Capitulo 9
CAPITULO 09
Contém palavras de baixo calão.
BIATRIZ
A garota era insistente, parecia não conhecer a palavra não ou então era dessas garotas que se acham iressistíveis ou, pior ainda, o tipo de garota que coleciona conquistas para continuar sendo a pegadora da turma. Tudo bem, eu até acho bonitinho isso, mas quando alguém diz não, devemos respeitar e ela não estava me levando a sério quando eu dizia.
— Não vai dar, lindinha, eu passei a noite vendo série na Netflix. Estou aqui só viva. Quem sabe numa próxima vez eu fique até mais tarde? ― Retirei gentilmente as mãos da garota do meu rosto enquanto caminhava para o resto da turma que estava ali próximo, ouvindo tudo, e parecia que todos riam disfarçadamente enquanto a garota se afastava dando um adeusinho e sorrindo com cara de quem tinha se dado bem e não levado um fora.
― Galera, foi um prazer conhecer vocês, meninas, e desculpe a falta de educação. Os nomes de vocês são...? — Não conseguia lembrar o nome do casal que parecia ser muito legal e nem tampouco das demais garotas.
— Eu sou Betânia e essa é minha namorada Lara, a prima dela, Gláucia, e aquela que está tentando arrancar a língua do seu irmão é a minha sobrinha, Margarida. — Todos nós rimos com o comentário e, de cara, eu gostei da Betânia. — A propósito, espero que você não seja preconceituoso.
— Com o quê? Com o fato de você ser lésbica? Nem pensar, eu também gosto de meninas e, para seu governo, eu sou girl e não trans ou boy — confessei com uma certa satisfação de ver as caras delas. Era sempre a mesma coisa quando as pessoas tinham a certeza de que eu era uma menina.
— Sério? Cara, tem certeza de que é uma menina? — Ela não acreditava.
— Bem, quando nasci, eu tinha uma vagin* no meio das pernas e o médico disse para minha mãe “é uma linda menina”, o que eu acho totalmente errado. Sabe, na hora que nascemos, deveria ser dito algo como “senhora, sua criança nasceu do sex* feminino” e pronto, só isso. Médico nenhum sabe se ali nasceu um menino ou uma menina, se basear só porque o sex* é esse ou aquele... — Eu me empolguei.
— Concordo em número e grau. Ninguém sabe se vamos ser mulher ou homem quando crescemos, até porque a gente não se apaixona por gênero, a gente se apaixona por pessoa, independentemente de ser homem... — Betânia se empolgou também.
— Quando eu falei para minha mãe que queria namorar uma coleguinha da minha sala quando estava na segunda série do fundamental, ela me levou no psicólogo para que eu fosse acompanhada. Eles esperaram eu completar 12 anos para saber se eu realmente queria mudar de sex* ou se eu era somente lésbica ou, mais ainda, se eu era um menino com corpo de mulher. Foi uma barra pra mim, aquele monte de médico me fazendo perguntas a vida toda — concluí com uma certa tristeza.
— No meu caso, eu sempre gostei de meninas e sou muito feminina. Como pode ver, a Lara também é. Às vezes, vamos na mesma loja, compramos lingeries iguais e, na cama, somos ativas e passivas na mesma medida. — Lara parecia ser a mais calada da dupla, pois concordava com tudo enquanto olhava com carinho para a namorada.
Fiquei com um pouco de inveja, eu queria alguém que me olhasse daquela maneira, que se orgulhasse de mim ou que me completasse só com o olhar.
— Eu também sou muito feminina, como podem ver toda essa delicadeza. — Passei a mão descendo pelo meu corpo com trejeitos de gay bem escrachado, o que fez todos gargalharem alto, chamando atenção das pessoas, que olhavam com curiosidade. — Bem, galera, agora é valendo, estou saindo de cena. Avisem meu irmão e... Betânia, o B tem um grupo no zap só para amigos, passa o teu número para ele, assim a gente vai conversando. Amanhã a gente se vê por aqui? — questionei, mas quem respondeu foi Ana Clara, que estava voltando seja lá de onde ela tinha ido.
