De tarde eu quero descansar, chegar até a praia e ver

Se o vento ainda está forte

E vai ser bom subir nas pedras

Sei que faço isso pra esquecer

Eu deixo a onda me acertar

E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe

Vê, a linha do horizonte me distrai

Dos nossos planos é que tenho mais saudade

Quando olhávamos juntos na mesma direção

Aonde está você agora

Além de aqui dentro de mim?...

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Vento no Litoral enchia o quarto com seus acordes, enquanto Marília terminava de se arrumar, escolheu um macacão pantacourt verde musgo, com delicadas folhas verde claras e bege, com pequenas listras da mesa cor na barra da calça, os braços estavam nus, com um bracelete do lado direito em formato floral, enfeitando o braço, prendeu os cabelos, colocando um arco do mesmo desenho do bracelete e se olhou no espelho. Estava pronta para o show de Ayana, a cantora havia ligado na sexta desmarcando o jantar, também não pode vê-la no sábado inteiro, o plano era curtir um pouco após o show, mas, não estava apostando nisso.

Como pretendia beber, pediu um Uber, indo até a recepção para esperar, não demorou muito e o porteiro lhe avisou que a motorista estava aguardando.

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- Boa noite, onde vamos?

- Teatro Guaíra, por favor...

- Ah, vai para o show de Ayana? não sei se reparou que do dia para noite a cidade se encheu de cartazes com fotos dela, e embaixo, ou em algum lugar sempre falando que é o orgulho da cidade. Aff, viu?

- Você não a considera um talento?

- Ah, tem melhores com certeza, prefiro a Rosana Durval, a Milena Luna, até a tal da travesti, tinha uma voz muito mais bonita.

- Desculpe, que travesti?

- Humm, está na cara que você é de fora, menina, foi assassinada uma travesti daqui lá na Cachoeira do Diabo, na Praia do Naufrágio, se não conhece eu te indico, o lugar é lindo. Então, a Daniella, era travesti, sabe?

- Não seria transexual?

- Sim, isso, eu não sei bem a diferença dessas coisas, pois bem, a Dany era aluna da Ayana, fez umas aulas de canto, e pense que ela cantava igual um pardal – Marília teve vontade de explicar que pardais não cantavam, mas, deixou que as palavras voltassem de onde vieram.

- Ela cantava em barzinhos?

- Sim, em dois, no barzinho da Duda, e no Armação, aquele bar e restaurante do Alemão, conhece?

- Não, nunca ouvi falar.

- Pois vá, é maravilhoso, se quiser tem algumas apresentações da travesti, quer dizer da transexual no YouTube, só procurar pelo nome de Dany Fernandes.

- Obrigada pela dica.

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         A motorista ia apontando os outdoors com as fotos de Ayana, eram muitos, com fotos diferentes, mas, com a mesma frase relacionando a cantora ao rouxinol, falando do orgulho que os pedra-armansenses tinham do seu maior talento. Antes de partir a motorista deu um cartão com seu contato se caso precisasse de uma motorista particular.

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         Marília olhou de fora os vitrais coloridos que adornavam o teatro, se encantou com a arquitetura eclética e com a sala de espetáculo em estilo Art Nouveau de três andares, comportando 800 lugares. O complexo do Teatro contava ainda com auditório de 120 lugares, foyers, espaço cênico a céu aberto e o prédio anexo, com 2.600 metros quadrados. Uma verdadeira obra de arte, ao lado da entrada havia uma placa contando que a construção do Theatro Guaíra foi finalizada em 06 de junho de 1908, tendo sua estrutura arquitetônica constituída de peças de ferro fundido importadas de Glasgow, na Escócia.

Ayana estava no grande salão, fazia a passagem de som, mas, um segurança não permitiu que entrasse, alegando que tinha sido avisado que nem o Papa poderia entrar caso viesse pessoalmente, Marília estranhou, mas, achou melhor não discutir, apenas perguntou onde o show aconteceria, e o mesmo segurança indicou o espaço em céu aberto, avisando que o espetáculo seria para um número limitado de pessoas.

         Lembrou da mensagem objetiva da cantora para procurar Madeiro, seu segurança pessoal, Marília abriu novamente a mensagem, olhando a foto que a cantora enviou para reconhece-lo. O rapaz bronzeado pelo sol tinha o corpo atlético, cabelos espetados em gel, e andava apressado pelo lugar com um grupo de homens tão grandes quanto ele, todos vestidos com calça preta que marcavam as coxas grossas, e terno da mesma cor. Marília parou de longe, observando que cada um recebeu seu Walkie Talkie, testando em seguida. Tudo certo, saíram para assumir seus postos.

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- Com licença, você é o Madeiro?

- Sim, o que deseja? Não posso te levar ao salão, nem os familiares podem entrar pra ver a passagem de som.

- Sou Marília, a Ayana pediu que te procurasse na entrada.

- Ela não me avisou nada, um instante... – Apertou uma tecla verde perguntando – Pietra, pergunta ai para Ayana se ela tem alguma convidada especial – Marília ouviu uma reclamação da moça do outro lado, mas, com a firmeza da voz do segurança, achou melhor perguntar, por uns segundos o show parou, e logo veio a resposta.

