Patrícia passeava cabisbaixa pelo Arpoador. O vento frio do inverno e o céu cinza a faziam sentir-se ainda mais só. Já havia lido a postagem de Amaralina no site e sabia que aquela carta das autoras se dedicava a ela. Apesar dos termos educados e da forma cuidadosa de se expressarem, entendeu que estavam todas insatisfeitas com o que andava escrevendo. De repente, era como se Paty Golezzo houvera se tornado uma grande inconveniente.

 

Apesar do lugar estar praticamente deserto, sentou-se em um banquinho e ficou pensando na vida. “Nada de família, as amigas todas namorando...” – suspirou – “É, Paty, são mais de quinhentos mil seguidores e você, mais que nunca, solitária...”

 

Uma jovem mulher loura caminhava pela areia com as mãos nos bolsos das calças. De repente reparou em alguém sentada em um banquinho no Largo do Millôr. “E não é que é ela?” – reconheceu a influencer – “Mas é muita sorte a minha!” – pensou ao sorrir – Vamos cumprimentar a moça! – caminhou em direção a outra

 

--Ah, sair dessa fossa e ir pra casa! – levantou-se – Vou terminar esse sábado me afogando de série no RedeFlicks! – decidiu

 

--Ei, loura! – uma bela voz feminina chamou – Vá simbora não! – pediu delicadamente

 

--Eu? – Patrícia olhou na direção da voz – “Gentem, que loura gatinha!” – reparou empolgada – Oi, tudo bem? – sorria – “Nossa, e da onde me saiu essa?” – ficou parada esperando que se aproximasse

 

--Tudo ótimo! – chegou sorrindo – Especialmente se dou a sorte de encontrar com ninguém menos que a grande Paty Golezzo! – parou diante da outra – A maior e melhor influencer LGBT desse país! – bajulou

 

--Ui, que é isso? – jogou os cabelinhos – Assim você me deixa até sem graça... – falou com falsa modéstia – “Nada melhor que uma fã pra levantar a moral da gente!” – pensou animada

 

--Mas é verdade! – respondeu jogando um charme – Deixa eu me apresentar: Teodora Blumberg, -- espremeu os olhinhos -- promoter, especialista em TV, cinema, música e literatura LGBT, a sua disposição! – deu beijinhos de comadre bem perto dos lábios

 

“Não faz isso que eu pego amizade fácil...” – pensou – Nossa, tudo isso? – reparava na outra – Pelo sotaque você não é daqui. – percebeu – Viajando a trabalho? – perguntou interessada

 

--Sim, a trabalho. – era toda sorrisos – Sou de Maceió e de quando em vez passo no Rio. Seja pra trabalhar ou passear. – passou a mão nos cabelos – Amo essa terra! E as mulheres, -- caprichava nos olhares – quentes, de um jeito que só se acha aqui!

 

“Ai, meus sais...” – pensou excitada – Que tal a gente tomar um café em algum lugar quentinho? – propôs – Esse frio de hoje não tá convidativo pra gente continuar por aqui. – sorria – Você é minha convidada! Faço questão!

 

--Diga aonde e eu vou sem pestanejar! – piscou

 

“Ganhei pra hoje!” – pensou empolgada

 

***

 

--Então quer dizer que você já trabalhou pra essa gente toda? – Patrícia perguntou impressionada – Tô boba! – olhava embevecida para a loura – “E ela parece tão jovem...” -- pensava

 

--Se trabalhei? Menina, essa gente não vivia sem mim! – jogou os cabelinhos – Depois que dei um up na carreira de Miss Good, prestei umas consultorias pra Illana Shake, do seriado The Sapas World, mas logo desgostei porque achei que ela se perdeu das raízes, sabe como? – pegou o celular – Essa foi nossa foto de despedida. – mostrou para a outra – Illana, Jessy e eu. -- sorriu

 

--Gentem, essa aqui é a Jessica Deals? – arregalou os olhos – Nossa, mas eu sou fã dela! – estava pasma

 

--E ela é um amor! – recolheu o celular – Ficou muito triste depois que larguei o seriado, mas não tinha como. – exibia-se – Voltei pro Brasil e desde então tenho promovido só as artistas daqui. – olhava para Patrícia – Mayara Cadú, Marinália, Branca Lil... – enumerava -- A última que passou pela minha mão foi uma das suas: Gail Nasser. – bebeu um gole de capuccino

 

--Você promoveu aquela louca?? – levou um susto – Como pode isso, gentem, depois de ter trabalhado com tanta artista de peso? – não entendia

 

