19. Quem dita as regras do jogo?
— Eu conheci alguém.
Desde o ocorrido daquela noite, José mal tinha falado com a irmã. Talvez a vergonha e receio da situação fez com que não se falassem além do habitual, mas nada que impactasse uma Laura que não pensava em outra coisa além das madeixas de Ana Clara que correram por seus dedos, o ar pesado no toque, as carícias compartilhadas.
Primeiros amores costumam ser aterradores, e naquele caso, não seria diferente, mesmo sendo derivado de uma situação atípica. Laura, que olhava distraída ao relento imersa em pensamentos, balançou a cabeça aturdida assim que ouviu a voz do irmão.
— Você o quê? – perguntou ela – Conheceu alguém?
Ele concordou, e ela demonstrou notável interesse pelo que ele tinha dito.
— Sério? – disse ela o seguindo com os olhos enquanto desencaixava alguns produtos – E como ela é? É uma garota?
— Sim, e ela é bonita, educada, bastante gentil... – ele meneou com a cabeça, dando um sorriso de canto.
— Você a chamou pra sair?
— Estou pensando – ele colocava mais uma caixa na mesa – mas não em um encontro. Só gostei de passar o tempo com ela.
Ela deu um sorriso sugestivo, negando com a cabeça.
— Sério mesmo?
— Não posso ter amizades? – ele levantou uma das sobrancelhas, rindo.
— Não é isso, é que você nunca chega falando que conheceu alguém assim...
— Não é só você que conhece outras pessoas – ele disse entre os dentes, e ela abaixou a cabeça, entendendo bem o recado.
— E essa moça tem nome?
— Não acho que você conheça... – José ficou de costas, guardando os mantimentos no armário.
— Nunca se sabe – ela deu com os ombros, e ele virou para olhá-la, com o sorriso de canto.
— Ela se chama Júlia.
Laura cerrou as sobrancelhas, e riu consigo.
— Eu conheço uma Júlia, mas tenho certeza que não é a mesma.
— Por quê?
— Porque a que eu conheço é o oposto do que você falou – e pressionou os lábios, lembrando das situações em que estavam próximas uma da outra – ela é ranzinza, mau humorada e não tem nada de gentil. É direta até demais.
— Então realmente não é a mesma – José pegou mais outra caixa do chão – se você conhecesse essa, gostaria dela também.
— E você quer chama-la para onde, exatamente?
— Pro cinema, eu acho... – ele deu com os ombros, apoiando as mãos no balcão – você não quer ir também? Pode chamar a sua, hm...amiga, a Ana Clara, se quiser.
Laura sentiu suas bochechas enrubescerem, e sequer conseguiu disfarçar. Olhou para o irmão como se procurasse por respostas para aquela atitude, mas ele aparentava estar normal. Das duas uma, ou ele estava ignorando completamente o que ela tinha dito ou levando as coisas por debaixo dos panos, como uma mensagem cifrada a qual só os dois reconheciam.
De qualquer forma, para Laura, aquilo significava mais do que ele podia imaginar.
— Claro, se quiser chamar a Cora também...
Levantou-se e seguiu até o irmão, dando um abraço de lado nele, apoiando a cabeça no ombro. José ficou com a pose rija, não era bem acostumado com aquilo, mas entendeu o que ela queria dizer com aquela demonstração de afeto.
Os poucos dias após isso passaram lentamente, dentro da habitual rotina entre os pares, o que foi quebrado quando José, bem vestido e com o cabelo penteado, seguiu até o local indicado por Júlia na vez em que conversaram.
As ironias do destino fizeram com que ele não fizesse ideia de quem Júlia se tratava, e isso se vinha justamente por ele não fazer parte de como era a rotina da irmã. Vez ou outra via Coralina, mas não sabia onde ela morava, por exemplo, e muito menos que Júlia e Ana Clara viviam ali. Sua vida era basicamente de casa ao trabalho e vice-versa, com o círculo de amizades fechado ao pessoal da comunidade em que viviam.
