A Justiceira por caribu
Um assassino à solta
O dia já começava a se despedir, com o sol se escondendo preguiçosamente atrás da colina. O clima estava abafado, apesar de ser outono, como se o verão se recusasse a deixar o país. Parecia ainda estar festejando, comemorando o fim da ditadura militar no Brasil. Por isso, os botecos da cidade já começavam a se encher, com os trabalhadores tomando um refresco, muitos brindando o direito de ir e vir, incluindo Sara, uma das mulheres a empunhar um copo de cerveja, naquela tarde quente de 1º de abril de 1985.
Como toda brasileira, Sara comemorava a saída dos militares do poder, mas há dias festejava também por outro motivo: finalmente tinha reunido a coragem necessária para sair de casa. Fugiria, que não era exatamente uma saída das mais dignas, mas serviria para tirá-la de um ambiente tóxico, onde vivia com sua filha pequena e um marido controlador e abusador. E o melhor: fugiria com Vanessa, amor de sua vida.
Ainda não sabia como fariam para se manter, qual cidade morariam ou como esconderiam a menina do pai até que ela tivesse idade e maturidade para entender sua própria história. Mas Vanessa tinha razão quando afirmava que para toda caminhada é preciso dar um passo de cada vez. Primeiro, ela tinha que sair de casa, sã e salva. Depois veriam o que fazer na sequência.
A primeira parte do plano já estava esquematizada há dias. Foram semanas planejando, aguardando a oportunidade perfeita para sair sem ser notada pelos empregados, que pareciam muitas vezes fiscais de sua rotina, certamente a mando de Sandoval. O marido decerto recebia “relatórios” informando tudo o que Sara fazia quando estava distante da vigília que adorava estabelecer, até como parte da tortura psicológica que impunha, desde sempre.
O que fez Sara se movimentar, no sentido de sair de sua prisão matrimonial que já durava cinco anos, não foi Vanessa, embora a mulher tenha sido fundamental em todo o contexto, e até na iniciativa de fugirem juntas e juntas enfrentarem os desafios que a vida gostava de lançar. Entretanto, o ímpeto surgiu quando Sara começou a refletir sobre as condições do lar em que sua filha era criada. Não queria para a menina os dissabores que, no seu entender, eram provocados por ações exclusivamente dela. Tinha precisado se casar no passado, decidiu ir embora no presente e daria um futuro melhor para as duas a partir dos atos de agora.
Bebeu todo o restante da cerveja, olhando as horas no relógio sujo da parede oposta, por cima da borda do copo. Agora era só uma questão de minutos até mudar completamente de vida, pensou. Não disse nada para não levantar suspeitas, e porque a filha ainda era bebê e não a compreenderia. Mas ela sorriu ao ver a mãe sorrindo.
Estava na metade do segundo copo quando avistou Vanessa. A mulher surgiu na esquina com seu cabelo vermelho combinando com o batom de mesma cor. Usava calça jeans e uma camisa preta por cima da regata, apesar do calor. Caminhava num ritmo cadenciado pelo vai e vem da mala cheia de roupas, que segurava com as duas mãos. O movimento da mala parecia impulsioná-la para a frente e ela sorriu ao ver que Sara já tinha chegado. Tudo seguia conforme combinado.
– Espero não estar muito atrasada – Vanessa disse, em tom de cumprimento.
– Jamais se atrasaria para o resto de nossas vidas – Sara respondeu, servindo cerveja para ela. Viu que a mulher brincava com sua filha, que por sua vez parecia que dormiria em breve – Tintim – complementou, encostando um copo no outro.
– À nossa vida juntas, meu amor – Vanessa falou baixinho, antes de beber metade do líquido – Combinei com o Cabeça de ele vir aqui nos buscar às seis e meia – ela completa, bebendo na sequência o restante da cerveja, servindo-se de mais.