— Amanhã tem jogo. Nosso time é o segundo a jogar, venha assistir. Depois que acaba, sempre juntamos uma turma e ficamos na barraca do pastel. — Ela era toda sorrisos.
Eu estava com vontade de ir mesmo, havia gostado das meninas, mas aquela Ana Clara... ia ser dose ficar por perto dela. O jeito era só chegar perto acompanhada, isso se eu não quisesse ser grosseira com a garota.
— Não vou prometer nada. Betânia, a gente se comunica no zap, beleza?
— Falou, Bia, mas você não quer deixar seu número? É mais fácil te adicionar no face ou no insta.
— Procurem por bia-932@gmail.com. Assim que chegar em casa, eu adiciono vocês. Valeu, até outro dia. — Dei tchau e segui meu caminho. Nem olhei para trás quando Ana Clara gritou alguma coisa.
[....]
Era tarde da noite, início da madrugada, por isso deixei todas as luzes apagadas. Em pouco tempo, vi minha vizinha caminhando no quarto dela e parando na janela, olhando para a minha. Minha vontade era de aparecer e chamá-la para conversar, queria sentir outra vez o cheiro do cabelo dela, mas só fiquei a olhando procurar por alguém lá embaixo. Ficou na ponta dos pés e pareceu não ter encontrado o que queria. Ouvi sua mãe gritar para ela sair da janela. Em pouco tempo, ela se afastou e a luz da lua invadiu meu quarto.
Aquela lua trouxe saudade da minha vizinha, então peguei o violão e fiquei dedilhando uma canção que tinha escutado numa barraca na praia quando fui receber o aluguel do apartamento que minha mãe tem à beira-mar, próximo à ponte metálica. Essa barraca era frequentada por uma clientela seleta LGBTQI+ muito parecida com as barracas de São Francisco, na Califórnia. Passando por lá hoje à tarde, ouvi a canção e cantei bem baixinho a letra, que dizia mais ou menos assim:
“Tô aqui na sua frente, meio bagunçado
Cheguei com o volume do som topado
Lembrei do rolê domingo passado
Aí cê lembra bem, nada é impossível
Tudo é invisível pra quem só olha pra si
Não é bem assim, é coisa de outro nível
Eu me acho incrível quando cê olha pra mim e gosto assim
Tá pra nascer um maloqueiro disposto a soltar o dedo só por causa dela
Aí eu penso o tempo inteiro e até bate o desespero, o que sou eu sem ela?
Eu danço com a nossa fumaça, me abraça no conversível, segura minha mão
Até o radar tirou uma foto e se nós tivesse de moto, não pegava, não
E hoje nós bota pra fuder, ver o sol nascer,
Faço o que ‘cê quiser
Nós inventa outro rolê, um jeito de viver só
Com amor e fé
E hoje nós bota pra fuder, ver o sol nascer
Faço o que ‘cê quiser
Nós inventa outro rolê, um jeito de viver só
Com amor e fé
Repeti o refrão duas vezes, fui levantando devagar devido à posição e, quando ergui a cabeça, minha vizinha estava na janela me olhando. Fiquei sem fala e nervosa, fiz a besteira de sair do seu campo de visão, me abaixando e ficando de cócoras. Agora me diga, como é que pode a gente querer ver alguém, falar com alguém e, na hora que aparece a chance, a gente amarela? Pode isso? Tomei coragem e me levantei de vez. Se ela estivesse olhando, eu a chamaria para descer e ficar conversando lá embaixo, mas ela já tinha saído e fechado a janela. Estava tudo escuro. Só me restava me arrastar para minha cama e tentar dormir. Amanhã eu pensaria num jeito de me aproximar, talvez no jogo.
***
— Nós vamos ou não vamos? Se você não for, eu vou sozinho. Já estou indo — meu irmão gritou na porta do meu quarto.
Desci, mas, antes, vesti uma blusa de moletom com capuz, não queria ser reconhecida, queria secar a vizinha de longe. Chegamos à quadra e o jogo já estava pelo meio. Fiquei na última fileira de bancos de cimento da arena. Meu irmão seguiu o primeiro rabo de saia e nem vi quem era, eu fiquei por ali. Na minha frente, havia dois garotos, um era magrinho e o outro bem bombado. Não dava para ver o rosto dos dois com detalhes, mas dava para ouvir perfeitamente a conversa deles.
