Capitulo 2
Capítulo 02 – Reconhecimento
Paula
Pulei da cama assim que meu despertador tocou. Espreguicei-me em pé, demoradamente, e fui até o banheiro lavar meu rosto. Minha mãe passou pelo quarto e me olhou com surpresa quando viu que não precisaria me chamar de novo, coisa que ela sempre fazia.
– Dormiu bem, Paula?
– Como um anjo! – respondi, sem conter o meu sorriso.
Vi que ela ficou desconfiada, mas não me importei. Demorei para escolher uma roupa para ir à aula, pois nada parecia perfeito para chamar a atenção de Yasmin. Eu tinha colocado na cabeça que procuraria por ela na escola. Se estava no time de vôlei, só poderia estar estudando no mesmo colégio que eu.
Tinha passado muito tempo na noite anterior tentando entender como ainda não tínhamos nos esbarrado em uma semana e meia de aula e lamentei que não estivéssemos na mesma turma de terceiro ano.
– O que você e o Fernando conversaram ontem, no carro?
– Nada demais, mãe.
– Eu acho que ele anda interessado em ti.
Rolei os olhos.
– Pois eu não me interesso por ele nem um pouco – disse, enquanto sorvia o suco que ela preparara para mim.
– Tem que começar a olhar para os lados, Paula. Está cheio de garotos querendo namorar você.
– Engraçado, eu não quero namorar nenhum. E nem conseguiria, não é mesmo? Você agora me tranca em casa dia e noite!
– Estou fazendo isso pelo seu bem. Até você esquecer a Daniela, vai ser assim.
– Ótimo, então já podemos parar, porque eu não sinto nada por ela além de amizade.
Ela me olhou de novo, me analisando.
– Posso saber o motivo de ter acordado de tão bom humor?
– Não existe motivo.
Por algum tempo não dissemos mais nada, terminamos o café e fomos para o colégio. Eu sempre chegava antes que minhas amigas porque ia de carona com a minha mãe, e nesse tempo costumava ouvir música, sentada sozinha na sala de aula.
Naquele dia eu fiquei no pátio, mudando de posição sobre o banco que escolhera a cada cinco segundos. Interrogava cada rosto que passava pelo portão, a procura da minha ruivinha. Não a tinha tirado da cabeça um instante sequer, desde o momento que deixara o vestiário, na tarde anterior.
Vi Chris e Daniela entrando juntas e caminhei ao encontro delas. Nos abraçamos demoradamente e eu contei como havia sido minha conversa com minha mãe na noite anterior. A secretária da diretoria apareceu e disse que Daniela estava sendo chamada.
Eu fechei os olhos demoradamente, já estava esperando por aquilo e sem surpresa a ouvi contar, depois de voltar, que minha mãe tinha ameaçado arranjar problemas para ela na escola se Daniela não se afastasse de mim.
– E agora? – disse Chris.
– E agora a sua mãe que se foda! – disse Daniela, sorrindo pra mim.
– Daniela, não é melhor a gente dar um tempo até ela se acalmar?
– E eu vou ficar longe de você? Mas nem morta!
– Ela ta marcando em cima. Tirou-me do teatro.
– Vai ver ela acha que você tem alguma coisa com a Luisa.
Luisa era a professora de teatro do colégio, e era lésbica. Todo mundo sabia.
Percebi que tinha parado de prestar atenção em quem entrava na escola e fiquei em pânico. Hesitei por um instante e declinei a ideia de pedir a ajuda das meninas. Por alguma razão eu não queria que Chris soubesse da minha história com Yasmin e quando o sinal tocou, resolvi que procuraria por ela no intervalo. E depois na saída, se não tivesse conseguido ainda.
Entramos na sala e o professor de Matemática mal havia começado a chamada quando uma das coordenadoras entrou, depois de pedir licença. Senti que o sangue parara de correr em minhas veias e que meu corpo ficara subitamente gelado. Ao lado dela, com um olhar que vagava entre o curioso e o apreensivo, estava Yasmin.
– Por questões internas vamos trocar duas alunas de turma – disse a coordenadora. – Essa é a Yasmin, que veio para a nossa escola esse ano e estava em outra turma até ontem.
