Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte - Sigmund Freud

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O dia estava iluminado, os raios de sol lambiam delicadamente a pele de Maria Rosa e Isabella que seguiam de mãos dadas observando as flores, as árvores, os barulhos dos pássaros, as pessoas que caminhavam animadas pelas ruas do bairro em direção a Feira das Orquídeas.

Em algum momento Isa parou em frente a um sobrado rosa bem clarinho, olhou as pessoas que transitavam, umas vestidas de preto, outras de uniforme, não dava para entender o que estava acontecendo, encostou a cabeça, analisando entre as cercas vivas que rodeavam o lugar encoberto, olhava por brechas, além das árvores que lhes impedia a visão por completo. Afastou um pouco, colocando as mãozinhas em frente aos olhos, lendo com certa dificuldade “Funerária Ternura”.

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- Vó, o que é esse lugar? – Maria Rosa agachou, ficando na altura da criança.

- Sabe meu bem, quando as pessoas morrem e partem desse mundo, antes delas irem de vez, tem uma cerimônia de despedida, nós chamamos de velório.

- E a pessoa pode se despedir de todo mundo que gosta?

- Não meu bem, sua alma já não está, ali é só o seu corpo, entende?

- Quer dizer que ela não vê sua família e seus amigos?

- Algumas pessoas acreditam que sim, que a alma antes de ir embora consegue ver seus familiares, outras pessoas não acreditam nisso, acham que a alma fica dormindo lá no céu.

- E você vó, acredita em que?

- Bem, eu acredito que as almas vão para um lugar muito bonito, as vezes podem vir nos visitar.

- Então, não tem nada nesse corpo que fica?

- Não meu bem, é como uma casca que deixamos para trás e que nos serviu durante a vida.

- Se a pessoa não vê, pra que tem esse velório então? – Maria Rosa pensou um pouco em como daria uma resposta sincera e de acordo com a idade da neta.

- Isa, acho que é mais para quem fica, talvez seja apenas uma maneira da gente poder se despedir das pessoas que amamos e que foram para um lugar melhor.

- Se eles vão para um lugar melhor, não é pra chorar, é só a casca, não é?

- E quando a Vó Maria Rosa for embora um dia e não puder mais me ver, você vai pensar assim?

- Não, eu vou chorar, porque vou querer que fique, isso que é saudade.

- Então, essa ideia vale para todos.

- Entendi, podemos ir Vó.

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   Seguiram o resto do percurso caladas, até chegar na Feira das Flores.

- Chegamos Vó, olha quantas orquídeas lindas, eu posso escolher uma?

- Claro Isa – Isabella correu, dançando entre as flores, os bracinhos pra cima como se quisesse alcançar o céu. E Maria Rosa sorriu feliz, sentindo que a sua continuidade sempre seria um ponto de luz na Terra.

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         Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. – Sou, pois, um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda. Procurar tranquilamente admitir que talvez só a encontre se for buscá-la nas fontes pequenas. Ou senão morrerei de sede. Talvez não tenha sido feita para as águas puras e largas, mas para as pequenas e de fácil acesso. E talvez meu desejo de outra fonte, essa ânsia que me dá ao rosto um ar de quem caça para se alimentar, talvez essa ânsia seja uma ideia – e nada mais.

Clarice Lispector

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Já na pousada, Marília organizou em cima da cama, tudo o que havia trazido da casa de Daniella. Separou em blocos os livros, as anotações, em seguida acomodou os travesseiros nas costas, pegando o diário de Dany para ler, primeiro folheou rapidamente antes de analisar de forma minuciosa, percebendo que algumas folhas estavam arrancadas, provavelmente pelo assassino, o que já era esperado.

Olhou a capa lilás de couro com o apelido em madeira pintado de branco com letras desenhadas: Dany. Ao abrir veio um cheiro adocicado, era um guardanapo embebido com um perfume doce, mas, ao mesmo tempo elegante, não soube reconhecer de imediato qual seria, mas, de certo era um perfume importado. Apurou seu nariz, assim pode reconhecer os cheiros misturados que formavam o perfume, sentiu que as notas de topo eram formadas por Laranja, Mandarina, Bergamota e Flor de Laranjeira, sendo as notas de coração a Rosa Turca, que se misturava com Jasmim, Mimosa e Ylang Ylang, por fim, as notas de fundo eram de Patchouli ou Oriza, com Almíscar Branco, Baunilha, Vetiver, além de Fava Tonka e Opoponax.