E, como era de se esperar, Júlia não fazia ideia de que aquela pessoa em específico seria irmão da Laura. Não podia julgar pela aparência em dizer que se pareciam, mas também o nome das irmãs não tinha sido citado em nenhum momento na tentativa de não trazer à tona a identidade da pessoa que tinham compartilhado as histórias.
Então ele bateu na frente de casa, e olhou com estranheza ao ver a senhora que o recepcionou.
— Boa noite, é... a Júlia mora aqui?
— Você está procurando a Júlia? – ela cerrou as sobrancelhas, surpresa – A Júlia, mesmo?
— Sim, senhora, ela está?
— Sim, é... Só um instante, querido – e se voltou para dentro da casa – Júlia! Tem um rapaz procurando por você.
E, sem demorar muito, Júlia apareceu com as vestes habituais. Uma calça jeans lavada de cintura alta levemente gasta, a camiseta preta lisa por dentro dela, a jaqueta complementando o visual junto aos pesados coturnos que geralmente usava no trabalho pesado.
— Pensei que não viesse – Júlia disse assim que chegou ao portão, e como era de se esperar Graça olhava a cena atônita. Um rapaz bem-apessoado vinha busca-la na porta, sendo cordial. Seria um paquera? Um namorado?
— A senhora me permite leva-la ao cinema? – disse José em sua pose de cavalheiro, e ela riu.
— Querido, à vontade, leve mesmo essa moça pra passear – disse ela em um sorriso – só não cheguem muito tarde.
— Posso? – ele estendeu o braço para que ela segurasse, e ela riu, negando.
— Estou longe de ser uma donzela, mas agradeço.
— Eu acho que você tem muita personalidade em estar parecendo a vilã de um filme – disse ele apontando para suas vestes – e então? Você que vai escolher o filme.
— Você não disse que ia chamar a sua irmã ou coisa assim? – Júlia cerrou os olhos ao perceber que faltava alguém.
— E chamei, mas ela disse que ia nos encontrar depois. Ela... – José pressionou os lábios, procurando as palavras que melhor se adequasse – acabou se ocupando com umas amigas, aproveitando que nossos pais não estão em casa esses dias, sabe?
— Ah...sei bem como é isso.
Júlia não sabia como era isso porque nunca tinha passado por isso, já que não tinha uma irmã adolescente, mas vislumbrava disso quando Ana Clara sumia entre suas desventuras.
E, como era de se esperar, ambas estavam bem acompanhas uma com a outra, sobretudo com Ana Clara se deleitando entre as pernas de sua amada, que segurava sua cabeça com força trazendo-a para si enquanto sentia que lentamente estava chegando ao seu ápice. Quando o fez, Ana Clara debruçou-se entre ela e, devagar, se deitou ao seu lado, acariciando seu rosto suado e ofegante.
— Você vai me viciar nisso – Laura a segurou pelo cabelo e a beijou enquanto se abraçavam.
— E eu então...
Poucas vezes Ana Clara tinha sorrido de forma tão genuína quanto para Laura, que o retribuía com seu largo sorriso que fazia seus olhos se tornarem apenas um breve risco no seu rosto.
— Fique aqui comigo – Laura trouxe as mãos de Ana Clara até seu peito – pra sempre.
“Eu não quero voltar”, pensava Ana Clara, “não quero ter que dizer adeus para isso.”
— Não tem nada que eu mais queira na minha vida do que isso.
E nisso, Ana Clara foi sincera, até mais do que queria.
Laura não queria que Ana Clara fosse embora. Não era do tipo possessiva, mas desejava passar mais tempo com ela, quem sabe a vida toda, assim como vislumbrava embebida em paixão. Tinha a vontade de simplesmente passar o tempo todo com ela e falar sobre qualquer coisa, mas ela também tinha uma vida além daquilo, e era o que mais a doía. Parecia não suportar carregar todo aquele fato em suas costas.