Os meninos do fundo assoviaram e eu senti meu sangue ferver. Queria levantar e bater em todos eles, xingá-los, socá-los. Fechei meus punhos involuntariamente e apertei meus lábios. Ao meu lado, Daniela notou que alguma coisa estava acontecendo comigo, mas não teve tempo de perguntar o que era, antes da coordenadora continuar:
– Daniela, você vai para a antiga turma da Yasmin – complementou a coordenadora.
Comecei a gargalhar, do nada, e todo mundo ficou me olhando. Inclusive Yasmin. Daniela estava puta da cara, mas começou a guardar suas coisas e levantar.
– Eu vou matar a sua mãe – ela sussurrou pra mim.
Continuei rindo sem parar. Se a idéia da dona Magali era me transformar em heterossexual, ter colocado a Yasmin na minha turma era, definitivamente, a última coisa que ela poderia ter feito.
– Espero que recebam bem a Yasmin, turma!
“Ah, você não faz idéia” – pensei, com um sorriso sacana.
Yasmin, que olhava na minha direção, percebeu minhas intenções em uma fração de segundo, e sorriu comigo. Incrível como parecia que nunca havíamos nos separado. A ligação que eu sentia com ela ainda não tinha um nome, pra mim, mas já estava acima de qualquer questionamento.
– x –
Yasmin
Olhei para aquele lugar vago assim que a coordenadora me apresentou e saiu. Era bem ao lado de Paula, eu quase não conseguia acreditar, mas também era bem na frente! Fiquei indecisa e antes que parecesse pateta, fui para o fundo e sentei na última carteira, na fila da parede.
– Posso saber qual é a graça, Paula? – perguntou o professor.
– Nada, não. Desculpa.
Ela voltou a rir, baixando a cabeça, e eu ri com ela. Ri sem saber do que estava rindo, mas ri com gosto. De repente parecia que eu poderia rir para sempre... Era uma sensação tão boa! Eu tinha planejado vasculhar a escola inteira naquele dia e não sossegar até encontrar a minha deusa, como dissera Joana, e de uma hora para a outra ela tinha ficado bem na minha frente, de novo. Continuei rindo. Rindo igual uma babaca retardada.
Já conhecia aquele professor e sabia que a aula dele era boa. Difícil de acreditar, para uma aula de Matemática, que nem era a matéria que eu mais gostava. Os dois períodos passaram tão rápido que eu nem vi. Já os outros, de Português, foram eternos. Paula parecia prever as minhas atitudes, pois sempre que eu me demorava um pouco a mais, olhando na direção dela, ela se virava.
Em todas as vezes, fingi que estava super interessada em “contrações verbais” e olhava para a professora, encenando máxima concentração em suas exposições.
O sinal do intervalo tocou e fui cercada por garotos que tinham me olhado a aula toda. Ok, eu era a novidade da escola e tinha de encarar esse papel, mas minha atenção estava mesmo na Paula. Estava esperando que ela viesse falar comigo, mesmo que eu não soubesse o que dizer. Comecei a elaborar algo legal, mas não vinha nada na cabeça, nada! Fiquei com a boca seca.
– Ahn? – olhei para um dos garotos.
– Perguntei se você é nova na cidade – disse ele. – Eu sou Nicholas, prazer.
– Nicholas, certo – repeti para gravar. – Aaam... Sim, sou nova na cidade.
Achei que não era hora de comentar que havia morado ali por sete meses, anos atrás.
Olhei por cima dos outros para a primeira carteira da fila do meio e não vi Paula. Fiquei agitada. Ela estava na porta e era praticamente arrastada para fora da sala pela capitã do vôlei.
Nicholas e seus amigos ficaram me pajeando, mesmo que eu não demonstrasse o menor entusiasmo com isso. Garotos! Nem em mil anos conseguiriam decifrar o comportamento de uma mulher e aposto que se eu estivesse a fim de algum deles, não teriam me dado qualquer bola.
Vi que as meninas que ficaram na sala me olhavam desconfiadas. Meio que não queriam se aproximar porque os garotos estavam ali. Procurei uma brecha na conversa para poder sair da sala e ir atrás de Paula, mas estava ficando cada vez mais complicado.