--Tudo começou no Congresso de novembro. – mentia – Aí ela me reconheceu, me abordou e, depois daquele vexame que fez no encerramento, decidiu me contratar pra ver se a coisa ia. – gesticulava suavemente – Não seguiu meus conselhos, mas ao menos conquistei uma série de leitoras pra ela. – cruzou as pernas – Por isso que foi a mais lida por duas vezes em pouco tempo. – justificava o misterioso sucesso de Gail – Mas há coisa de duas semanas eu rescindi o contrato. Ela é muito teimosa e... sem chance. O que podia fazer ali, já fiz! – bebeu o último gole do café

 

“Então foi isso... Gail contou com o trabalho de uma promoter poderosa!” – o número de leituras começava a fazer sentido – Eu não canso de me surpreender com você! – apoiou o queixo em uma das mãos – “Até esqueci de beber o café!” – pensou ao tomar um gole

 

--Poderia me fazer um favor, meu bem? – pediu cheia de charme – Me passa um guardanapo? Aqui na nossa mesa acabou mas tem aí na mesinha do lado. -- apontou

 

--Claro! – virou-se para pegar e nisso Teodora joga algo em sua bebida – Pronto. – entregou-lhe dois guardanapos

 

--Obrigada. – limpou os lábios – Você disse que mora aqui perto... – fazia um charme

 

Bebeu um gole. – Moro... – respondeu meio enfeitiçada

 

–Por que não termina de beber esse café quentinho, -- deslizou o pé em uma das pernas da outra – e vamos pra sua casa conversar um pouco mais? – piscou sensualmente – Aposto que lá a gente vai se sentir ainda mais quentinha. – olhava nos olhos -- Eu queria te mostrar como sou escandalosamente sua fã! – lambeu-se bem devagar

 

“Delícia... assim você me mata!” – pensou excitada – E o que estamos esperando? – bebeu o café de um gole só

 

***

 

Entraram no apartamento de Patrícia aos beijos.

 

--Você... me deixou... louca! – falava entre beijos – Vem, minha delícia! – fechou a porta com o pé – Mulher maravilhosa! – Patrícia beijava-a excitada

 

--Tire essa roupa, minha musa! – Teodora arrancava o casaco da carioca – Ai, como eu te quero! – mordeu o queixo dela

 

--Você quer? – afastou-se da outra despindo-se peça por peça – Então vem me pegar! – correu para o quarto -- Uhu! – deu um gritinho

 

--E eu vou! – tirou os sapatos e o casaco – Me aguarde! – correu atrás

 

Ao chegar no quarto, Patrícia já esperava nua deitada na cama. – Vem que eu tô pegando fogo! – pediu cheia de desejo

 

--Oh! – pôs a mão no peito – É uma verdadeira visão do paraíso! – fez uma encenação – Deixa eu me despir bem devagar pra fixar na mente a imagem desse esplendor que você é! – mordeu o lábio inferior – Ai... – gem*u

 

“Gentem, essa aí me venera!” – pensou toda prosa – Isso, maravilhosa, vai se despindo pra mim que eu quero ver tudo! – reparava no corpo da outra com desejo – “Mas eu me dei muuuito bem!” – pensou ao se reclinar sobre os cotovelos

 

--Quando terminar – despia-se em câmera lenta -- eu vou beijar você na boca e vou morder o seu queixinho...

 

--Vem Teozinha, vem Teozinha! – pedia com voz insinuante

 

--Eu vou lamber a sua orelha, vou morder seu pescocinho... – fazia caras e bocas

 

--Vem Teozinha, vem Teozinha! – deslizou uma das mãos pelo próprio corpo

 

--Eu vou descer mais um pouquinho e vou morder o seu peitinho! – falava com voz hipnótica -- Eu vou lamber sua barriga, te fazer muito carinho... – lambia-se -- Mas o que eu quero mesmo é morder o seu grelinh*... – mordeu o ar

 

--Vem Teozinha, vem Teozinha! – abanava-se

MC Serginho – Adaptação da música Vai Serginho [1]

 

--Muita calma nessa hora, baby! – terminou de se despir – E lá vou eeu... – sorria

 

--Vem... – fechou os olhos – Vem... – sentia sono – Vem...

 

Horas mais tarde, Patrícia acordava nua e solitária em seu apartamento. Deitada na cama, sentia um gosto amargo nos lábios.

 

--Teozinha? – chamou em vão – Teozinha? – sentou-se em câmera lenta – Nossa, que dor de cabeça! – levou uma das mãos à testa – Teozinha cadê...? – olhou para a frente e entrou em choque – AHAHAHAH!!! – gritou apavorada

 

***

 

--Está tudo resolvido, Abigail. – Érica informava à potiguar – Oficialmente você é a proprietária de todos os bens e ações da dona Quitéria e com isso terá recursos suficientes pra providenciar o que for preciso lá em Natal. – olhava para a outra – Eu já tratei com o plano de saúde dela e o pessoal do home care vai estar à disposição tão logo vocês pisarem na cidade.

