Beatriz bocejou ao mesmo tempo em que tirava o jaleco, o plantão tinha sido agitado. Olhou o cardiologista que passou cantando com fones de ouvido em evidente deboche, rindo com desdém. A médica balançou a cabeça, lembrando do fato ocorrido mais cedo. Como ele consegue ser tão vazio de sentimentos? – falou consigo, e seguiu em direção ao estacionamento deixando que as lembranças voltassem a sua cabeça.

Altas horas, um senhor deu entrada no hospital com a filha, a mão no coração, suor excessivo que descia gelado pela face rosada, tosse seca e tontura, sinal evidente de infarto. Apesar de não ser sua área, prestou os primeiros atendimentos, procurando a enfermeira chefe.

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- Quem é o cardiologista de hoje?

- O Dr. Haroldo.

- E onde está esse irresponsável?

- Não me entrega, ele está no Café Vienense com aquela técnica de enfermagem loirinha – Beatriz tirou o jaleco se encaminhando até o café, pegou uma barra de chocolate, olhando ao redor das mesas até avistar o médico.

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- Boa noite Haroldo, um paciente seu acaba de dar entrada, e não está nada bem.

- Humm, será que é um senhor que eu pedi para ficar internado hoje à tarde? Bom, se ele não fez o que eu mandei, está aí o resultado.

- Talvez estivesse se sentindo um pouco melhor depois de ser atendido, não podemos julga-lo. Pode ir, deixa que pago sua conta, depois você me paga.

- Olha, gostei, não sabia que trabalhava com Madre Tereza.

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O médico levantou, puxando a técnica pelo braço que deu uma olhada enfurecida para Beatriz que fingiu não perceber. Pagou a conta voltando para o plantão, Dr. Haroldo caminhava ainda mais lento que o normal, parou uns instantes para conversar com outro plantonista, pareando com Bia para avisar que ia até o banheiro fazer xixi. A médica deu de ombros indo até a recepção, de longe observou Dr. Haroldo voltar novamente arrastando os pés, o médico estufou o peito, rindo alto, o riso só cessou quando um enfermeiro falou algo em seu ouvido, aí parece que surgiram asas no sapato, saindo correndo para resolver algo que pareceu imprescindível. Uma hora depois o médico esbarrou novamente com Beatriz, olhando de cima a baixo, batendo com o cotovelo em seu ombro para dizer.

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- Acredita que o velho empacotou?

- Como você diz isso?

- Eu o mandei ficar à tarde, não quis, então a culpa não é minha.

- Prefiro nem te responder, que disparate...

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Com o fim do plantão, Beatriz encostou um pouco no carro antes de ir embora, lembrando da atitude irresponsável do colega, foi quando ouviu a voz melodiosa, quase o canto da sereia lhe arrepiando o pescoço.

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- Cansada Dra.? Logo hoje que estou pensando em te sequestrar.

- Boa tarde meu amor – Falou abraçando Daisy, encostando a cabeça em seu ombro falando em um quase gemido – Muito, muito cansada, tive um dia difícil.

- Vamos resolver isso, vim te pegar para passarmos o fim de semana na Praia do Naufrágio.

- Como? e o Pedro?

- Ele pediu o divórcio ontem à noite, fiquei aliviada que a atitude tenha partido dele, não foi uma conversa fácil, chamamos as meninas para comunicar, e Maria Clara, que sempre foi muito apegada ao pai, não está aceitando de jeito algum.

- Mas isso vai passar, vem aqui, volta para o nosso abraço... – Dessa vez foi Daisy quem recostou a cabeça em seu ombro deixando cair uma lágrima.

- Vamos minha linda? Preciso passar em casa e pegar umas roupas, tomar um banho rápido.

- Sim, deixa teu carro no estacionamento, é seguro, e vamos no meu.

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Subiram pelo elevador conversando animadamente, chegando ao apartamento rindo de uma piada qualquer que Daisy havia feito. Cristine conversava com o Arquiteto sobre a reforma da sala.

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- Oi minha filha...Daisy que surpresa boa!

- Oi mãe, vou passar o fim de semana na Praia do Naufrágio com Daisy.

- Que bom, faço gosto nessa amizade de vocês – Beatriz voltou, ficando de frente a mãe para dizer.

- Mãe, a Daisy não é apenas minha amiga, estamos namorando.

- Mas que piada é essa? esqueceu que Daisy é casada, respeite a minha amiga. Agora quer ser o que? Amante, só pode – Foi a vez de Daisy se aproximar, segurando as mãos de Cristine.