Perguntei onde era a cantina e se ofereceram para ir comigo até lá. Eu disse que poderia me virar sozinha, mas Nicholas insistiu, sorridente. Ele era o típico galã de colegial, de longe o garoto mais atraente da turma e se eu fosse hétero ele nunca teria vindo falar comigo logo no primeiro dia.
Não que ele tenha percebido, mas sempre acreditei muito nas Leis de Murphy. O equivalente no meu caso seria a própria Paula ter vindo ao meu encontro. Não bastava para ela ser tão linda e – se continuava a mesma de quando nos conhecemos – inteligente. Ela ainda tinha de ser a filha da diretora do colégio!
Eu tinha descoberto aquilo naquela mesma manhã e me sentido uma idiota. Se tivesse procurado logo saber o nome da diretora, teria reconhecido dona Magali e sabido que a filha dela só poderia estudar ali. E não teria agido feito uma ameba ao reconhecê-la por acaso, no meio do treino.
– Eu pago o seu lanche, como gentileza de boas vindas à nossa turma – disse Nicholas.
Rolei os olhos. Estaria perdidamente apaixonada por ele naquele momento, se fosse uma garota convencional. Incrível como ele estava fazendo tudo certo, só tivera o azar de dar em cima da garota errada.
Se fôssemos feitos um para o outro ele teria sido um canalha idiota ou nem teria me notado.
Aceitei o lanche e começamos a conversar sobre o colégio. Eu tentava parecer interessada no assunto, mas desviava o olhar sempre que podia, para ver se enxergava Paula no meio de toda aquela confusão. Tentei outra tática:
– Por que aquela garota ficou rindo quando eu entrei na sala?
– A Paula? Não sei... Você pediu para trocar de turma, Yasmin?
– Não – respondi com sinceridade.
– Ah, então eu acho que sei o que pode ter acontecido – disse ele, orgulhoso e altivo. – A mãe da Paula é diretora da escola, você sabia?
Apenas arqueei as sobrancelhas, dando a ele espaço para continuar.
– E dizem que a Paula e a Daniela têm alguma coisa. Daniela é a menina que trocou com você – completou ele.
Experimentei uma sensação muito ruim. O que ele estava dizendo?
– Como assim?
– Ah, fofocas de colégio, você sabe. As duas estão sempre grudadas. A diretora vive botando panos quentes, mas eu nunca vi a Paula com um garoto... E ano passado ela também vivia grudada com uma menina do teatro, que se formou. Pareciam... Sabe... Namoradas.
– Nossa! – peguei-me dizendo, e querendo parecer sincera, só consegui soar meio cínica.
– E a Daniela estava sempre com elas. Agora estão dizendo que a namorada da Paula é a Daniela e para abafar as fofocas, a mãe dela deve tê-las separado de turma.
– Super perspicaz... Como se elas não pudessem se encontrar fora da aula – fui irônica.
Ele riu. Garotos e seu mundinho simples... Claro que esse mundo eu não compreendia completamente, mas chegava muito mais perto do que jamais algum deles chegaria de compreender o meu.
Nicholas ia usando todos os seus esforços para flertar comigo, enquanto eu, além de flertar, ainda espiava a escola inteira, tentava conter o ciúme repentino que me acometera ao saber que Paula tinha uma namorada, divagava sobre homens e mulheres e ainda lanchava; tudo isso com sorriso de boa moça.
– x –
Paula
Chris me arrastou para fora da sala e perdi outra oportunidade de falar com Yasmin. Nem pude argumentar, ou teria de comentar que já a conhecia e Chris faria perguntas. Chris sempre fazia perguntas! Fomos ao encontro da Daniela e ela me fuzilou com os olhos. Fiquei me sentindo mal por um tempo, aquilo tudo era culpa da maluca da minha mãe e agora minha melhor amiga estava em outra turma.
– Nem reclama, Daniela, que quem adorava fazer a mamãe pensar que existe algo entre a gente era você!
– Vocês não precisam disfarçar na minha frente, garotas – disse Chris.
Olhei para ela como se fosse de Marte e tivesse uma cabeça verde, enorme e dotada de antenas.
– Pela milésima vez, Chris, a gente não tem nada!
– Ta na cara que se gostam e eu dou a maior força.