– Já são seis e meia... – Sara revela o óbvio, bebericando um golinho. Parecia que a cada passada do ponteiro mais nervosa ela ficava.
– Exato, então ele já deve estar chegando – Vanessa afirma, se levantando e oferecendo a palma estendida – Vem, vamos dançar. Você adora essa música. Dá tempo até o meu irmão chegar.
As duas se abraçaram no meio do bar e balançaram os corpos no ritmo da música de Ivan Lins, sucesso nos anos 80.
– “Quero toda essa vontade de passar dos seus limites...” – Vanessa canta, no pé do ouvido.
– “E ir além... e ir além...” – Sara canta junto, os braços enlaçando a mulher que sempre lhe mostrava que a vida pode ser maravilhosa.
Estavam tão distraídas, e envolvidas, que não perceberam a aproximação de um chevette marrom, que foi diminuindo a velocidade conforme se aproximava do bar. O casal de mulheres tampouco notou o homem sentado no banco do carona tirar um revólver da cintura e disparar vários tiros contra as duas.
Vanessa foi a primeira a tombar. Desabou quase em câmera lenta, os sentidos indo embora conforme caía. Na sequência, Sara foi ao chão, caindo ao lado da amada. Sentia a ansiedade e a animação se esvaírem junto de sua consciência, que virou um borrão apesar de ter ouvido o choro da filha. Inclusive, aquilo foi a última coisa que registrou.
O crime chocou toda a cidade, por ter ocorrido em uma região onde incidentes do tipo eram raríssimos. Durante meses o bar ostentou um cartaz pedindo “justiça por Sara e Vanessa”, mas depois de um tempo a história foi esquecida, como são todas, ainda mais as da ditadura, embora oficialmente o período sombrio já tivesse acabado.
E tudo permaneceria no limbo do esquecimento não fossem os assassinatos de dois figurões da Reserva, anos depois, com golpes de machado. A policial Liz foi designada para investigar as mortes e ao assumir, tudo o que sabia é que ambos eram pessoas muito conhecidas e influentes. Relacionar os crimes até chegar ao caso de 1985 fez Liz ter bastante trabalho.
Fim do capítulo
Grata pela leitura! <3
Vence o Desafio do Lettera quem tiver o maior número de acessos e os comentários também contam, então, por favor, comente! <3
Música do conto: https://www.youtube.com/watch?v=qa3KkEHkXSI
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Zaha
Em: 23/02/2025
Oiê, Caribu!! Tudo bem?
Já que tô aqui com tempo, vim ler a próxima estória. Alguma ligação com Caso n 5863/21?..
Que passou com a menina...tinha escrito e apaguei o comentário pq fui precipitada.Mas, vamos lá!! É muito cedo...
Pôxa, Vanessa e Sara com tantos sonhos, mas o marido, certamente descobriu. Adoro não só série policial, mas em época de ditadura ou pós .
Adoro essa música, adoro Ivan Lins!!
Beijos
Cristiane Schwinden
Em: 06/08/2022
Entrou metendo os dois pé na porta hein? Gosto assim!
Curiosa para ver essa ligação entre os crimes.
E obrigada por participar! É sempre uma horna tê-la por aqui :)
Resposta do autor:
rsrsrs
É, achei que precisava causar logo de cara, pra despertar a curiosidade e interesse suficientes pra eu conseguir as devidas leituras até o fim da história rs
Os crimes se relacionam de uma maneira i-na-cre-di-tá-vel rs Qdo soube dos planos de caribu, fiquei boquiaberta rs
Grata por ter lido e comentado, Cris! A honra é inteiramente minha de poder vir aqui me divertir (tanto!) no seu quintal! <3 Que a gente tenha sempre motivos pra escrever! <3
Beijos!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 05/08/2022
Liz entra em ação.
Resposta do autor:
Simmmm!
E entra em ação de um jeito que a gente nunca viu!
Espero que goste!
Beijos!