Mandou uma mensagem a perfumista que havia estudado há muitos anos atrás, descrevendo as especificações que havia sentido, e por fim perguntou qual perfume teria essas características indicadas em seu resumo. Depois guardou o celular se concentrando no diário’.

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         Na primeira página havia uma descrição astrológica da vítima a partir do seu nome e data de nascimento:

Daniella Fernandes Viana, nascida em Curitiba no dia 12 de abril de 1995. 

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Marília sorriu para dizer “então, quer dizer que estamos investigando a história de uma ariana”. Depois dessa anotação seguia uma descrição detalhada em duas folhas sobre o seu signo solar em Áries, sua letra era forte marcando as páginas como se tivesse em alto relevo, mas, apesar disso, era bem desenhada, com voltinhas e inclinações, o que segundo a Grafologia era um sinal de energia, autenticidade e segurança em si mesmo.

Também haviam adesivos de carneiros nas folhas, símbolo do signo, e ao lado a palavra grifada Kawaii, pesquisou no Google para entender, descobrindo que se referia aos fãs da cultura pop japonesa, que utilizavam o termo para definir tudo que é bonitinho, colorido e com ares infantil. Olhou os adesivos de Dany, constatando que era Kawaii, gostou da delicadeza, sorrindo novamente, para voltar a ler.

Áries: signo positivo, masculino, violento, diurno e animal. Simboliza a exteriorização, a energia, a ação. É este impulso vital que leva o bebê ao nascimento, é o primeiro movimento e o primeiro alento de tudo o que vive.

Governado por Marte, Deus da Guerra da Mitologia Grega, Áries representa tudo o que este Deus do Olimpo simbolizava: a guerra, as armas de fogo ou brancas, a velocidade, o fogo, a virilidade, o impulso animal.

Marília balançou a cabeça lembrando do caos vivido em um relacionamento devastador com uma ariana, voltando a ler para não pensar no passado.

Dificilmente os Arianos escapam de ferimentos na testa, no rosto, que sempre deixam uma cicatriz, uma marca desta energia destrutiva e violenta. Mas o que seria o mundo se não existisse esse impulso vital? As iniciativas, a coragem, o comando, a ambição, o desejo de autoridade e de execução, a realização dos projetos são governados por este planeta e sem eles nada se realizaria... Não é à toa que é a primeira casa do Zodíaco, casa do elemento fogo, sem o qual nada se cria.

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- A menina Dany não devia ser nada fácil, era uma garota de personalidade forte, mas, pelas fotos, e pelo que estou lendo, era feliz. Jamais merecia uma morte tão violenta.

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      Na página seguinte veio a análise do signo ascendente, esperava encontrar algo mais suave, riu alto ao ler: Escorpião – Nossa Dany, personalidade não te faltava. Hahahahah – Levantou, pegando uma garrafinha de água com gás dentro do mini frigobar vermelho, dando sequência a leitura.

O Ascendente tem relação com a aparência física e com o jeito que se apresenta aos outros. Quem tem o Ascendente em Escorpião não passa despercebido – Marília riu de uma anotação jocosa, era um “é nós, seguido de heheheh”. Balançou a cabeça continuando a leitura.

O olhar penetrante e sua expressão determinada demonstram uma força interior imensa. A sua natureza firme e magnética pode provocar mal-estar em pessoas mais frágeis, você parece estar sempre perscrutando o interior para enxergar através e analisar o conteúdo do outro.

A natureza do signo transparece em suas ações que podem parecer arrogantes e demasiadamente exigentes. A passionalidade inerente ao signo também pode ser muito evidente em sua maneira de agir, levando você a procurar satisfazer seus prazeres de forma intensa e profunda. A concretização de seus objetivos é conseguida com determinação e garra insuperáveis.

Existe uma tendência a se envolver de forma exagerada nos relacionamentos amorosos, o que pode se tornar perigoso se mal canalizado, as explosões de ciúme são comuns a quem tem este signo no ascendente. Você dá muita importância ao relacionamento afetivo, é exigente e quer exclusividade.

As qualidades energéticas incontestáveis e excitantes do seu signo ascendente em Escorpião aparecem muito em você, que se esforça em mantê-las secretas, como é característica do signo. Pouco falante e muito observadora, você analisa muito, mas não gosta de ser analisada. Você possui grande aptidão para estudos profundos e pesquisas secretas. O temperamento lhe confere características emotivas e sentimentais.

