— E isso aqui? – disse ela pegando o pequeno metal, e suas bochechas queimaram ainda mais.
— É um sinal pra dizer que quero você comigo, mesmo distante.
E mostrou o mesmo preso em seu cordão, fazendo Laura praticamente derreter. Não se conteve e deu um selinho em seus lábios, seguido de um na sua bochecha.
— Ana Clara, eu nem sei o que dizer, eu...
Ela prendeu o anel improvisado em seu dedo, e deu um largo sorriso, abraçando-a.
— Eu te amo – sussurrou em seu ouvido, e Ana Clara fechou os olhos diante aquele tenro momento.
Logo sentiu algo envolver seu pulso, e viu que era uma das várias pulseiras que pendiam em seu braço. Uma de miçangas coloridas, com sua inicial no meio.
— Digo o mesmo pra você.
— Nunca mais tirarei isso – e balançou a pulseira em seu fino braço. Elas se olhavam com tanto carinho uma com a outra que Júlia sequer quis olhar para trás. Sabia que aquele momento se tratava delas e para elas.
Bem diferente do clima soturno que assolava a mesa no dia posterior.
— Sobre?
— Sentem-se – Emanuel puxou a cadeira para que elas se sentassem – por favor.
Ana Clara olhava de canto para Júlia, que mantinha a posse impassível. Coralina olhava para as duas com os olhos cerrados. Na única vez que as deixam sair sozinhas, aprontam alguma coisa? Conhecia bem seus pais, e tinha certeza que, se estavam as chamando pra conversar, algo sério tinha acontecido.
— Eu nem sei como começar isso, mas... – Graça olhava com pesar para o esposo, que assentiu com um aceno para que continuasse, e prendeu o olhar nas duas visitantes – Júlia, minha filha, o que você fez ontem à noite? E por que a cara da Ana Clara está desse jeito?
— Não foi nada demais – ela respondeu cruzando os braços – saí com meu amigo, Ana Clara saiu com a dela, passamos um tempo, tivemos um contratempo e viemos embora.
— Então por que a vizinha, quando o Emanuel saiu pra trabalhar, veio me chamar pra dizer que estão comentando por aí que você esfaqueou o Fabrício Salles?
Ana Clara perdeu a respiração por um segundo enquanto Coralina olhava incrédula para as duas.
— Você fez o quê?
— Ele fez por merecer – Júlia disse com uma tranquilidade que assustou a todos da mesa, menos a Ana, que já estava mais que acostumada com esse traço de personalidade.
— Filha, que motivo você teve pra dar uma facada nele? – Emanuel falava paciente, mas estava incrédulo demais pra conceber que isso tinha realmente acontecido.
— Ele agarrou a Laura e socou a Ana Clara – apontou para ela, que concordou com um aceno enquanto segurava o rosto machucado, visivelmente roxo e vermelho próximo do olho.
— E isso é motivo pra você meter uma facada nele, Júlia?
— Só assim pra ele respeitar mulher, pelo visto – ela cruzou os braços, encarando os dois.
— Você tem noção do que fez, Júlia? – Coralina se levantou balançando os braços – Fabrício é filho de gente importante daqui.
— E? – ela deu com os ombros – Por que tem dinheiro tem direito de fazer o que quiser?
— Mas isso não te dá direito de sair esfaqueando todo homem que for rude com você, Júlia – Emanuel negava com a cabeça, decepcionado, mas Júlia sequer se importou. Era cabeça dura demais pra reconhecer que poderia ter exagerado, ainda mais quando tinha convicção que não tinha feito nada demais além de proteger as garotas.
— E se você tivesse matado ele? – Graça falava em um tom pesaroso, mas ela voltou a dar com os ombros, olhando para o lado.
— Se quisesse, tinha feito isso há tempos.
— Já chega – ela se levantou de sobressalto – me dê essa faca.
— Não? – Júlia respondeu surpresa.
— Você esfaqueou um homem na rua a troco de quê, Júlia? – Graça usou um tom de voz ainda mais grave – Me dê essa faca, agora.
— Não vou fazer isso – ela se levantou, batendo as mãos na mesa – eles tentaram nos machucar, só fiz nos defender!
— No meu teto não vive nenhuma marginal que machuca os outros na rua – a matriarca destilava as palavras em uma mistura de frustração e raiva – ou você me dá essa faca, ou vai embora.
— Vocês vão ficar do lado do babaca que bateu nela e tentou se aproveitar de uma mulher? – ela meneou a cabeça, concordando ao olhar para todos ali – Tudo bem então.
E entrou no quarto a passos largos, deixando Ana Clara em uma saia justa difícil de lidar, inclusive quando viu Graça praticamente ruir em ver sua garota preferida agir desse jeito com ela, voltando a se sentar e apoiar a mão na cabeça. Emanuel, por outro lado, só negou de um lado para outro.