 

Abigail ainda não tinha exata noção de sua atual situação financeira e achava tudo muito estranho. No entanto, seu único interesse era cuidar da tia enquanto estivesse viva.

 

--Eu lhe agradeço por demais, só que na minha casa não tem condição de ter esse home aí que você fala, não. – olhava para a advogada – Será que não dava pra ficar mais minha tia no hotel? – pensava no Morada – Aí eu trabalho, fico de olho nela e tenho ajuda dos meus amigo, não sabe?

 

--Você não vai mais precisar trabalhar lá. – notou que a outra ainda não havia entendido tudo – Abigail, -- sorriu – não percebeu que agora você é uma mulher de classe alta?

 

--E é? – espantou-se

 

--Você pode entregar a casa onde vive e comprar uma própria. – aconselhou – Entendo que é algo a se fazer com cuidado, mas não vai mais precisar ficar pagando aluguel. – explicava -- Pode até vir morar aqui na cidade, se quiser.

 

– Mas... se a tia tá viva, não se pode tratar da situação como se ela já tivesse batido as bota, visse? – ralhou de cara feia – Então, até segunda ordem, é tudo dela!

 

Desistiu de tentar explicar naquele momento. – Tudo bem! – concordou – Mas entenda que o dinheiro que estava na conta dela foi transferido pra sua. Então o que precisar gastar, basta usar seu cartão de crédito que dará tudo certo.

 

--Oxe, e eu lá tenho cartão de crédito, mulher? – cruzou os braços – É de débito e olhe lá!

 

Achou graça. – Vamos fazer o seguinte: eu reservo o melhor quarto, a melhor suíte do seu hotel pra dona Quitéria e você. Reservo até o final de agosto, pronto! E aí o atendimento home care será lá mesmo. – olhava para a outra – Mais pra frente a gente conversa e eu te explico tudo no detalhe. Pode ser?

 

--Pode. – concordou também – Ói, você não podia ir pra Natal mais nós? E me orientar nessas coisa de cartão de crédito, home care...? É que... – estava envergonhada – Sempre fui lisa feito um coco e não sei nada disso. – pausou brevemente – Fico insegura... -- assumiu

 

Pensou antes de responder. --Poder, eu não posso, mas vou dar um jeito. – prometeu – Nem que eu viaje alguns dias depois de vocês. – cruzou as pernas – Sabe? – resolveu desabafar – Eu era estudante de direito, tava pra me formar e meu ex me abandonou com uma criança de um aninho e um bebê pra criar. – pausou brevemente – Eu estagiava com o advogado que trabalhava pra dona Quitéria. Na verdade, ele era um dos advogados do falecido seu Tibúrcio. – contava a história – Quando ela soube do que me aconteceu, me amparou como se fosse minha mãe. E se hoje sou dona do meu próprio escritório e meus filhos estão bem encaminhados, devo tudo isso a ela! – reconheceu – E já que você é tão especial pra ela, pode contar que vou ajudar e orientar no que precisar! – prometeu

 

Abigail sentiu orgulho da tia e teve mais tranquilidade para viajar com ela adoecida do jeito como estava. “Graças a Deus essa advogada vai ajudar!” -- pensou – “É muita responsabilidade ficar sozinha pra cuidar de tudo pra uma senhora idosa e tão doente!”

 

***

 

Vera estava há cinco dias em Foz do Iguaçu. Dormindo no carro e se alimentando mal, sua aparência denotava cansaço. Desde que procurou por Latifah, nada novo havia acontecido e Sayruci continuava internada e sedada.

 

Ajoelhada diante da imagem da Sagrada Mãe, a caipira orava na Capela de Nossa Senhora de Fátima nas primeiras horas da manhã.

 

“Por favor, Senhora, eu Lhe imploro, toca o coração daquela criatura! Não é possível que ela não sinta, que não sofra, que não se incomode em ver a mãe naquela desgraceira em que foi colocada!” – implorava com os olhos fechados – “Eu Lhe suplico, livra minha Sayzinha desse mal, muda o destino dela...” – derramou uma lágrima – “E se é por minha causa que ela sofre tanto, que seja eu a passar por isso e não ela!” – orava com fé – “Ela não merece, Minha Mãe, ela não merece...” – sentia-se triste – “Eu esperei esses dia todo por medo de numa atitude impensada botar tudo a perder sem proveito pra Sayzinha, mas chegou-se num ponto que não dá mais! Se Latifah não fizer nada até o fim da manhã de hoje, eu mesma vou arriscar tudo e invado aquela clínica fazendo fuzuê!” – decidiu – “Me dê forças, Mãe Amada, pra que eu faça os trem tudo certo!” – benzeu-se

 

Não tão longe dali, Latifah chegava na casa da avó sem avisar e esperava que ela viesse recebê-la.