– Obrigada, Chris, um dia eu vou amolecer o coração de pedra da Paula – disse Daniela.
Bufei de raiva. Ela estava sempre se divertindo a custa daquela história e aquilo já estava indo longe demais. Chris foi falar com as garotas do primeiro ano que queriam entrar no time de vôlei e Daniela e eu ficamos olhando uma para a outra, eu ainda zangada, ela ainda com aquele maldito sorrisinho superior.
Tive certeza de que ela queria ver o circo pegar fogo quando apanhou a minha mão e foi me arrastando pelo pátio até a cantina, sem me largar. Rezei em silêncio para que ninguém contasse aquilo para a diretora ou eu daria adeus quem sabe até aos treinos de vôlei. Comecei a achar que ficaria trancada em casa pelo resto da minha vida.
– Daniela, me solta. A minha mãe deve estar de olho!
– Deixa ela. Ih, olha ali o Nicholas jogando charme para cima da aluna nova! Que descarado, vai ficar com ela e depois lhe dar um belo pé na bunda.
– Como ele fez com você?
Pronto. Tinha conseguido tirar o risinho da cara dela, mas eu só conseguia fazer isso sendo cruel, e por isso me arrependi logo em seguida. Fiquei olhando minha melhor amiga desejar a minha morte e me sentindo miserável.
– Hei... Foi mal.
Ela continuou zangada.
– Dani... Desculpa? Não faço mais. É que você me tirou do sério, eu não quero ter de ficar longe de você e se continuarmos dando toda essa pinta minha mãe é bem capaz de me mandar para outro colégio.
Demorou um pouco, mas ela voltou a sorrir. E me abraçou. Em outras circunstâncias eu teria adorado o abraço dela como demonstração de que aceitara o meu pedido de desculpas... Porém ali, no meio de todo mundo, com a guerra que eu estava vivendo em casa, só consegui ficar ainda mais apavorada.
– E que fique bem claro que quem deu um pé na bunda do Nicholas fui eu, hein?
– Aham – balancei a cabeça como se concordasse.
– Foi sim, tá? Eu é que não te contei a história direito e... – ela me olhou de maneira diferente. – O que era mesmo que você tinha pra me contar que não podia ser na frente da Chris?
Sorri sem me conter. Estava abrindo a boca para começar a história quando fomos interrompidas.
– Ouvi meu nome, por acaso? – perguntou Nicholas.
– Sempre se achando um máximo – disse Daniela, olhando para ele.
– Que estavam falando de mim?
– Do quanto você é metido.
– Pare, Daniela – reclamei. – Oi Nicholas.
E lá estava ela, de novo diante de mim. Yasmin... A ruiva mais linda que já tinha vindo ao mundo. Dessa vez não consegui sorrir, eram emoções demais misturadas no mesmo intervalo. A procura por Yasmin, a ansiedade para falar com Daniela, a raiva por ela estar piorando as coisas, o arrependimento por ter sido desleal e por último a surpresa de estar diante de quem eu mais queria, de novo.
Coloquei as duas mãos nos bolsos da calça.
– E essa é a garota nova – ouvi Daniela dizer. – Yasmin, não é? Nome bonito e incomum. Você não falava de uma Yasmin, amor?
Meu rosto pegou fogo. Vi que Yasmin reagiu imediatamente após ouvir Daniela me chamando daquela maneira.
– Hehe, então é verdade? – disse Nicholas. – Que legal, Daniela, eu não sabia que você curtia... Você sabe, garotas. Mas é legal. Não se preocupem comigo, não tenho preconceito.
– Eu não curtia, mas aí fiquei com um garoto que era tão ruim de cama, mas tão ruim, que resolvi mudar de lado – disse Daniela, com veneno nas palavras.
Céus, estava tudo dando errado! E o pior era que eu não conseguia reagir, dizer alguma coisa, desfazer o mal entendido que Daniela estava criando antes que fosse tarde demais.
– Hei!
Vi que Nicholas se ofendeu. Pudera, com o comentário da minha melhor amiga, qualquer cara teria ficado enfurecido.
– Não caia na lábia dele, Yasmin – alertou Daniela. – Posso garantir que não vale a pena.