— O que deu nessa menina? – perguntou para si mesmo.
— Ela só quis nos defender – Ana Clara respondeu ainda assim – eles foram pra bater em nós, ela pediu pra que eles se afastassem, eles não fizeram isso, então ela fez isso.
— Por que ela simplesmente não... – Coralina começou a falar, mas Ana Clara prendeu o olhar em sua direção.
— Porque ela tem medo das pessoas – e voltou os olhos para o casal – passamos por muitas coisas ruins, e ela nos defende como pode, e outra...Se ela não estivesse lá, não sei o que seria de nós, de verdade.
— Mas nada justifica o fato dela...
— Mas se eles tivessem feito coisas piores com nós, seria justificável? – Ana Clara deu com as mãos no ar, e eles ficaram em silêncio.
— Mas não dava pra...
— Adivinhar? – Ana Clara se voltou para Coralina – Não, mas a gente tinha que pagar pra ver?
E se levantou, indo atrás de Júlia, que arrumava sua pequena mala.
— O que você está fazendo? – perguntou ela enquanto a via colocando com raiva algumas mudas de roupa.
— Indo embora – se voltou para Ana Clara antes de continuar o ato – se não sou bem vinda, então eu tenho que sair.
— Não, Júlia, eles só estão estressados com...
— Não, Ana Clara – ela falou em um tom sério – eu não tenho cabeça pra lidar com isso. Se querem que eu vá porque fiz merd*, eu vou.
— E onde vamos ficar?
— Você fica – ela respondia indo em direção ao quadro – eu me viro.
— Tá maluca? – Ana Clara levantou uma das sobrancelhas, surpresa – Nunca que vou em qualquer lugar sem você.
— Então... – Júlia pegou a mochila e atirou em sua direção – comece a arrumar as coisas.
Não muito distante dali, as coisas não estavam diferentes.
— Vocês perderam o juízo? – a mãe deles gritavam contra os dois, um do lado do outro, em pose rente – Como é que se metem em uma coisa dessa?
Nada respondem, e o pai faz uma cara de escárnio.
— Não vão falar nada? – ele olha para o filho, dando um passo para frente – Hiroshi?
Ele negou, e logo recebeu um tapa no rosto que o fez virar.
— Eu estou falando contigo, seu moleque!
— Ela tentou defender a Laura – ele se prestou a apenas responder, sem se mexer, mesmo com a marca dos dedos no rosto começando a transparecer vermelhas – só isso.
— E agora vai se deixar defender por uma mulher? – ele dizia entre os dentes, com ironia – Você não é homem pra defender sua irmã?
José mantém a pose reta, e nada mais diz, mesmo sendo estapeado mais uma vez no rosto, apenas fechando os olhos quando isso aconteceu.
— Pai, para com isso, por favor...
— Calada – sua mãe interviu, apontando pra ela – com quem você estava, Laura?
Ela nada disse, e sua mãe deu passos rápidos até ela.
— Fala, Laura! Quem é a menina que você estava?
Laura olhou de relance para José, que somente assentiu com a cabeça, em um sinal velado que ela poderia falar o que desejasse, que ele estaria ali.
Ela engoliu em seco, pressionou as mãos contra as coxas, arrastando as unhas sob o tecido de seu vestido preferido.
Júlia saiu de casa sem olhar pra trás, mas Ana Clara continuava relutante. Olhava para o quarto com uma sensação amarga de sair dali assim, mas possivelmente voltariam no final do dia, ou até antes. Parou na sala, olhou de relance para o casal que continuava sentado na mesa e nada disse. Não tinha nada que poderia ser dito. Naquele caso, só o tempo iria ruminar aquela breve discussão.
Saiu de casa e fechou o portão, deixando uma Coralina confusa sobre o que deveria fazer. Deveria ir ou não? Se fosse, estaria compactuando com o que fora dito, mas se não...
Poderia se arrepender amargamente de não ter dito nada melhor para aquela pessoa que dividia uma casa com ela por tanto tempo. Apesar dela ser uma estranha que a cada dia conhecia mais, já a considerava da família.
E seus pais também, no fundo. As amavam, sobretudo Júlia que passava mais tempo com eles, os ajudando, ouvindo, conversando, se importando. Talvez tivessem se arrependido no momento que falaram aquilo, mas também não deixariam aquela atitude dela passar impune. Corrigiram como faria com Coralina.
E esta correu pela rua, indo atrás das duas que caminhavam a esmo com a mochila a tiracolo.
— Ju, você não pode fazer isso – disse Coralina baixo, mas logo aumentando o tom – isso não é justo!