 

--Como assim ainda não descobriu quem é a tal? É claro que ela existe, seu idiota! – Zorayde discutia com o detetive por telefone – Ora, mas eu lhe disse que uma parente ou sei lá o que da mulher ligou pro restaurante e falou comigo! – gesticulava – É lógico que eu não disse nada a meu genro, seu imbecil! – falava com arrogância – O senhor é um profissional fraquíssimo! Não sabe quem é a mulher que procuro e tampouco descobriu o destino das joias que minha filha tirou de casa! – revoltou-se – Não fale mais! – ordenou – Nosso trato termina por aqui! – desligou o telefone contrariada – Será possível que Sayruci foi capaz de enganar todo mundo? – reclamava sozinha

 

--Dona Zorayde. – a governanta bateu na porta do quarto – Com licença, perdoe incomodar, mas a neta da senhora a aguarda na sala. – anunciou

 

--Latifah? Aqui? – estranhou – Às oito da manhã? – olhou para o relógio – Vamos ver o que ela quer. – levantou-se e preparou-se para descer

 

A jovem andava de um lado a outro na sala da avó. “Esse pesadelo acaba hoje!” – falava mentalmente – “Pelo menos, a parte mais heavy dele!”

 

--Ora, ora, quem veio me visitar tão cedo? – descia as escadas olhando para a neta – Bom dia, querida! Já tomou café? – sorria – Eu já fiz isso, mas não me incomodaria de acompanha-la.

 

--Bom dia, vóvys. – respondeu sem alegria – Sem fome, no worries! – fez um gesto despreocupado

 

--Seu pai me disse que nem se lembra de quando a viu em casa pela última vez. – reparava na jovem – Soube que gravou mais uma peça turística. Muito trabalho? – aproximou-se da outra -- “Latifah parece que está noites sem dormir.” – pensou – “Mesmo bem arrumada, não está com aquela aparência impecável de sempre.”

 

--Eu já sei de tudo! – foi direto ao assunto – E quero que mamys saia daquela clinicazinha disgusting agora mesmo! – olhava para a avó com firmeza – Nem que aquele médico da velha guarda venha com seu cordel de explicações, tô nem aí! – gesticulou – Mamys leva alta hoje!

 

Estranhou a atitude. – Querida, meu Deus, o que aconteceu?

 

--A senhora internou a mamys porque ela é lésbica! – acusou – E eu não vou mais admitir isso! – estava séria

 

Zorayde ficou sem chão e visivelmente constrangida. – Ora, querida, quem andou lhe dizendo estas coisas? – sorria sem graça – Não é nada disso! Tanto eu quanto o doutor Salim já explicamos que...

 

--Tudo mentira! – interrompeu a fala da outra – Eu já tô ciente, vóvys, pára! Sei qual é a da real! – pediu impaciente – E não vou ficar aqui ouvindo historinha porque não aguento mais pagar de otária pra todo mundo! – gesticulou

 

Fechou os olhos brevemente e segurou a neta pelo braço sem violência. – Venha comigo! Não quero que os empregados ouçam essa conversa! – seguiu puxando a jovem até o jardim – A menos que você tenha ficado louca, não estou pra escândalos! Nem creio que você esteja!

 

--Nunca pensei que fosse capaz, daí! – afirmou com desgosto – Mesmo sabendo que seu coração é de aço!

 

--Não fale bobagens! – ralhou com a outra – Fiz o que fiz para o bem da minha filha e da família inteira! – justificou-se – Não acredito que você goste da ideia de ver sua mãe fugindo como uma colegial irresponsável pra viver com uma qualquer em São Paulo!