A análise terminava falando da sua Lua em Leão, que rege seu comportamento emocional, as anotações ocupavam mais três páginas:

Você tem a necessidade de se comportar como uma líder, especialmente para receber os elogios e a aprovação daqueles que o rodeiam. Você possui muita confiança em si própria, tem honradez, senso de justiça e magnanimidade. Sua vaidade e seu temperamento artístico e dramático podem levá-lo a escolher carreiras onde estará em destaque, exposto ao aplauso do público.

A beleza e a vaidade podem ser fatores predominantes em você, já que precisará estar sempre no centro das atenções para apaziguar seu ego. Esta Lua mostra fragilidade na sua autoimagem, e indica que na infância você pode ter sido excessivamente mimada, sendo o centro das atenções de seus pais. Assim, na fase adulta, você chama atenção sobre si mesmo de qualquer maneira. Se sua Lua estiver ‘aflita’, você se torna dramática e instável sentimentalmente.

No final havia um adesivo escrito “fim”, a assinatura de Daniella e o nome da astróloga: Yáskara Teles. Voltou ao Google novamente colocando o nome recém descoberto para pesquisar, descobriu que Yáskara era uma gaúcha de 40 anos, morava na cidade há doze e trabalhava com Terapias Alternativas, agendou um horário para terça, com o marido e sócio, assim, além de descobrir mais sobre Dany, com certeza entenderia seu mapa astral. Marília abriu a boca com sono, e antes de desligar o celular viu a mensagem da amiga perfumista.

“Oi linda, pela descrição o perfume não pode ser outro além de Chanel, é o COCO MADEMOISELLE Eau De Parfum. E seu nariz continua perfeito, mesmo passado anos. Parabéns, beijos e saudades”. Agradeceu, virando o corpo para dormir.

Adormeceu para sonhar com Daniella entrando em um trem, onde cada estação lhe remetia a um período de sua vida. Observaram juntas o nascimento, os primeiros passos, os cuidados da família com o menino, filho único. A estranheza logo cedo em relação ao seu sex*, um pouco mais tarde chorava pedindo para acordar menina, e a decepção ao acordar todos os dias com o p*nis que trazia desde o nascimento.

Depois vimos o processo de aceitação do seu corpo, o encanto pela possibilidade de transitar entre os dois sex*s, um dia estava de vestido, seios postiços, no outro chegava apenas com uma bermuda floral de surfista.

Segundo Dany, toda suas dúvidas terminaram ao conhecer Ernesto Duvivier, mais conhecido como Vivi, foi Ernesto quem lhe disse que a natureza de ambas eram idênticas, “o que somos ainda não tem nome”, por isso o choque da sociedade, os de fora geralmente não entendiam que simplesmente eram o que desejavam ser, por fim Dany mostrou a Marília seus romances, eram homens, mulheres, trans, de várias idades e pensamentos, o importante era o sentir. Foram meses de relacionamentos furtivos, até encontrar o amor, infelizmente a mão que lhe acariciava o corpo, foi a mesma que com uma pedra lhe afundou a cabeça, enfiando uma foto do famoso ator em seu ânus.

Marília acordou assustada com a revelação do sonho, bebeu o resto da garrafinha voltando a leitura. Achou interessante que Dany havia feito uma espécie de análise das várias pessoas que havia ficado, eram homens, mulheres e transexuais, alguns não havia passado de beijos, em outros casos haviam consumado o ato sexual, e ao fim, dava uma nota específica, de zero a dez. Achou bizarro, parecia um catálogo, e eram folhas e mais folhas com suas anotações, e por fim havia lá embaixo o nome “Pierrô”, finalizando com “Até que enfim o amor me encontrou”.

Depois do tema, havia estudos sobre Filosofia e Física Quântica, anotações de algumas músicas, várias páginas arrancadas, e nas últimas falava com carinho dos amigos, uma parte era dedicada a Ayana com fotos, entrevistas, e em depoimento dizia o tanto que era fã da sua voz, do seu estilo “Se eu tivesse nascido racha, gostaria de ser igual minha musa”. Depois havia a marcação de aulas, falando da sua evolução e das músicas que cantaram juntas “A musa disse que estou melhorando, estou muito feliz, se ela fala, é porque estou”. Por fim, páginas e páginas arrancadas...

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A única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela. Resista, e sua alma adoecerá de desejo das coisas que ela a si mesma se proibiu, com o desejo daquilo que suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilícito.

Oscar Wilde - (O Retrato de Dorian Gray)

Fim do capítulo