— O que não é justo, Cora – ela se virou para a amiga – é que o tempo todo eu só tento fazer o melhor para todas nós, e sempre acabo com a errada!
— Mas você machucou alguém! – ela dizia desacreditada – Isso não é justo!
— E deixar machucarem Laura e Ana Clara é justo? – Júlia deu com os ombros – Não.
— E isso é motivo pra sair de casa assim? – Coralina pressionava os lábios – Sabe que meus pais só estão com raiva.
— Eu só não quero ser um empecilho pra vocês.
Júlia poucas vezes falava com tanta emoção quanto falava agora, o que fez os olhos de Coralina marejarem.
— E se eu tiver que arcar com minhas atitudes assim, não tem problema, só não quero...
— Para com isso, Júlia!
Aproximou-se dela e tocou seu rosto com a ponta dos dedos.
— Você não é um empecilho. Nós te amamos.
E voltou os olhos para a outra, que sentia a emoção transbordar em si.
— E você também, Ana Clara. Vocês se tornaram parte da nossa família. Jamais serão um problema.
Júlia pressionou os lábios, encarando Coralina ao segurar suas mãos. Sua respiração estava rarefeita, e sentia como se, afinal de contas, sempre estivesse em casa quando se dizia respeito a Coralina e sua família que as acolheu melhor do que podia imaginar. Ana Clara a abraçou com força, e logo em seguida Coralina. Era um momento bom demais para não ser compartilhado.
Mas, não longe de onde estavam, Laura abria a boca devagar e proferia palavras nunca antes pensadas em serem ditas em voz alta.
— Ela é minha namorada.
— O quê? – sua mãe dizia incrédula. Na verdade, não sabia se tinha entendido o que ela tinha dito.
— Eu disse que... – e fechou os olhos – ela é minha namorada. Eu sou gay.
— Você é o quê? – seu pai gritava, segurando sua roupa com força, e sentiu os braços do filho segurarem o seu.
— Tira as mãos da minha irmã – ele disse em um tom ameaçador, e a briga ali se assolava.
Ela tinha o feito. Foi mais rápido do que imaginava, e bem menos indolor. Sua mãe jazia sem reação sentando-se no sofá enquanto pai e filho cravavam uma briga física.
E se ela tinha feito, então...
— Ana Clara – ela murmurou consigo, e correu em direção ao portão, seguindo para a rua – Ana Clara!
Elas estavam a poucas quadras dali, tempo suficiente para que as alcançasse. Viu Ana Clara abraçada as duas quando interrompeu o momento e a segurou com força pelo ombro.
— Laura? – ela a olhou assustada, e seus olhos transbordavam lágrimas.
— Você ainda está aqui... – e a abraçou com força, cravando as unhas contra sua costa.
— O que aconteceu? – perguntou Coralina na tentativa de acalmar a amiga.
— Eu fiz o que você me disse – disse olhando para Júlia – eu falei pros meus pais.
— Sério? – ela arqueou as sobrancelhas, surpresa.
— E agora? – perguntou Ana Clara tão surpresa quanto, sem se descolar dos braços de Laura – O que acontece? Eu posso ficar?
Nada falaram, e ela prosseguiu.
— Eu não me imaginaria em outro lugar que não seja com ela – e entrelaçou suas mãos com a de Laura – por favor, Júlia.
Só que as tramas do destino não funcionavam conforme o sentimento de um ponto desconexo do universo. Aquilo era um mundo cheio de probabilidades, e elas corriam conforme as peças eram mexidas.
E dois corpos não podiam ocupar o mesmo espaço.
E Júlia sabia disso. Coralina sabia disso. Tinham pesquisado com afinco isso, mas sempre chegavam na mesma resposta. Queriam dar um destino diferente a ela, mas chegaram a conclusão que deveriam apenas deixar as coisas simplesmente acontecerem entre elas.
Para pelo menos, por um momento, terem o que tanto desejavam.
Júlia segurou sua mão, e a encarou sem dizer nada. Ana Clara foi se afastando devagar de Laura na medida em que ela percebia o que ela dizia no olhar. Coralina, por seu lado, segurou a amiga e apoiou a cabeça em seu ombro.
— Ana Clara... – Laura sentia seus lábios trêmulos enquanto sua amiga a abraçava – por favor, não...
Ela não conseguiu dizer nada. Ouviram o barulho de terra tremer abaixo de seus pés. Júlia já tinha ouvido aquilo antes, há um tempo bem longe dali.
— Até logo... – Ana Clara dizia tentando engolir o choro – nós iremos nos ver logo, eu juro.
E, com a mão ainda pendendo no ar, sua visão fora invadida por um clarão que as fizeram fechar os olhos e, em um só instante, tudo ao redor delas se tornou nada.
Fim do capítulo
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