– Creio que eu possa decidir isso por mim mesma.
Quase derreti quando ouvi a voz de Yasmin. Meu coração bateu acelerado e senti minhas mãos geladas de novo. Tentava olhar para ela, mas Daniela estava monopolizando as atenções naquele momento.
– É só um conselho.
– Não sei se eu preciso ouvir conselhos amorosos de alguém que construiu a própria sexualidade baseada em uma frustração e no mero desejo de chocar os outros.
Nicholas e eu explodimos numa gargalhada que chamou a atenção da escola inteira. Eu nunca tinha visto alguém deixar a Daniela sem palavras. Preciso confessar que amei aquele momento.
– Bem feito! – disse para minha amiga. – E vê se agora para de tentar se passar por minha namorada.
Moldei aquela frase de propósito para conseguir dizer que não havia algo entre nós. Tentei ver a reação de Yasmin, para saber se ela tinha entendido, mas não consegui. Ela ainda estava devolvendo o olhar assassino de Daniela.
– Vai se arrepender disso, novata.
– Nossa! Estou tremendo de medo – percebi muita ironia nas palavras de Yasmin e fiquei admirando como ela conseguia ser firme e segura.
– O ar está poluído aqui. Vamos dar uma volta, Paula?
Recusei o convite de Daniela e ela saiu de perto de nós puta da cara e sussurrando um milhão de palavrões, todos destinados ao trio que ficara parado diante da cantina: Yasmin, Nicholas e eu.
– Desculpa por isso, Nicholas, ela ta furiosa com a minha mãe.
– Sogras e noras são assim.
– Ah, meu Deus! – suspirei indignada. – Eu não tenho nada com ela. Nada. Nada. Nada. Mil vezes nada! E se quer saber, eu acho que ela ainda gosta de você.
Notei que ele gostou de saber daquilo, mas não me respondeu.
– Vou dar uma volta – disse ele.
E lá estávamos nós, Yasmin e eu, no meio do pátio do colégio, uma de frente para a outra...
– x –
Yasmin
Quem aquela garota pensava que era? Primeiro tinha deixado meu coração apertado se fazendo passar por namorada da minha deusa e depois dera aquele ataque todo. Senti meu sangue ferver de raiva dela, como não sentia havia muito tempo. Minhas reações estavam extremadas e eu sabia o motivo. Paula estava diante de mim, finalmente, e depois que o Nicholas saiu de perto, não tivemos mais desculpas para adiar aquilo.
– Você deveria pichar na parede do colégio: “ela não é minha namorada!”
Paula deixou um sorriso escapar. E que sorriso! Fiquei olhando o rosto dela, seus olhos brilhando, o formato da boca muito vermelha e os dentes tão brancos... O que eu sentia naquele momento era uma vontade incontrolável de abraçá-la com toda a minha força e não soltá-la nunca mais. Nunquinha... Mas só fiz isso depois que ela me respondeu:
– Você não mudou nada, Yasmin!
O contato do corpo dela com o meu me fez estremecer. Abriguei-a com carinho e afaguei suas costas, procurei manter meus lábios longe da pele dela ou começaria a beijá-la ali mesmo... E não conseguiria parar.
Olhamo-nos de novo e sorrimos. Sorrisos abertos e sinceros como eu achava que só existiam em filmes. Relutei, mas houve um momento em que tive de me afastar, pelo menos um pouco, do corpo dela.
– É tão bom te encontrar de novo.
– Seus pais mudaram de volta?
– Uhum.
Notei que precisava responder mais alguma coisa, mas não saía nada. Havia acabado de sorver uma lata de refrigerante e minha boca estava seca. Havia acabado de ingerir um pastel e meu estômago doía como se eu não comesse há dias. Era verão e fazia um calor danado, mas meu corpo ficara gelado, de repente, no exato segundo que Paula e eu encerramos o abraço.
– E você, como está? – perguntei.
– Tudo bem, ou... Quase isso.
– O Nicholas me contou que a sua mãe é diretora, aqui.
Vi que ela bufou de raiva. Percebi que aquele era um assunto complicado e eu não queria tocar nesse tipo de conversa. Eu só queria estar ali, para sempre ao lado dela. Fiquei pensando no “para sempre” algum tempo. Aquela expressão tinha sido inventada para nós duas.