— Cara, a Marina está muito gostosa — o magrinho falou.
— Tira o olho que aquilo tudo vai ser meu, já faz um ano que venho olhando de longe e espantando os gaviões. Sabe como é, cuidando do que é meu — falou o bombado e já me deu uma coisa... uma vontade de cair na porr*da com ele e fazer ele parar de falar aquelas coisas.
Nesse momento, a Marina defendeu uma bola que seria gol na certa. Betânia foi e deu uma abraço nela. Marina se pendurou no pescoço da Betânia e mais uma menina veio e pulou em cima delas, que caíram. Em pouco tempo, o time inteiro estava um bolo só no chão e o juiz estava feito louco, apitando para o jogo recomeçar.
— Ela sabe que você está afim dela? E você sabia que ela, com 15 anos, nunca namorou? ― O magrinho tirou da sacola de plástico duas cervejas em lata, estendeu uma para o bombado e puxou o lacre da sua, que derramou um pouco pela lateral. Ele virou na boca e bebeu um gole generoso, revirando os olhos de prazer.
— Sabia, sim, minha família é amiga do pai dela. Certa vez, eu falei que tinha intenção de namorar ela e seu Alberto ficou de acordo. ― O Bombado fez a mesma coisa que o magrinho enquanto bebia.
— Nós estudamos na mesma sala, você sabe, e lá, o comentário que rola é que ela não gosta de garotos. A galera é tudo afim de tirar o BV dela, já rolou até uma aposta. Uma amiga dela descobriu e deu até diretoria com os responsáveis pela rifa que estava rolando com as apostas sendo suspensos e os que colocaram o nome só entraram com a presença dos pais. ― O garoto sorveu o restante do líquido e abriu outra lata, erguendo para mostrar a uma menina que estava joganto, que fazia sinal para mais tarde.
— Quem vai tirar o BV dela é o papai aqui e tiro ainda tudo quanto for de selo, pode deixar. Ela vai ficar uma seda depois que passar pelas minhas mãos — ele continuava se gabando e minha vontade era de dar um chute no meio das pernas dele para ver ele cantar de galo na puta que pariu.
— Germano, eu não sei, não, mas eu acho que essa garota é lésbica. ― O magrinho se virou para encarar o bombado.
— Está louco? O pai dela é homofóbico, capaz de deportar ela para o primeiro colégio interno que encontrar ou casar ela com o primeiro que aparecer...
Então o apito de fim de jogo foi ouvido. O idiota então, com as mãos em concha na boca, gritou:
— Marina! Me espera que eu vou contigo até a sua casa!
Eu me encolhi para que ela não me visse. Estava puta da vida, mas eu não tinha nada a ver com isso. Fiquei por ali, até porque eu também estava interessada na resposta dela.
— Vai pro diabo que te carregue, Germano! Ou melhor, vai pentear macaco — respondeu Marina e saiu normalmente, conversando com suas amigas.
Particularmente, eu estava às gargalhadas e morta de felicidade com a resposta que ela deu. Isso queria dizer que eu poderia chegar junto. Talvez as minhas chances fossem maiores do que as do bombado.
— Está vendo, cara? Essa gata é diferente, ela deve gostar da mesma coisa que a gente gosta — o magrinho disse e talvez estivesse certo. Ao menos foi o que pensei.
— Que nada, meu chapa, você já a viu com alguma sapatão? Claro que não. Eu vou fazer tudo direitinho, vou falar com a família dela, pedir autorizaçao, sabe? Com ela, eu quero tudo dentro das normas.
— Então está bem, a gente se vê por aí.
Os dois se despediram e cada um foi para o seu canto. Eu também me mandei, fui para casa, deixei uma mensagem para o meu irmão e fui dormir. Quem sabe a sorte me sorrisse e meu anjo da guarda fosse ao encontro do dela.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 10/04/2022
Esse Germano é uma besta viu.
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