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- A senhorita pode se dirigir ao camarim. Pietra vem te buscar...

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         Não demorou e Pietra chegou, tinha os cabelos raspados na lateral, provavelmente em máquina dois, e um franjão que encobria os olhos verdes.

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- Quem é a convidada de Ayana?

- Sou eu... – Marília respondeu baixinho, estava tímida com o movimento que causou.

- Vamos, parece que tem mais importância que o Papa, Ayana pediu que fosse ver o final da passagem de som.

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         Quanto entrou no salão, Ayana deu uma piscada que deixou com vontade de beijar aqueles lábios carnudos e tão convidativos, lembrou do seu cheiro e na mesma hora as lembranças dos beijos trocados lhe encheram a boca de água. A cantora pegou a garrafinha transparente com água, entregando ao assistente de palco, pedindo o microfone para cantar.

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Por que vocês não sabem

Do lixo ocidental?

Não precisam mais temer

Não precisam da solidão

Todo dia é dia de viver

Por que você não verá

Meu lado ocidental?

Não precisa medo não

Não precisa da timidez

Todo dia é dia de viver...

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         Marília fechou os olhos achando que Ayana aproximou bastante o timbre de Elis Regina para cantar, realmente ela era um camaleão, modulando a voz por vários estilos musicais. Terminado os ensaios Ayana saiu do palco sem se despedir, foi avisada por Pietra que tinha ido fazer cabelo, maquiagem, dar uma última olhada no figurino, todas as coisas que antecedem um show.

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- Estou liberada, posso te fazer companhia, quer comer alguma coisa?

- Seria bom, esqueci de fazer um lanche antes de vir, nem lembrei o tanto que ia esperar.

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         Saíram juntas até a sala onde os músicos lanchavam animados, conversando com o resto da produção. Marília sorriu com a aproximação de um rapaz loiro, com umas mexas vermelhas nas pontas, parecia simpático, e de alguma forma tentava quebrar sua timidez.

- Namoradinha nova Pietra? bom gosto hein amiga? – Falou batendo em seu braço, depois virou para Marília, dando continuidade a fala – Chega aí moça, sou Beto, o guitarrista.

- Cala a boca Zé Ruela, essa é a mulher da chefe.

- Ah prazer, espero que permaneça – o loiro vendo a cara de Pietra resolveu ajustar a fala – espero que permaneça conosco, venha vou te apresentar os outros músicos.

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         Quando Beto se aproximou, mostrou os salgados e os doces que estavam na mesa, avisando que ficasse à vontade. Marília apurou a memória lembrando que aquele rosto não era estanho, e num lampejo lembrou que era um dos amigos de Daniella que havia visto nas fotos. Não era o momento de especular, mas, quando Beto levantou o antebraço para ajeitar os cabelos, pode ser a tatuagem, um coração com asas escrito Dany.

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- Bonita sua tatuagem, fez para a namorada? – Beto passou a mão na pele em um suave carinho.

- Fiz em homenagem a uma amiga de infância que foi assassinada de forma cruel, você deve ter ouvido falar no caso Daniella Fernandes.

- Infelizmente sim.

- Hoje trago Dany na pele e no coração, meu sonho era tocar pra ela...minha irmãzinha...

- Lamento muito por sua perda – Falou descansando a mão em seu ombro.

- Obrigada...

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         Júnior estacionou o carro admirando a beleza do Teatro, tirou do bolso o ingresso comprado na internet e se encaminhou até a portaria, passou a mão na cabeça, sentindo falta dos cabelos longos que lhe acompanharam por anos, mas, aprovou o novo visual cortado no mesmo dia, entrou animado olhando as pessoas que se aglomeravam na portaria, pensou que talvez o assassino estivesse circulando por ali. Estava concentrado, procurando alguém que parecesse suspeito quando o viu, seu rosto era anguloso, enfeitado com lábios carnudos, e intensos olhos negros, encobertos por um emaranhado de cabelos loiros cacheados. É ele, o maldito, o falso Juan Ferrari Júnior, não acredito, depois de tantos anos...

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- Com licença, Juan? Quer dizer, não posso te chamar de Juan, já que esse nome é falso, mas, que bom te encontrar, está usando lente de contato preta? Ou os olhos azuis eram tão falsos quanto você? E os cabelos...você é loiro mesmo? Ou é ruivo? Onde está verdade? Hum?

- Moço, me chamo Jorge...deve estar me confundindo com...

- Salve Jorge, dessa vez teve a audácia de adotar o nome de um santo. – Estava cada vez mais irritado, quando uma moça jovem se aproximou entregando uma taça de vinho ao pretenso farsante.

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- Está tudo bem amor?