Ana Clara sentia o mesmo, era inegável. Cada vez mais envolvida com a garota, e cada vez dando mais vasão ao seu instinto como ela quando se encontravam. Não conseguia parar de pensar nela e em como seria se fosse embora dali. Não faria falta para ninguém se ficasse, mas ainda assim, não era algo que pudesse escolher só. Ainda tinha Júlia, e Júlia era o peso oposto que não podia ser ignorado.
Laura a segurou e voltou a beijá-la durante um longo período de tempo. Separaram-se, mas ainda assim ficaram abraçadas, até que Laura sentou-se ao lado dela, com um sorriso traquina no rosto.
— Meu irmão nos chamou pra sair com ele – e se levantou da cama – e não podemos dar essa desfeita.
— Seu irmão? – Ana Clara arqueou as sobrancelhas – Sério? Com nós duas?
— Sim – Laura procurava por sua roupa no chão – na verdade, ele e outra garota que ele conheceu.
— Namorada?
— Não, ele diz que é só amiga, mas... – e fez uma careta sugestiva – acho que é sim namorada.
— Um encontro de casais, então? – disse Ana Clara, levantando as sobrancelhas, e Laura riu.
— Somos um casal?
— Não somos? – Ana Clara retrucou fazendo uma careta o suficiente para Laura se deitar em cima dela lentamente.
— Qualquer coisa, contando que seja contigo.
Ana Clara mordeu o lábio inferior, triunfante, e voltou a beijar a figura que tão estimava.
— Não podemos nos atrasar, Ana Clara, sabe como...
— Não tem problema demorarmos mais um pouquinho, não acha?
E deram prosseguimento a aqueles intensas carícias que se resultariam em uma só coisa.
Já no cinema, Júlia e José assistiam a um filme de ação genérico. Dividiam a pipoca, mas cada um nos seus limites.
Júlia não entendia tão bem de homens, mas bem sabia que eles costumavam ser educados só quando queria alguma coisa. No entanto, o que a fez se sentir à vontade com aquele em específico era que ele lembrava, de algum modo, seu melhor amigo e confidente. Não só pelo lado respeitador, afinal se tivesse chance de dar em cima dela, já tinha o feito, mas sim o jeito que se portava, tímido, recluso, mas que podia falar horas sobre o que gostava se assim se sentisse à vontade.
Ela não se dava bem com a maioria das pessoas. Não se encaixava em nenhum arquétipo, e encontrar alguém que conseguia interagir por tempo superior a alguns minutos já era louvável. Talvez tinham se dado bem justamente por não estarem procurando nada além de uma companhia que os ouvissem em sua rotina pesada.
Ele entendia como era ter responsabilidades. Administrava os negócios da família e tinha que ser o homem da casa na ausência do pai. Júlia era o homem da casa mesmo sem ser um, e José a admirava justamente por ser uma mulher forte. Ambos eram sérios e centrados no que tinham que fazer, mas ao mesmo tempo se cansavam de ter que ter essas imposições em suas vidas. Cada um de um jeito diferente, mas que resultava na mesma coisa.
Terminado o filme, saíram comentando sobre ele, mas mal tinha começado a noite para eles.
— Falei pra minha irmã que podia nos encontrar na danceteria aqui perto...não quer dar uma passada por lá?
— Mas eu nem sei dançar – logo disse Júlia.
— Nem eu, sou um dançarino horroroso – ele disse rindo – mas lá tem um espaço bacana pra conversar. Não quer tomar um refrigerante? Pelo menos pra esperarmos ela.
— É, está cedo mesmo... – ela disse olhando para o relógio de pulso, dando com os ombros – vamos lá então.
Chegaram no espaço, que estava parcialmente vazio. A música tocava baixo, então procuravam uma mesa para quatro pessoas ali, sentaram-se e, como dito, ele foi até o balcão e voltou duas Coca-Cola em garrafa.
— Um brinde – ele tocou sua garrafa na dela assim que chegou – às novas amizades.
