Capitulo 1
Capítulo 01 – Um sentimento, duas metades
Tive um pássaro de estimação na infância e por muitas vezes ele chegou a ser o meu único confidente. Para uma doce criança eu até tinha algum preparo emocional e me fiz de forte e de madura quando meu pai e eu fomos até um parque para que o meu amigo ganhasse a liberdade.
Minha mãe me dissera que o melhor para ele era viver na natureza e que ele ficaria feliz comigo por deixá-lo ir, mas que se fosse o nosso destino permanecermos juntos... Bem, você com certeza já ouviu isso.
O que eu não sabia era que, tantos anos depois, seria remetida à mesma lição, e aprenderia finalmente que aqueles que nos amam não precisam de gaiolas, de grades, nem de amarras... Mesmo livres, eles voltam pra nós, por vontade própria.
– x –
Paula
– Paula!
Suspirei cansada e olhei para o lado. Minha colega e melhor amiga tinha o braço estendido e um bilhete dobrado na ponta dos dedos. O professor de Biologia já estava indignado conosco, mas naquele momento se detinha virado para o quadro negro, então apanhei o bilhete rapidamente e antes que ele notasse qualquer coisa, enfiei-o no meio do meu caderno e tentei fazer uma expressão de aluna brilhante e super interessada.
Ele olhou desconfiado e se virou novamente para o quadro. Abri o bilhete com imenso cuidado para não produzir qualquer ruído. Amava e odiava sentar bem na frente, na fila do meio. Estava sempre na cara dos professores e nunca podia aprontar.
Por outro lado não perdia qualquer explicação e estava realmente tentando estudar no terceiro ano, depois de ter passado os dois primeiros com a turma do fundo da sala, muito mais preocupada com os ensaios do grupo de teatro, da banda e os treinos do time de vôlei da escola do que com as notas.
Virei o pequeno pedaço de papel duas vezes, e me dando por vencida, encarei Daniela interrogativamente e lhe devolvi o bilhete grafando apenas um ponto de interrogação no verso de um desenho.
– Psiu!
O braço do professor parou, com o giz entre os dedos, mas ele não olhou para trás antes de continuar a frase que escrevia.
Estendi meu braço sem olhar para Daniela – atenta ao professor – e ela depositou o bilhete novamente na minha mão. Pisquei por um segundo, baixando os olhos para o conteúdo de minhas mãos, quando ouvi o que me pareceu um trovão:
– Paula, de novo?
Apertei os olhos e prendi a respiração, sabendo que ao meu lado Daniela estava fazendo a mesma coisa. Tremia quando alcancei o bilhete que o professor solicitara e percebi Daniela resvalando na cadeira, como se quisesse desaparecer da face da Terra.
– Desculpa, professor – tentei dizer alguma coisa.
– Vejamos o que pode ser tão mais interessante que a minha aula...
“Qualquer coisa seria” – pensei.
Lógico que não disse isso em voz alta. Então o sinal tocou e todo mundo começou a deixar a sala. Daniela e eu ficamos esperando e quando o último de nossos colegas saiu, o professor devolveu o bilhete para a minha amiga, rindo de uma maneira estranha quando encontrou seus olhos.
Alcançamos o corredor e eu finalmente li a resposta dela: “é uma tatuagem, tonta, vou fazer na bunda semana que vem”.
– Velho tarado! – disse Daniela, perplexa. – Você viu a cara dele?
– Pudera, sua maluca! Ele já estava de olho e você escreve uma coisa dessas?
– Puta merd*, nunca mais sento na frente em Biologia. Aliás, nunca mais entro na sala. Tem alguma turma de terceiro ano que não tenha Biologia com ele?
Pensei por um instante. O colégio era enorme, havia pelo menos seis turmas de cada ano só no diurno. Ia responder alguma coisa quando uma garota de óculos roxos e camiseta de banda já muito surrada abordou a Daniela e perguntou alguma coisa sobre o treino de basquete.
“Nova na escola” – logo pensei. Daniela era a capitã do time e ficava responsável por avisar às outras sobre os horários.