 

--Essa é outra conversa, vóvys, mas eu não vim aqui pra ouvir suas razões! – falava com firmeza -- Ou a senhora vem comigo e mexe seus pauzinhos pra mamys sair daquela pocilga de luxo agora ou eu denuncio o que tá acontecendo no meu canal! – ameaçou – E aí, tenha muita bala na agulha – gesticulou afetada -- pra dar conta dos meus 70 mil followers com faixas e cartazes acampando no seu quintal! – jogou os cabelinhos

 

--Você não faria isso... – riu nervosamente – Quem desejaria se ver no meio de um escândalo desses? – não queria acreditar

 

--Olha só, vóvys, conecta! – estalava os dedos – Eu não sabia de nada nessa treta, mas agora que sei, e não interessa como fiquei sabendo, -- gesticulava – quero dar um ponto final nessa história de internação! – estava decidida – Papys ainda tá totalmente out desse babado forte, mas a senhora continue sem ação que não só ele, mas o Brasil inteirinho vai saber! – continuava ameaçando – E aí? – olhou rapidamente para o relógio – A senhora tem dois minutos pra dizer se vai ou racha!

 

Deu um suspiro profundo. – Deixe-me apenas pegar minha bolsa. – pediu contrariada – E chame o motorista, por favor.

 

--Não precisa de motorista. – cruzou os braços – Vamos no meu carro.

 

Zorayde concordou e voltou para dentro da casa. “Eu não acredito nisso!” – pensava contrariada – “Até Latifah já sabe de tudo e aquele detetivezinho de merd* não descobriu nada!”

 

***

 

Vera chegava na clínica no exato momento em que Latifah saía de lá com Sayruci, acompanhadas por um homem e uma mulher madura, que deduziu ser a mãe da morena. Visivelmente abatida, a autora vinha em uma cadeira de rodas empurrada por um enfermeiro. A caipira viu quando sua amada entrou lentamente dentro de um carro, seguida pelo homem e pela outra mulher. A jovem se preparava para entrar em seu carro quando se deu conta de que não estavam sozinhos.

 

--Aquele carro... – Latifah sussurrou para si mesma – Hum... – passou a mão nos cabelos – Jonas, -- chamou o motorista da casa – pode ir que sigo atrás de vocês. Preciso apenas de um minutinho.

 

--Pois não. – o homem respondeu antes de entrar no carro e partir

 

--Agora somos nós! – Latifah entrou no carro e guiou até onde Vera estava, parando perto dela – Eu sabia que era você! – falou após baixar os vidros – Tem ficado acampada aqui? – perguntou debochada

 

--E ficaria pelo tempo que fosse preciso! – respondeu seriamente – Graças a Deus, parece que você caiu em si... – olhava para a outra – “Bem na hora em que eu tava pronta pra botar pra ferver nesse trem!” -- pensou

 

--Eu não tô numas de ficar de conversinha contigo! – antipatizava a amante da mãe – Só vim aqui pra te pedir pra sumir dessa cidade! – olhava para a outra – Mamys vai precisar de uns dias pra desintoxicar dos remédios que deram pra ela e voltar ao normal. – explicava a situação – E não vai rolar de acontecer isso numa boa com você rondando a gente!

 

--Vocês não vão internar ela de novo! – colocou o dedo em riste

 

--Essa fase passou! – respondeu de imediato -- Vóvys tá na minha mão e o papys tá mais por fora que pinto de índio. – dizia a verdade – Dá um tempo, por favor? – pediu – Você já fez o que podia, agora volta pra tua casa. – preparou-se para partir -- Tem um assunto de família a ser resolvido aqui. Entre mamys e eu!

 

--Tudo bem, eu vou embora! – decidiu – Mas não pense que saí da vida dela, porque isso não vai acontecer, viu, fi? – preparou-se para partir também

 

Latifah não respondeu, fechou a janela do carro e foi embora. Vera fez a mesma coisa e se preparou para voltar a São Paulo.

 

***

 

Abigail chegava no Morada dos Deuses de táxi com Quitéria. Jailson veio correndo ajudá-las e após cumprimentos e saudações iniciais, os três entravam na recepção do hotel. O homem empurrava o carrinho de malas e Quitéria vinha em sua cadeira de rodas conduzida pela sobrinha.

 

--Vixe, que maravilha vocês aqui! – Rita saudou com um sorriso enorme – A bênção, dona Quitéria! – beijou a mão da idosa – Finalmente lhe conhecer!

 

--Deus te abençoe, filha. – respondeu com voz fraca – Também é um prazer conhecer a famosa Rita. – sorriu

 

--Pia só, Bigail andou falando de mim, é? – abraçou a amiga

 

--As orelha arderam não? – perguntou divertida – De você e Jailson, sempre falei. – olhava para a amiga – Então, como tão as coisa aqui? – queria saber – Esse hotel tem que tá nos trinque pra receber minha tia, não sabe?

 

A idosa achou graça.

 

– Mulher, pois vocês salvaram o hotel! – Rita falou olhando para as duas – Duarte disse que se não tivesse reserva no mês de julho o Morada ia fechar! – contava – Rezei foi muito, me peguei com Deus, e quando menos esperava, -- sorriu novamente – entrou essa reserva abençoada de vocês!