- Sim, esse rapaz com certeza deve ser mais uma vítima de Vítor Hugo, por favor querida, explique o que aconteceu, não tenho cabeça para falar tudo de novo – O homem abaixou os olhos, saindo em direção ao banheiro, Júnior foi serenando a medida que a moça iniciou a narrativa: Jorge tinha um irmão gêmeo chamado Vítor Hugo, o rapaz apesar de tão inteligente, vivia de aplicar golpes, geralmente em rapazes ricos, para comprovar mostrou fotos dos gêmeos idênticos, ambos loiros de cabelos fartos e cacheados, emoldurando os olhos negros, eram fotos da infância, passando pela adolescência até chegar na fase adulta.

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- Peço que desculpe o meu marido, é muito difícil falar de Vítor, quando ele morreu, estavam sem se falar, é o que mais dói.

- Juan...quer dizer, Vítor, morreu?

- Sim, em um acidente de carro...veja... – Júnior pegou o celular da moça, lendo uma reportagem de três anos atrás: O advogado Vítor Hugo Dornelles Araújo, de 29 anos, e o amigo Allan Duque Veríssimo, morreram na manhã desta quarta-feira após um acidente de carro na BR-123, no km 623, entre a cidade de Águas Lindas e o trevo de Montemor, em São Paulo, o Hospital de Urgências de Serro Verde, para onde ele foi transferido confirmaram a informação às 8h30. Segue o aviso do velório que vai ocorrer nesta quarta-feira, às 19h.

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- Peça minhas desculpas sinceras ao seu marido...

- Tudo bem, espero que perdoe Vítor, ele sempre foi assim... sem milites.

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         Júnior saiu em direção ao barzinho, pedindo o cardápio de drinks, entre muitos escolheu o primeiro.

-Um Dry Martini, por favor.

- Claro, aceita os petiscos de amendoim, é por conta do Teatro.

- Pode ser.

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         Recebeu a bebida, tomando por inteira em três goles, precisava abafar o que estava sentindo, voltou novamente ao cardápio escolhendo outra bebida.

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- Um Mojito... – A moça preparou a bebida, entregando-o, depois se distraiu anotando os pedidos de outros clientes, e quando percebeu, o copo de Júnior estava vazio novamente.

- Está querendo afogar o coração na bebida rapaz?

- Sim, uma Piña Colada seria uma ótima– A bartender diminuiu o teor alcoólico, sentando em frente a Júnior para dizer.

- Eu sei exatamente o que está sentindo, nós LGBTQI +, somos um alvo ambulante – Só então Júnior reparou no gogo da bartender, que piscou o olho voltando ao trabalho, não sem antes dizer.

- Prazer, Francis...

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         O tempo passava lento, parecia que o show não começaria nunca, tinha esquecido da investigação quando ouviu a voz delicada se aproximando do bar.

- Oi Giovana, cadê o marido?

- Foi estacionar o carro, e desci, não aguentava mais esperar.

- Olha, quero te agradecer por tudo que fez pela minha amiga Dany, sei que seu objetivo sempre foi ajudar que as coisas fossem descobertas, mas, nem sempre as coisas saem como a gente quer.

- É o meu trabalho. Querida, jamais iria ocultar qualquer coisa que tenha percebido, mesmo sob pressão, espero que ela encontra paz, já que infelizmente a talentosa Daniella não está mais entre nós.

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         Júnior sentiu que havia levado duas tapas no rosto, a tontura do álcool passou no mesmo instante, foi um golpe de sorte encontrar na mesma noite a legista e uma amiga de Dany, parecia que enfim o renovo que esperava apareceu. E para coroar sua noite, quando virou os olhos estavam entrando pela porta principal Maria Rosa, Samira, Daisy e Beatriz, todas lindas, para ele seria a noite perfeita.

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Declaração de amor – uma viagem musical

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         As cortinas vermelhas do palco levantaram, Ayana apareceu deslumbrante, os cabelos voando soltos, o vestido vermelho misturando tecidos e penas artificiais tingidas da mesma cor, trazendo uma beleza ao figurino e a cantora. Alguns sorriam querendo aproveitar a noite abraçados a seus amores, outros estavam para reverenciar o talento, mas, todos se uniram em aplausos quando veio a primeira fala de Ayana.

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- Boa noite, hoje vamos cantar para o amor, pelo amor e com amor, não poderia deixar de reverenciar minha musa Maria Bethânia, então, antes de apresentar meu repertório novo, vamos começar por essa diva.

 

De repente fico rindo à toa sem saber por quê

E vem a vontade de sonhar, de novo te encontrar

Foi tudo tão de repente

Eu não consigo esquecer

E confesso, tive medo

Quase disse não

Mas o seu jeito de me olhar

A fala mansa, meio rouca

Foi me deixando quase louca

Já não podia mais pensar

Eu me dei toda pra você

 

De repente fico rindo à toa sem saber por quê

E vem a vontade de sonhar, de novo te encontrar

Foi tudo tão de repente

Eu não consigo esquecer

E confesso, tive medo

Quase disse não...

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...: ♫ MÚSICAS DO CAPÍTULO ♫:... 

Vento no litoral – Legião Urbana

Para Lennon e MacCartney – Elis Regina

Cheiro de Amor – Maria Bethânia

Fim do capítulo