Apesar das milhares de afinidades, no esporte e no amor tínhamos gostos diferentes.
– Ela não é meio tampinha pra jogar basquete? – perguntei, enquanto caminhávamos pelo pátio.
– Nem está no time. Acho que não arrumou desculpa melhor pra se aproximar da gente, aí lembrou que eu sou capitã.
– Desculpa melhor?
– Paulinha, você já foi mais esperta – disse-me ela, fazendo-me rir mesmo que não tivesse entendido ainda. – A “tampinha” tava de olho em você.
Arregalei os olhos e em um segundo estava me pondo na ponta dos pés para ver para que lado ela tinha ido. Era inútil. Quase mil adolescentes no mesmo pátio, ela já tinha desaparecido.
– Saco, Daniela, nem pra me dar um toque – reclamei.
– Puxa, tinha baba escorrendo pelo queixo dela, eu achei que nem precisasse.
Daniela sempre me fazia rir, tinha um jeito estabanado e divertido que convidava as pessoas a fazer parte da vida dela. Ela também sabia ser séria quando precisava e não era de graça que ficara com a vaga de capitã depois que a antiga se formara. Tinha espírito de liderança.
Em detrimento de todas essas coisas, o que eu mais gostava nela era o fato de que confiava em minha melhor amiga de olhos fechados. E nunca tinha me arrependido.
– Não exagera, vai. Mas pega o telefone dela se ela aparecer no treino – pisquei o olho.
– Ui... Começando na primeira semana, esse ano! Passa pra cá um pouquinho desse mel, gata!
Estávamos no meio do pátio e Daniela não era, digamos, uma pessoa discreta. Sempre estávamos juntas e sempre havia pelo menos um grupo de alunos olhando para nós.
– Não começa – adverti, sabendo o que ela tinha em mente.
– Que foi? Tá tímida, amor...?
Dizendo isso, ela me enlaçou pela cintura e senti meu rosto pegar fogo quando Daniela deslizou o dedo sobre os meus lábios, olhando para eles como se os fosse devorar naquele exato instante.
– Paula!!!!!
Apertei os olhos e Daniela me largou imediatamente. Apesar de ela ter sido pega de surpresa tanto quanto eu, seu rosto formou um sorriso maroto, de quem adorava me ver em apuros.
– Você me paga... – sussurrei rapidamente.
No instante seguinte, cabisbaixa, seguia minha mãe até a sala da direção.
– Senta.
Obedeci.
– Paula, o que você tem na cabeça?
– Mãe, a Daniela só tava brincando – tentei argumentar.
– “Senhora diretora” enquanto estivermos dentro da escola, lembra?
– Saco – disse.
– No meio do pátio, Paula? O que é que as pessoas vão pensar?
– Ninguém tava vendo até a senhora fazer um escândalo.
– E se eu não chegasse vocês duas fariam o quê? Ela iria te beijar na boca?
Quase ri para não chorar. Depois que me apanhara beijando uma garota na saída de uma festa, nas férias, minha mãe tinha passado a desconfiar de qualquer ser do sex* feminino que se aproximasse de mim. Notava isso pelas atitudes dela, porque honestamente não tínhamos sentado para conversar sobre o tema. Eu sabia que ela tinha visto e não falou nada; e ela sabia que eu tinha notado que ela viu e mesmo assim não toquei no assunto.
Cometi a besteira de contá-lo para a Daniela, e fazer a minha mãe acreditar que ela e eu tínhamos um caso tórrido pareceu se tornar a obsessão da garota.
– Mãe, a Daniela é só minha amiga. Ela faz isso porque sabe que você fica puta – parei e reformulei. – Quis dizer senhora diretora e... Am... Furiosa.
Minha mãe suspirou longamente e se sentou diante da própria mesa, que nos separava. Notei que ela estava cansada, mas não quis perguntar o motivo. Minha língua parecia presa.
– Seu professor me falou do bilhete que tomou de vocês na aula de Biologia.
– Todo mundo troca bilhetes durante a aula, m... Senhora diretora.