 

--E vocês duas são as únicas hóspede! – Jailson observou – Sem previsão de outros!

 

--Oxe! E por que isso? – Quitéria não entendia – Um hotel tão bem localizado...

 

--Tia, isso é uma conversa longa! – Abigail guiou a cadeira até o balcão da recepção – Simbora fazer o check in e lá no quarto explico tudo. – beijou a testa dela – Quer uma água, ir no banheiro, alguma coisa? – perguntou

 

--Agradecida. – negou com a cabeça

 

Abigail passou para a parte de dentro do balcão e começou o check in. Rita foi atrás.

 

--Dona Quitéria, deixe lhe mostrar a fotinha do meu menino. – pegou o celular e exibiu a imagem da criança

 

--Ai, mas que lindinho! – a idosa adorou – Quantos aninho? -- tossiu

 

--Mulher, agora me diga como que é isso! – Rita aproveitou a distração da idosa para abordar a amiga – Vocês fizeram a reserva no quarto máster do último andar e durando até o mês de agosto inteirinho! Como pode, da onde veio esse tanto de dinheiro? – não entendia – E como que você pode ser funcionária e hóspede ao mesmo tempo? – estava curiosa – Duarte tava doido pra receber vocês e só não tá aqui porque deu não sei que zica na conta de banco do hotel!

 

--Rita, o que posso te dizer agora é que a tia tem bala na agulha, não sabe? – digitava no computador – Vai vim até uma tal de home care pra me ajudar e ainda uma advogada que sabe de tudo e mais um pouco! – falava de Érica – No momento certo, explico tudo! – terminava de fazer o check in – Pronto, agora é só assinar as ficha. – enviou para a impressão

 

“A tia de Bigail é rica?” – estava pasma – “E deve de tar nas última, porque parece tão doentinha...” – reparava na idosa – E teu conto? Desistisse dessa história de autora famosa? – continuava perguntando

 

--Oxe, desisti foi nada! – pegou as fichas para assinar – Tô num recesso literário por causa da tia e depois volto à ação. – assinou a própria ficha – E você, enquanto isso, dê umas boas dedada, visse? – olhou rapidamente para a amiga e levou a outra ficha para a idosa – Assine aqui, faz favor. – ofereceu caneta e um bloquinho para firmar

 

Rita acabou achando graça e balançou a cabeça pensativa. “Graças a Deus que ela voltou!” – pensava – “Bigail é alma do Morada!”

 

***

 

Patrícia desabafava com Diana por telefone. Fazia hora extra e aproveitava que Joelma já havia ido embora.

 

--Amiga, preciso desabafar contigo senão eu morro! – fazia um drama – Você não sabe o que aconteceu comigo!

 

--Tenho nem ideia! – respondeu de pronto – A não ser que você esteja falando daquela carta chamada “Apelo à Sororidade” que as Dez Mais escreveram e Amaralina Luz postou no site! – lembrou – Na cara que era um puxãozinho na orelha da senhora!

 

--Começou com isso. – passou a mão nos cabelos – Eu fiquei super pra baixo e aí no sábado fez a maior friaca, eu saí de casa pra andar sem rumo, tava curtindo uma fossa no Arpoador... – contava a história – Nisso me aparece a maior gata loura, uma alagoana toda gostosinha, que chegou fazendo tipo de minha fã, toda cheia de charme...

 

--Sei... – ouvia com interesse

 

--Ela se apresentou com o nome de Teodora Blumberg. Disse que era promoter, contou um monte de história, mostrou fotos com celebridades e tals... – lembrava dos fatos – Lá pelas tantas me chamou pra curtir no meu apê e lá fomos nós. Já entramos aos beijos!

 

--Paty, péra aí, cê levou uma completa desconhecida pra tua casa, assim, de cara? – perguntou incrédula

 

--Você também levaria se visse a gatíssima que era! – justificou-se – Mas enfim, a desgraçada me drogou de alguma forma porque não rolou sex* nenhum, ficou só nos esquenta, e quando acordei vi que a maldita me roubou!

 

--Roubou?? – surpreendeu-se – Roubou o que?

 

--Meu notebook, o celular, todo dinheiro que eu tinha, cartão de crédito, dois pares de sapato, três vestidos, sete calcinhas, minha mochila, óculos escuros, a TV de tela de plana, que é da dona do imóvel, -- frisou este detalhe -- o urso de pelúcia que enfeitava minha cama, duas fronhas e três lençóis. – enumerou o prejuízo – Como se não bastasse, a desgraçada rapou todos ovos da geladeira, meus iogurtes e um pote de sorvete! Acredita que até nos meus ímãs de geladeira ela passou a mão?