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Alex Mills
Em: 04/08/2022
Gente, será que fui só eu quem li "Cabeça, ombros, joelhos e pés; joelhos e pés"???
Poxa ahahaha
caribu, a assassina no desafio. Como assim cê já chegou matando todo mundo?
Mulér! Já deu até machadada!
Bora jorrar sangue - e nem é da menstruação!
Resposta do autor:
rsrsrs
Não sei onde conseguiu ver essa musiquinha rs
Mas, sim, cheguei já matando. A história é sobre justiça, tinha que começar assim pra fazer sentido rs
Aguarde!
Beijos!
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cris05
Em: 03/08/2022
Caraca...é um mistério de respeito!
A gente fica como? Ansiosissima pela próxima história!
Eu como policial sou uma excelente leitora/comentadora rs.
Beijos, autora! Você arrasa sempre!
Resposta do autor:
Cê viu só? Mistério msm!! Ansiosa estou eu para que vc saiba logo como termina (será que termina?rsrs).
Como a moça que digita, sou uma excelente caribu rsrsrsrs
Grata por ter lido, e comentado! <3
Minhas histórias aqui no Lettera só ficam completas assim! <3
Beijos!
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brinamiranda
Em: 03/08/2022
Caribu,
Antes de tudo obrigada por passear pelo meu continho, valeu mesmo...
E olha, eu amo investigação, como professora sou uma ótima policial, adorei a história e a Liz já conhecia
beijs
Resposta do autor:
Olá, querida!
Eu agradeço tb por vc ter vindo aqui! <3
Decidi que a Liz é a personagem oficial dos Desafios rsrs
Gosto de investigação tb, embora não seja exatamente meu estilo de escrita!
Como jornalista, sou boa policial tb rs
Beijos e até a próxima!
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Nay Rosario
Em: 02/08/2022
A senhora sempre caminha entre ficção e realidade.
Resposta do autor:
Sempre!
A escrita é uma deliciosa corda bamba! <3
Beijos, dona Dama!
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Saraivas1993
Em: 01/08/2022
Uau! Que entrada de respeito, ansiosa pelo desenrolar desse rolê. Arrasou, Escritorita!
Toda pessoa tem um jeito único de fazer as coisas, o seu para as palavras é algo magistral, quiçá um dom, os grandes feitos lhe esperam.
Um beijo, da Leitorita.
Resposta do autor:
Ah, que linda minha leitorita comentando! Gosto de ler a senhora aqui! <3
Que bom que gostou da entrada! Minha torcida é pra que goste até o fim!
Grata pelas suas palavras! Te acho uma linda, vc sabe!
Estou pronta para os grandes feitos ^^
Agradeço sua leitura e comentário!
Beijos!
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NovaAqui
Em: 01/08/2022
Que dor pela filha!
Filha sem nome! Por que será?
Elas estavam felizes!
Cabeça veio com companhia ou não era cabeça?
Teremos mistério
♥
Resposta do autor:
A filha é personagem importante! Situações chocantes transformam as pessoas, né? Mudam a vida, moldam.
Meu comentário não é enigmático à toa rs
Não por acaso tb a filha não teve o nome revelado. Faz parte do mistério!
Elas estavam msm felizes, com esperança depois de cinco anos de "prisão matrimonial", como a personagem descreveu. Fim da ditadura rolando e elas se amando ao som de Ivan Lins...
Quem será que atirou? E pq? Quem é cabeça na fila do pão? E como isso tudo se relaciona a dois militares aposentados mortos, em 2022? E com machado! E a foto da história que se chama "A justiceira" é uma mulher, socorro rsrs
Escrevi só essa primeira parte, no comecinho da segunda me veio todo o tcham da história! Só te falo uma coisa: caribu é foda, mas essas imagens do Lettera tb são perfeitas, se encaixaram direitinho!
Aguardemos!
Grata por ler e por comentar! <3
Beijos!
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