Ela brindou de volta, e deu um sorriso de canto logo que ele se sentou de frente para ela.
— A música aqui é boa – disse ele apontando ao redor – é um ambiente legal.
— Por que você está sendo tão legal comigo? – Júlia deu um gole no refrigerante gelado.
— Porque eu fui com sua cara – ele apontou para ela com a garrafa – acha que estou te cantando?
— Não sei – ela deu com os ombros – está?
— Não tenho segundas intenções – ele deu com os ombros assim como ela, olhando ao redor – se essa é a pergunta.
— O que tiver de ser, será, não? – ela levantou uma das sobrancelhas, pressionando os lábios tentando conter o sorriso irônico.
— Acho que é porque nunca conheci uma mulher como você – ele fez uma cara pensativa, e voltou a beber o refrigerante – então não penso em outra coisa além de te conhecer mesmo.
— Devo levar isso como um elogio?
— Não sei, deveria? – ele deu a retórica, e ela sorriu.
— Então devo confessar que você é uma grata surpresa que me apareceu – ela concordou com a cabeça, e ele deu com as mãos no ar.
— Agora isso eu vou levar como um elogio.
— Leve, porque não sou de fazer isso.
Conversaram a fio, mas ele olhava de relance para a porta na esperança de que Laura aparecesse. Não era de se atrasar, e já estava alguns minutos atrasadas, e Júlia percebeu que ele começava a ficar inquieto.
— Está tudo bem? – perguntou ela ao vê-lo assim.
— Está, é que...minha irmã está atrasada – ele franziu as sobrancelhas – ela não é de demorar e também...não queria parecer que estou mentindo pra você.
— Não, que isso – Júlia riu, apoiando sua mão no braço dele – relaxa, não pensei nisso não, está sendo legal a conversa.
José sorriu, animado, e concordou com um aceno.
— É, ela que perde, né?
E continuaram a conversa. A algumas quadras ali, Laura e Ana Clara caminhavam uma do lado da outra, evitando se tocar com receio de que poderia ser estranho para os demais. No entanto, foi inevitável para Ana Clara ao menos segurar seu antebraço enquanto caminhavam.
Laura sentiu um calor subir do seu estômago indo em direção ao seu peito enquanto andavam ali próximas uma da outra. Chegaram até o local indicado, e procuraram pelo irmão dela.
— Tem certeza que ele está aqui? – perguntou Ana Clara olhando ao redor.
— Tenho, só temos que...
Viu ele no balcão, e foram em sua direção, já com outras bebidas em mãos. Laura acenou e ele parou para cumprimenta-la.
— Você demorou – ele cerrou as sobrancelhas – vamos, estou sentado aqui.
E elas tiveram que esperar para saber se ele realmente estava indo em direção a Júlia, que não estava com sua cara fechada habitual, mas sim mais animada que o comum. Ele se sentou de frente para ela, colocando a bebida espumosa em sua frente, com um sorriso largo.
— Nem fodendo... – Ana Clara murmurou atônita enquanto ele acenava para elas. Júlia, ao se virar para ver para quem ele estava chamando, teve a mesma reação que Ana Clara, mas em silêncio. Ele continuou acenando pra elas, mas ambas ficaram sem reação olhando para os dois.
— O que foi que aconteceu com essas meninas? Vou lá pra...
Júlia segurou seu braço com força, não com a delicadeza de outrora, chamando sua atenção.
— Sabe aquela menina que está com sua irmã? – ele concordou assim que ouviu sua voz proferir aquelas palavras em um sussurro imediato – É a minha irmã.
E foi a vez dele olhar em choque para ela, e para as garotas que estavam a poucos metros dali, sem expressar nenhuma reação além dos olhos brevemente arregalados e os olhares em soslaio uma para outra, dizendo entre si o que deveriam fazer.
— Só pode estar de brincadeira... – disse ele entre os dentes.
Fim do capítulo
E aí, as coisas aqui acontecem por coincidência ou é só uma infelicidade do destino?
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