– Bilhetes obscenos?
– Mãe, só tinha a palavra bunda! – levantei-me, sem qualquer saco para aquela discussão. – Ou melhor, senhora diretora, só constava na missiva um sinônimo mais popular e de gosto duvidoso para a palavra glúteo.
– Paula... A Daniela é o que você chamaria de “chave de cadeia”.
Balancei a cabeça negativamente, incrédula.
– Você está apaixonada por ela? Vocês são... Aaam... Namoradas? – perguntou minha mãe.
– Não, mãe, eu já disse que não!
Pela expressão dela, notei que não a tinha convencido. Usei o argumento mais simples:
– A Daniela é a hétero mais hétero que eu conheço.
– E você?
A pergunta teve um estranho tom de desafio.
Em silêncio, nos encaramos por algum tempo.
– Não – esvaziei meus pulmões. – Você sabe que não. Eu sou lésbica, mãe...
Apertei meus olhos e deixei minhas costas se apoiarem na porta da sala, que fora fechada assim que entramos. Mordi meus lábios, tentei tomar fôlego, mas nada parecia funcionar. Eu teria atrasado aquele momento por um milhão de anos porque sabia o que iria acontecer. Eu sabia qual seria a reação. Eu tinha certeza que decepcionaria mais a minha mãe com uma resposta verdadeira de dois segundos do que somando todas as coisas ruins que eu fizera e todas as mentiras que eu contara em dezessete anos de vida.
Deixei a frase escorregar pelos meus lábios. Ela já tinha visto um beijo, era verdade, mas não duvido que mesmo ela em algum momento da vida tenha beijado outra mulher na boca.
Ela era professora, psico-pedagoga e recentemente diretora de uma escola, sabia que eu estava na idade em que se experimenta de tudo e provavelmente foi isso que concluiu. Ou que fosse uma brincadeira minha, mais uma delas. Eu tinha feito muitas coisas para chocá-la depois que meu pai faleceu.
Saí da sala dela quando notei que ela estava chorando. Uma coisa era decepcionar a minha mãe da pior maneira que jamais poderia fazer, e outra mais grave era assistir a reação dela.
Percebi que também estava chorando e corri para o banheiro. Tranquei-me em uma das cabines e fiquei sentada sobre a privada, com o rosto enterrado nas mãos.
– x –
Yasmin
Olhei para o ginásio, parada na porta de acesso. Redes protegiam as arquibancadas e os refletores já estavam acesos. Vi apenas um bando de garotos sentados, alguns mexendo no celular, outros conversando entre si. Aquilo era um treino de vôlei feminino, como é que eu poderia ter esquecido que haveria garotos assistindo?
Caminhei lentamente até o vestiário, com apenas uma alça da mochila presa em meu ombro. Fui chamada de “gatinha” por um dos meninos quando passei diante do grupo. Mantive minha postura de boa moça, mas no fundo estava mesmo louca para rir. Se eles soubessem que eu era, na verdade, uma espécie de concorrente deles, suponho que o adjetivo seria outro.
A situação não era inédita pra mim e eu sabia que ser nova no colégio tinha suas vantagens...
Larguei minha mochila sobre o banco e tirei meu casaco, dobrei-o, larguei-o ao lado da mochila, depois tirei meu All Star e enquanto o empurrava para baixo do banco ouvi outras garotas entrando.
Reconheci apenas uma delas, que me acenou de longe. Havia acabado de voltar para a cidade e tudo naquela escola era novo para mim. Tirei minha calça, apanhei o short na mochila e o vesti rapidamente. Não consegui evitar que meus olhos apreendessem a cena que se desenrolava diante de mim, do outro lado do vestiário.
Quatro garotas de calcinha e sutiã não era coisa que eu via sempre e me peguei amando vestiários novamente. Foi uma ótima idéia entrar para o time de vôlei do colégio novo. Sorri maliciosamente, por meus pensamentos, sabendo que jamais seria pega.