- Nos apaixonamos há muitos anos, mas, esperei que sua filha fosse maior e estivesse estabelecida, não se escolhe essas coisas Cris, sei que temos as nossas diferenças, mas, realmente eu amo a Bia. Pedro pediu o divórcio, e se ele não tivesse feito, eu o faria. Nada do que você falar vai quebrar nossa relação, eu e Bia estamos juntas e isso não vai mudar.

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Cristine soltou as mãos de Daisy com força, andando em círculos ao redor de si – Meu Deus, eu criei uma serpente dentro do seio da minha família. Convido uma amiga para ensinar piano para minha menina e o que acontece? Ela fica com a minha filha. Daisy, estou tremendo de raiva, como você fez isso?

- Só ficamos esse ano, e para de show Cris, sei muito bem que quando mais jovem andou dando uns beijos na Elódia, a filha da costureira do bairro.

- Mãe? Hahahahah... – Beatriz colocou a mão da boca, achando muito engraçada a situação.

- Precisa me expor assim? Isso é passado, eu fui seduzida.

- Seduzida nada, ela bem me contou que você quem tomou a iniciativa.

- Era jovem, queria saber como era, somente isso – Beatriz olhava o arquiteto que balançava as mãos, gostando do conflito familiar.

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- Mas o que é isso Victor? – Cristine perguntou injuriada com a evidente torcida do amigo.

- Aceita que dói menos, olha como tua filha está feliz mulher!

- Estou vendo que sou voto vencido. Eu não merecia ter uma filha desse jeito, onde foi que eu errei? Como não tenho nada a fazer, por hora eu aceito, mas não quero presenciar cena feia. Isso vale para as duas.

- Aí mãe, nunca fui dessas.

- Tudo bem filha, vai logo, a estrada deve estar disputada. E Daisy, ainda não terminamos, depois continuamos essa conversa.

- Tudo bem...

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Baby let's cruise, away from here

Don't be confused, the way is clear

& if you want it you got it forever

This is not a one night stand, baby, yeah so...

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- Está sentindo esse cheiro Bia?

- De que?

- De Liberdade meu bem...estou muito feliz, muito meu amor.

- Eu também minha linda.

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Na pousada Júnior escutava Gymnopédie, de Erik Satie, olhando atento tudo o que conseguira, observou cada item, um de cada vez, tudo estava ali em cima da cama, eram fotos dos objetos encontrados na casa, anotações do diário, nele haviam alguns desabafos, curiosidades, além do nome de todas as pessoas que havia se relacionado até a ocasião, no final dava uma nota, Júnior achou a prática esquisita, mas, tinha certeza que o assassino estava entre aquela imensidão de nomes, inclusive o Pierrô, que levou nota máxima em tudo – Quem é esse cara, meu Deus? –  Se perguntou, pegando as fotos iniciais do diário, olhando o mapa astral que julgou não acrescentar nada, por isso picou em pedacinhos, jogando no lixo.

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- Dany, Dany...me dá uma prova consistente...

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 Após hackear a universidade que Daniella estudava Psicologia, conseguiu acessar os registros antigos, encontrando seu perfil com facilidade, inclusive o e-mail, abriu a página com esperança, mas, logo se decepcionou por não ter tantos e-mails assim, eram pedidos de livros na Amazon, vários outros trocando ideias com seu orientador, nada de relevante. Suspirou irritado, mesmo assim achou interessante anotar o e-mail e a senha, depois analisaria melhor o material.

Por fim entrou no site secreto da Polícia Civil, olhando as fotos de Daniella no dia do crime, primeiro a foto do ator Global que havia sido introduzida no ânus, o suficiente para ficar fixada no lugar, não havia danos físicos, a ação não tinha objetivo de machucar, era apenas mais uma forma de humilhar. As demais fotos detalhavam as contusões na cabeça e a pedra suja de sangue seco misturado com os cabelos loiros, encontrada perto do corpo, sem nenhuma digital.

E por fim encontrou um relatório extenso e detalhado sobre a vida de Daniella, seus hábitos seguidos de depoimentos de moradores, a maioria elogiando, o que mudava constante era o artigo, alguns lhe chamavam de moça, outros de rapaz, uns poucos denominavam de “o travesti”, ou traveco. Respirou aliviado ao ver que haviam poucos comentários preconceituosos. Mas, nada indicava ódio no grau de violência do assassino.