– Onde você está morando? Voltaram para a mesma casa?
– Não, não. É perto aqui da escola, dá até para ir andando. Não quer almoçar lá em casa hoje? Meus pais ainda lembram de ti.
Fui respondendo a pergunta, fazendo o convite e pensando em mil planos para aquela oportunidade, tudo ao mesmo tempo. Atropelei algumas palavras, mas no fim acho que ela me entendeu.
– Eu queria, mas não posso.
Vi que os olhos dela ficaram tristes e desejei esticar o meu braço e tocá-la gentilmente no queixo, mas não me senti à vontade para isso no lugar onde estávamos.
– E por que não pode?
– Estou de castigo, acredita?
– É, você sempre foi uma menina levada...
Nossos olhos se encontraram de novo. Eu nem tinha pensado em dar tanto duplo sentindo àquela frase, mas depois que saiu, fiquei satisfeita. Paula estava me encarando profundamente, mas eu percebi que o olhar dela escorregava para os meus lábios meio sem querer, meio querendo. E das últimas vezes demorou tanto para voltar que o frio no meu estômago se transformou em uma súbita onda de calor e eu tive que me segurar muito para não fazer o que o meu corpo ordenava.
Virei o rosto, apertando os olhos. O ar me faltava. Como ela fazia aquilo comigo em um segundo? Queria eu ter tido tanto poder sobre alguém...
– “Levada”?
Notei que ela falara devagar e de propósito, sabendo que meus olhos estavam mais uma vez presos a todos os detalhes da boca dela.
– Por que o castigo?
– Não posso sair de casa sozinha, até arranjar um namorado.
– E se você arranjasse uma namorada?
– Aí sinto que seria mandada para a Lua. Sozinha. Ou com um homem. Não sei qual dos dois seria pior.
Rimos juntas e o sinal tocou. Fim do intervalo. Eu queria ter perguntado tanta coisa e ficara só no papo trivial. Não poderia mandar bilhetes, ou estes teriam de passar por meia turma antes de chegar às mãos dela, e também não tinha o seu número de telefone para ficar trocando mensagens durante a aula, como eu costumava fazer com Joana.
Amarguei dois períodos de Química e um de Religião. E os professores nem para facilitar a nossa vida e dar trabalho em dupla ou coisa assim. Quando o sinal do fim da aula soou, eu quase dei um grito de alegria no meio da sala, mas recobrei meu senso prático a tempo de evitar meu ímpeto.
Joguei as coisas dentro da minha mochila de qualquer jeito e fui para a carteira de Paula, que ainda guardava seu caderno.
– Posso pedir o seu telefone? – perguntei.
– Cortado. E o celular foi confiscado pela minha mãe.
– Ta falando sério? Como eu vou fazer para falar contigo?
– Paula!? Se apressa que eu tenho um compromisso.
Virei em direção a porta. Dona Magali estava parada e ainda atrapalhava os meus colegas, que queriam sair. Fiquei feliz que ela não tivesse olhado na minha direção. Pelo que eu estava entendendo, ela fazia marcação cerrada sobre a Paula e ela estava sendo vigiada de perto.
Percebi que Paula apenas fingiu me ignorar e não a atrapalhei, seguindo direto para a carteira de Chris, que ainda não se levantara. Então seria assim? Teríamos de nos fingir de desconhecidas?
Comecei a pensar que aquilo tinha o seu lado interessante e a ideia me atraía. Estranhas completas na escola... Quem sabe namoradas fora dela. Quase ri. Ter conseguido trocar pelo menos algumas frases com ela aumentara o meu desejo de que pudéssemos ter alguma coisa de novo. Afinal de contas, Paula era a primeira garota que eu tinha beijado, e dizem que isso é algo que a gente nunca esquece.
Olhei para trás de novo, enquanto ela se afastava. Ela esperou uma distração da diretora para olhar na minha direção também. Nada dissemos. Não precisava. De um modo estranho eu tinha certeza de que ela me queria com a mesma força que eu a desejava, mas aquele olhar que trocamos guardava ainda outras esperanças e promessas e sem pensar, sem planejar, eu suspirei.
Fim do capítulo
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