Fui para a quadra e trombei com outro grupo entrando no vestiário. Não vi seus rostos. Caminhei diretamente para o treinador, com quem tinha conversado de manhã e ele me deu algumas dicas, depois das quais fui me alongar, com os pensamentos longe dali.
Quando prestei atenção na quadra de novo, já havia cerca de vinte garotas correndo de um lado para o outro, como eu, aquecendo os músculos. Meu nervosismo foi passando aos poucos, apanhei uma bola e descobri que teria de encontrar uma dupla.
O treinador rapidamente empurrou uma das garotas na minha direção e disse algo como: “você fica com a novata”. Sorri. Será que ela era uma atleta obediente e levaria aquilo ao pé da letra? Sacudi a cabeça para mim mesma, a garota tinha toda pinta de hétero e ficava olhando para os meninos da arquibancada a cada cinco segundos.
Depois de alguns exercícios, como aquele era o primeiro treino depois das férias, resolveram fazer um jogo. Os meninos aplaudiram entusiasmadíssimos.
– Quero ver como está o nível de vocês depois de meses paradas! – disse o treinador. – As doze primeiras da chamada se dividam em dois times. As outras esperam.
Bufei. Eu me chamo Yasmin, com Y!!! Critérios alfabéticos sempre me deram nos nervos. Notei que o treinador olhava para mim e então voltou a falar para o grupo.
– As onze primeiras. E a novata. Quero ver o que ela sabe fazer.
Baixei a cabeça e entrei em quadra. Nem sei como foi que dividiram o time, mas percebi que elas tinham algum critério. Notei que elas tinham posições e pela primeira vez achei que aquilo não seria tão “o fim do mundo” quanto eu estava pensando.
Uma das coisas que mais lamentara na última mudança fora deixar minha equipe para trás. Na cidade, éramos imbatíveis. Chegamos às finais do estadual juvenil, mas eu parti antes da conquista.
– Onde você joga? – perguntou-me uma delas.
– Sou ponteira – disse timidamente.
Deram-me o primeiro saque. Normalmente era o lance mais temido e todas literalmente passavam a bola.
Mirei o outro lado da rede, totalmente concentrada. O treinador apitou, respirei fundo e preferi não abusar da sorte logo de cara. Saquei forte e no fundo, mas não fui tão agressiva quanto poderia ter sido. Devolveram a bola e meu time conseguiu cravar o contra-ataque.
Apanhei a bola, soquei-a no chão, várias vezes, então espalmei a mão, quicando a bola na quadra. Relaxei meus ombros. Já tinha acertado o primeiro, poderia arriscar sem pagar mico. Parti para um saque viagem e ouvi alguma coisa vinda da arquibancada, tipo assovios. Ace. O treinador me olhou, eu fiz que nem notei, apanhei a bola, fui pro fundo da quadra... Tudo de novo.
O jogo continuou em ritmo lento, pois estavam todas fora de forma. Quando finalmente o rodízio me permitiu chegar à rede, o treinador trocou os times e fui parar na nada confortável ponta direita... Do banco!
Pelo menos a visão dali era boa e meu segredo mais oculto foi o que me distraiu até quase o final do treino.
Depois de um rali de quatro ataques, a bola finalmente foi ao chão e acabou rolando na direção do banco, exatamente onde eu sentara.
Apanhei-a e ergui os olhos rapidamente para sorrir para a garota que eu notara se aproximar, com o intuito de apanhar o instrumento de jogo. Então senti um choque confundindo todos os meus sentidos.
Foi como receber uma bolada no rosto ou um soco no estômago, mas não doeu. Até então eu não fazia idéia que ser pega completamente de surpresa poderia ser algo tão bom.
Mesmo sem conseguir processar, ou mesmo dar um nome ao que sentia, meu sorriso não se desfez. Pelo contrário, continuou aberto, principalmente porque eu notei que ela me reconheceu no primeiro segundo que encontrou meus olhos.
Esquecemos de respirar.
Fiquei eu com o braço estendido, oferecendo a bola, e ela me encarando com sorriso bobo e expressão ligeiramente pasmada. Vi seus lábios tremerem por uma fração de segundo, como se fossem proferir alguma coisa, e então as duas se viraram rapidamente.