 

--Ah! – ficou pasma – Gente, eu não tô acreditando nisso! Que golpista escrota, fala sério!

 

--Pois é, tomei uma rasteira daquelas!

 

--E você não denunciou à polícia? – perguntou curiosa – Uma salafrária dessa tem que ser desmascarada pra não sair enganando mais ninguém! É claro que ela não é promoter e nunca esteve com celebridade nenhuma! As fotos, na certa, eram montagem!

 

--Aí é que tá... – pausou brevemente – Morri de vergonha, né? Imagina, entrar numa delegacia e me apresentar como a lésbica burra que tomou um boa noite Cinderela dentro de casa? Sem chance! – gesticulou – Claro que não denunciei! O que tô fazendo é amargar o prejuízo e fazendo hora extra e outros bicos pra juntar uma grana e repor a TV da senhoria. Deus me livre dela saber o que aconteceu!

 

--Gente... me explica um detalhe básico? Como foi que essa golpista conseguiu carregar aquela TV de tela plana imensa que tinha na tua sala?? – queria entender

 

--Esqueci de contar! Ela roubou o carrinho de compras do condomínio também.

 

--Paty, pelo amor de Deus, viu? – revoltou-se – Mas sabe o que é isso? Aposto que além de gata, essa maluca jogou teu ego lá nas estrelas e com isso você desligou o bom senso. Te conheço, amiga!

 

Não gostou do que ouviu. -- Humpf! – fez um bico – Não foi nada disso... – discordou – Quer dizer, até rolou um pouco disso, mas com ela eu acreditei que tinha chance de viver um amor escandaloso como sempre quis viver... – confessou

 

--Oi? – não entendeu

 

Não quis explicar. -- Acredita que ela até falou que por um tempo foi contratada pela Gail? Por isso que aquela kaozeira conseguiu tantas leituras! – lembrava do detalhe -- Segundo a golpista, foi mulher que ela colocou na fita da outra!

 

--Por que você não procura a Gail e fala dessa mulher pra ela? – sugeriu -- Tirar essa história a limpo e de repente conseguir informação pra encontrar essa golpista!

 

--Eu não! – discordou de pronto – Não tenho assunto pra tratar com aquela louca! De Gail e Teodora quero distância!

 

--Não entendo qual é a sua birra com a Gail! – achava estranho – A mulher nunca te fez nada!

 

--Não é birra, é antipatia! – justificou-se – Ela é uma kaozeira, mentirosa e megalômana! E eu não suporto gente assim! – gesticulou revoltada – “Veja se eu vou dar o gostinho dela saber que tomei uma golpe desse? É ruim!” -- pensava

 

***

 

Sayruci tomava café da manhã no jardim. O dia estava frio mas ela não se importava. Queria sentir-se próxima a natureza e respirar ao ar livre. Bebeu um gole de chá quentinho e fechou os olhos.

 

“Graças a Deus, saí daquela maldita clínica!” – pensava – “Graças a Deus, me livrei daqueles malditos remédios!" -- abriu os olhos devagar – “Obrigado, Senhor!” – sorriu – “Agora preciso saber notícias da minha caipira safadinha!” – olhou para o terço em seu pulso – “O que será que aconteceu com ela?” – preocupava-se

 

--Mamys? Bom dia. – Latifah saudou incerta

 

--Filha! – olhou para a outra e sorriu ainda mais – Bom dia! Sente-se aqui comigo? – pediu – Ainda não pudemos conversar a sós desde que saí da clínica.

 

--E a gente tem muito o que conversar, né? – sentou-se na cadeira em frente a mãe – Mas não aqui, nessa casa vigiada, como você sempre diz. – cruzou as pernas – Embora não seja normal que a senhora Sayruci Ajami Hafeez tome café da manhã às – olhou brevemente para o relógio -- 10h, precisamos dar um rolê pela cidade pra... – pensava na palavra certa – desabafar! – reparava na outra – Tá muito cansada ou tem jogo?

 

--Não há cansaço que me faça querer continuar aqui dentro! – aceitou de pronto – Já tomei meu café, só faltava encerrar esse chá. – bebeu o último gole – Preciso de espaço e esse processo de desmame dos remédios da clínica também é meio sufocante. – desabafou – Aquela enfermeira que Samir contratou parece um general!