O relatório terminava dizendo que Dany não tinha passagem pela polícia, nem brigas com gays, heteros, não havia sido mencionado nem a discussão com a Dona na pousada que estava na sua lista de suspeitos, embora estivesse apostando no Pierrô. Júnior considerou o trabalho da polícia incompleto, sem menções das relações amorosas, visitas, amizades. Era evidente que a polícia civil de Armação das Pedras não se aprofundou no caso, muito embora bem intencionada, não tinha aparato e nem sapiência para desvendar um crime tão complexo.

Para finalizar abriu uma pasta no site, onde estava o Relatório de Necropsia do Instituto Médico Legal de Armação das Pedras, assinado pela Médica Legista Giovana Palhares.

Na primeira parte só passou os olhos, eram informações sobre características físicas, exames e pesagem dos órgãos, nada que lhe valesse anotar ou imprimir. A médica havia mencionado a fotografia introduzida no reto da vítima, através do ânus, por cerca de dois centímetros, sem causar danos a mucosa. O que reforçou a ideia de Júnior que o objetivo era apenas humilhar.

Continuou a ler, não havia sinais de estupro pois a musculatura estava relaxada quando a foto foi introduzida, também não havia evidências de sex* consentido, nem sinais de lubrificação, preservativos ou esperma. Na parte do encéfalo, a médica registrava que a vítima morreu por um objeto contundente, no caso uma pedra de quatro quilos, deferida por sete pancadas no lado direito do crânio, ocasionando traumatismo craniano, hemorragia e perda de massa encefálica.

Júnior terminou a leitura dos arquivos, imprimiu o que achou interessante, dando por encerrada a pesquisa, já estava com as costas ardendo da mesma posição, então viu que era hora de fazer uma visita a uma das ficantes de Daniella...

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♥

         Maria Rosa chegou exausta, havia passado o dia na delegacia lendo e relendo todos os arquivos do Caso Daniella, viajariam no dia seguinte para Armação das Pedras, e entre falsas denúncias e pistas inconsistentes sentia que patinava em um lago congelado, sem conseguir sair do lugar. Estava tão cansada que esquecera o aniversário de casamento.

         Mas Samira entendia, sabia que Maria Rosa estava mergulhada até a alma para desvendar o caso, e pelo beijo da manhã era evidente que havia esquecido a data. Mas, ela não, queria que tudo fosse perfeito, comprou rosas, deixando em cima da cama, depois fez um caminho com garrafas transparentes e velas, que iam da entrada da porta até o quarto, também preparou um jantar gostoso, escolheu algo rápido, Camarão gratinado com batatas, arroz branco e uma salada para acompanhar, comprou um vinho gostoso, e de sobremesa escolheu uma Surpresa de uvas verdes que Maria Rosa tanto gostava.

         Depois tomou um banho demorado, escolheu um vestido branco que ia até o meio das coxas, calçando uma sandália de saltinho com tiras que subiam amarradas do tornozelo até a panturrilha. Fez uma discreta maquiagem e os cabelos estavam presos em um delicado rabo de cavalo, deixando uns fios soltos.

         Maria Rosa abriu a porta, achando a mulher absolutamente linda, os olhos brilhavam de felicidade, acompanhado de um sorriso e covinhas.

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- Você é linda demais, até atrapalha as coisas meu bem, me deixando sem voz...

- Feliz Aniversário de namoro meu amor... – Falou enlaçando Maria Rosa pela cintura, beijando seus lábios.

- Amor me perdoa, eu esqueci completamente.  

- Vai tomar banho minha gata, eu preparei um jantar para nós...

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         Quando desceu Maria Rosa estava igualmente linda, com um vestido amarelo, bordado com flores brancas, aos olhos de Samira não havia mulher mais linda no mundo todo. Samira pegou o violão, sentando ao seu lado no sofá para cantar:

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Amo-te muito, como as flores amam

O frio orvalho que o infinito chora.

Amo-te como o sabiá da praia

Ama a sanguínea e deslumbrante aurora.

Oh! Não te esqueças que te amo assim.

Oh! Não te esqueças nunca mais de mim.

Amo-te muito como a onda à praia

e a praia à onda, que a vem beijar...

Amo-te tanto como a branca pérola

Ama as entranhas do infinito mar....

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...: ♫ MÚSICAS DO CAPÍTULO♫:...

Como uma onda - Lulu Santos

Cruisin – Smokey Robinson

Gymnopédie No. 1 - Erik Satie

Amo-te muito – Nara Leão 

Fim do capítulo