– Paula!? Acorda! A bola! – gritou uma das meninas.
Ela pegou a bola apressada, totalmente sem jeito e voltou correndo para a sua posição. Era levantadora. Como eu não a tinha notado antes? Concluí que Paula deveria ser a levantadora que chegou atrasada.
Fiquei olhando ela jogar. Bom, ela foi péssima. Não tive como não rir, aquilo não era apenas falta de treino, ela certamente não tinha vaga no time principal.
Contudo a minha análise técnica se limitou a meros instantes. Eu estava interessada em outra coisa. Paula estava tão diferente de como eu lembrava dela que parecia outra pessoa. Pensei melhor e vi que estava sendo besta. Minhas recordações eram de quatro anos passados. Foi tempo mais do que suficiente para ela deixar de vez de ser criança.
Diante dos meus olhos atentos, todas as marcas do amadurecimento. Meu corpo percebeu e reagiu imediatamente, mas meu cérebro foi bem mais lento. Quando a “ficha caiu”, fechei os olhos e mordi os lábios, antecipando uma sensação maravilhosa. Sem poder explicar, fui tomada por um sentimento de posse, mas também de pertencimento.
Como nunca gostei de romances, achei ridícula a associação que fiz, mas ela teve sentido: todo o tempo eu tinha sido uma metade, que só percebeu não ser completa quando a outra parte apareceu.
– x –
Paula
Voltei correndo para a quadra, mas não consegui mais jogar. Ouvi a frase “Paula, você está sonhando?” umas quinze vezes. Tive vontade de gritar bem alto: “estou sim! E não quero acordar nunca!”, mas tentei disfarçar. Errei duas saídas de rede e por muito pouco minha colega de time não torceu o pé. Tentei variar com as bolas de meio e meu fracasso foi maior, já estava beirando o ridículo.
Comecei a me perguntar se Yasmin estava olhando. Mirei rapidamente o banco de reservas, mas ela estava distraída. Senti uma angústia repentina e inexplicável.
O treino acabou e fomos todas para o vestiário. Percebi que estava tremendo dos pés à cabeça e desejei não estar apenas de short e camiseta para poder colocar as mãos nos bolsos da calça. Simplesmente não sabia o que fazer com elas...
Yasmin já estava se trocando, assim como as outras que ficaram na reserva na segunda parte do jogo. Fiquei parada como uma pateta olhando para ela. Yasmin tinha crescido mais uns quinze centímetros e seu cabelo ruivo escurecera. Era todo picado e eu fiquei imaginando que deveria ficar lindo quando ela o arrumava. Pensei melhor, engolindo em seco: estava perfeito daquele jeito, suado e desgrenhado.
Voltei a tremer quando os olhos dela encontraram os meus de novo. Lembrei que tinha de apanhar as minhas roupas na mochila, tirar as joelheiras, mas não conseguia me mexer.
Ela agiu tão naturalmente que fiquei envergonhada. Meu rosto pegou fogo e tentei disfarçar começando a desamarrar meus tênis, apoiada com as costas na parede fria do vestiário. Olhei para as coxas dela enquanto Yasmin tirava o short, sem me importar se alguma das minhas colegas perceberia que eu estava de queixo caído. Subi meu olhar pelo corpo dela, percorrendo, analisando e desejando cada centímetro dele de uma maneira que meus olhos não conseguiam esconder.
Ela me olhou de novo e percebeu. Yasmin apanhou uma calça da mochila e a vestiu com calma, bagunçando todo o seu cabelo com as duas mãos depois de fechar o cinto. Então ela se virou para o espelho e pelo reflexo deste, nossos olhares se encontraram outra vez, presos um ao outro por mais tempo do que eu pude contar.
Tirei minha calça da mochila e a vesti sobre o short de lycra, porque comprava quase sempre um número a mais que meu manequim e deixava minha mãe louca da vida por ter uma filha que andava com “metade da calcinha aparecendo”. Ri por lembrar das palavras dela, distraída em desdobrar a blusa que apanhara na mochila. Yasmin não tirara os olhos de mim, pelo espelho, e eu percebi que gostava daquilo.
Normalmente o olhar de uma mulher sobre mim me deixava envergonhada, fosse ela homossexual ou não, fosse o olhar de desejo ou fosse apenas algo trivial. De Yasmin eu não tive vergonha, como não tivera de ficar olhando para ela descaradamente.
Comentei o jogo com Chris, a capitã, rapidamente, enquanto vestia a minha blusa, e pedi desculpas por ter errado tanto. Ela sorriu, disse qualquer coisa e saiu, depois de dar tchau. Éramos colegas de time e de turma desde o primeiro ano e às vezes ela saía com Daniela e eu. Chris sabia da minha predileção por garotas e era outra que tinha certeza que Daniela era minha namorada, não importava o quanto eu negasse.
Vi que Yasmin estava demorando de propósito e fiquei satisfeita por notar que estava todo mundo saindo. Tinha tanta coisa para dizer a ela, mas só conseguia me concentrar na principal: estava feliz por vê-la de novo. E isso era só o que importava.
Assim que terminei de me arrumar juntei coragem e ia ao seu encontro quando Chris voltou para o vestiário:
– Paula, o Fernando ta lhe esperando ali na quadra.
– O quê?
– Pediu pra lhe avisar, acho que ele está com pressa.
Olhei para Yasmin mais uma vez. Ela pusera a blusa e estava amarrando o cadarço do All Star preto. Saí para falar com Fernando na esperança de resolver aquilo logo e poder convidar Yasmin para ir a algum lugar e conversarmos pelo resto da vida. Balancei a cabeça. Resto da vida? Mas era realmente aquilo que eu desejava naquele momento.
– Que que é? – perguntei ao Fernando, que me olhava ansioso.
– Nossa, nem um beijo, irmãzinha?
– Não sou sua irmã – disse, zangada.
– Ah é... – ele me olhou da cabeça aos pés. – Ainda bem...
Rolei os olhos, subitamente exausta. Fernando era filho do namorado da minha mãe e eu era obrigada a conviver com ele já havia dois anos. Lamentava pensar que do jeito que as coisas iam, teria de fazer isso por muitos anos ainda.
– O que está fazendo aqui?
– Sua mãe me pediu para vir te buscar.
– Eu conheço o caminho de casa.
– Vocês duas vão jantar com a gente – respondeu ele. – Olhe... Tenho ordens expressas de não te deixar sair daqui sozinha.
Havia começado! Dois dias depois de saber que eu era lésbica, minha mãe já conseguira reunir toda ajuda possível e mantinha guarda sobre mim. Era da casa para a escola e da escola para casa. Achei milagroso que ela tivesse me deixado ir ao treino, mas os ensaios de teatro estavam cancelados. Fernando tinha trancado a faculdade naquele semestre e se tornou o braço direito dela naquela tarefa de me excluir do mundo.
– Saco! – disse eu.
Mas não adiantaria reclamar. Meu reencontro com Yasmin teve de ficar para outro dia.
– x –
Yasmin
“Linda” – digitei.
Fiquei olhando para a janela de bate papo e aguardando alguma resposta. Depois da nova mudança, minha relação com a minha melhor amiga, Joana, se restringiu ao telefone e à internet.
– Ah é, é?
– Uhum – teclei em resposta. – Perfeita, maravilhosa, estonteante, magnífica, de tirar o fôlego, sensacional, deslumbrante.
– Nossa, desse jeito eu vou querer conhecer a tal Paula, rsrsrsrs.
Joana fora minha primeira namorada, mas nós duas percebemos em tempo que o verdadeiro significado da nossa empatia era a amizade. Pelo tanto que descobrimos ter em comum, foi uma coisa totalmente natural nos tornarmos confidentes.
– Quem era o cara que saiu com ela? – digitou Joana.
– Não sei – respondi.
– Namorado?
– Pode ser. Mas do jeito que ela me olhou, não acho que tenha dúvidas sobre a própria sexualidade.
– Ihh, já vi que vai acontecer alguma coisa entre vocês, rsrsrs. Vou querer saber de tudo em primeira mão, viu?
Ri dela. Era lógico que Joana saberia de tudo em primeira mão! As coisas só ganhavam significado na minha vida depois que eu contava para ela. Fora assim, contando para Joana e conversando com ela, que eu tinha me dado conta que nunca esquecera a Paula.
– Amanhã vou ver se a encontro no colégio.
– Não vá fazer nenhuma merd*, Ruivinha.
– Não vou fazer.
– Ah, como se eu não te conhecesse.
– Por quê?
– Bom, você pegou notebook do seu irmão e levou para a varanda. E está fumando, atirada sobre a sua cadeira preferida e com olhar sonhador. Já passou da meia-noite e você nem parece com sono...
Detestei que tivesse ligado a web cam.
– Está pensando na Paula e está excitada.
Pude ver a gargalhada dela pela janela da imagem.
– Sem graça!
– Viu? Ta louca pra trans*r com ela que eu sei!
Prendi a respiração e mordi os lábios. Apaguei o cigarro e fiquei pensando na Paula. Eu só fumava quando estava nervosa e naquela noite já tinha consumido um terço do maço que comprei voltando do treino de vôlei. Ia para a varanda porque meus pais ficariam estarrecidos se soubessem daquele hábito. Sempre reclamavam do cheiro de fumaça nas minhas roupas quando eu voltava de uma festa... Mas pelo menos ele disfarçava perfumes femininos que eles sabiam não serem meus.
– O que fez hoje, Jo? – perguntei.
– Mudou de assunto! Sabia!
– Para com isso.
– Ui ui, vai levar a Paulinha pra cama, vai? Hahahaha.
– Para!
– Ta pensando nisso agora, não tá? Lembrando do gosto do beijo dela, imaginando como deve ser o resto...
– Eu vou te bloquear! – ameacei.
– Quer ficar sozinha para não ficar só imaginando, é? Hahahaha.
– Para, porr*!
– Ela tem seios bonitos? Aposto que tem... E aposto que você está aí se consumindo para saber como é beijá-los, apertá-los, mordê-los...
– Sua pervertida do inferno, eu vou te matar!
– Ui, tá mais excitada agora, não tá?
– Chega!
– Será que ela ta pensando em você também? Hmmm, deve estar... To imaginando ela... Se virando na cama, abraçando o travesseiro e dizendo o seu nome... Sem sono, como você. Agitada, como você. Morrendo de tesão, como você!
Fechei o lap top num impulso e corri minhas mãos pela nuca, desalinhando meu cabelo. Minha respiração estava completamente alterada e Joana me tirara do sério. Prendi o ar em meus pulmões por não sei quanto tempo, até ouvir meu telefone vibrando. Tirara o volume do computador e Joana já tinha me chamado um milhão de vezes. Levantei a tela de novo e desliguei a câmera.
– To indo dormir, nos falamos amanhã.
– Dorme com os anjos e sonha com a sua deusa, querida.
Sorri de novo. “Minha deusa”. Era uma ótima definição para Paula.
– Só tenta não gem*r muito alto enquanto faz aquilo que eu sei que você vai fazer antes de dormir, pensando nela, para não acordar os seus lindos e inocentes pais, viu?
– Porr*, que merd*, Joana!
– Também te amo, ruivinha.
– Boa noite.
Desliguei o computador, joguei os tocos de cigarro fora e fui escovar os dentes. Enquanto me olhava no espelho fiquei pensando na Paula. Ela adquirira belas formas e estava bronzeada. Eu tinha conseguido ver a marca do biquíni e aquele era só mais um dos milhares de detalhes que tinham me deixado louca.
Não consegui me conter, eu a devorei com os olhos e estava pouco ligando para as outras garotas, no vestiário, com a gente. Agi totalmente por impulso e tinha certeza de não ter vivido aquilo sozinha.
Tinha sido um momento só nosso. O primeiro de muitos que eu sabia que estavam por vir.
Fim do capítulo
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