 

--Deixa que eu sei como dar um perdido nela. – gesticulou despreocupada – Veste um modelito de inverno e vamos dar um rolê por aí. – pediu – Vou dar uma ocupação pros espiões do papys – referia-se aos empregados da casa -- e aí a gente some. – levantou-se

 

--Já sei até pra onde vou te pedir pra ir. – pensava em um lugar especial

 

***

 

Sayruci e Latifah caminhavam lentamente por um trecho da trilha do Poço Preto, no Parque Nacional do Iguaçu.

 

--As empresas de turismo não vêm nessa parte da trilha. – a mulher mais velha admirava o local – Antes da privatização do parque, esse trecho aqui tinha um monte de arbustos que na primavera ficavam lotados de borboletas. – lembrava – Quando eu era criança e sua bisavó me trazia aqui, eu gostava de correr até a beira do rio e ficava encantada com as borboletas voando. – sorriu – Era muito lindo!

 

--Infelizmente eu não sou muito fã dessa pegada roots que nem você, mamys. – não gostava do detalhe da lama em suas botas de couro – Preferiria muito mais ter ido num café chique pra me sentar numa cadeira cheia de fofura! – revirou os olhos

 

Achou graça e parou de caminhar. – Esse é um dos aspectos que lamento muito na sua criação. – olhava para a filha – Nunca tive a oportunidade de te apresentar à natureza, às coisas simples da vida... – pausou brevemente – Você poderia até não gostar, mas com conhecimento de causa e não por falta de costume ou prevenção.

 

Olhou nos olhos da outra. – Você não curte muito o meu estilo, né, mamys? – perguntou desafiadora – Pelo seu gosto eu seria uma pessoa bem diferente... – pôs as mãos na cintura – Aquele tipo de garota meiguinha e estudiosa, cheia de diplomas e medalhas pendurados na parede. – gesticulou – Aí dava até pra competir umas vantagens com a Salma, quando ela começasse a exibir as conquistas do Rabinho dela! – referia-se a Ihab e sua mãe

 

--Pelo meu gosto, você seria livre e útil. – corrigiu a interpretação da filha – Além de minha melhor amiga. – tocou o rosto da jovem -- Ser livre no sentido de ter a mente aberta, focada nas coisas importantes da vida e sabendo aproveitar aquelas que passam, sem se escravizar a elas. – explicava – Ser útil, no sentido de contribuir pra fazer do mundo um lugar melhor, fosse com seu trabalho, seu voluntariado ou o que pudesse fazer. – acariciava-a com carinho – Mas nunca te rejeitei de maneira alguma. E jamais faria isso!

 

Afastou-se da mãe. – Você me acha uma pessoa fútil, mimada, vazia, diz aí? – enumerava nos dedos – Mais o que? – olhou rapidamente para a morena – Presa e inútil? – ironizou – Se eu sou presa, você é o que? – riu do absurdo – Imagina!

 

--Tento ser útil e creio até que consiga, mas não sou livre. – respondeu com mansidão – Isso nunca fui. – passou a mão pelos cabelos – Somos presas de formas diferentes, querida. – continuava explicando – Sua prisão é esse mundo de badalações e aparências que você gosta tanto e a minha... – suspirou – A minha é bem mais complexa...

 

--Você vai enrolar por mais quanto tempo nessa filosofia de boteco pra me dizer que é lésbica? – perguntou com certa agressividade – Eu já sei de tudo, mamys!

 

Sayruci levou um susto ao ouvir e não soube o que dizer. Caminhou um pouco mais para longe e abaixou a cabeça. “Como será que ela descobriu?” – pensava intrigada

 

--Cê deve tá se perguntando como a otária aqui descobriu! – gesticulou – Eu vou te dizer, foi da pior forma! – passou a mão nos cabelos – Aquela mulherzinha escrota que você arrumou em São Paulo; – prestava atenção na mãe – ela teve aqui quando você tava internada! – reparou que Sayruci ficou surpresa – É, ela veio! Imbuída na maior vibe de heroína pra te salvar! – falava com deboche – E me procurou num evento onde eu tava, cagou um monte de liçãozinha de moral pra cima de mim e assumiu esse amor bandido que uniu as duas almas gêmeas! – continuava ironizando – Aí eu lembrei de vários lances, de conversas entre nós e saquei que você tava no maior plano pra dar um migué em todo mundo e fugir com a tal! – sentia raiva da situação – Coisa que vóvys também sacou e por isso inventou de te internar!

 

“Vera esteve aqui?” – ficou pasma – “Então ela está bem e ainda deu um jeito de vir me ajudar!” – concluiu com alegria – “Será que foi por isso que subitamente levei alta?” – queria entender

 

--Eu dei uma situada na vóvys pra acabar com esse absurdo de clínica e ela não teve pra onde correr. – continuava explicando o que houve – Papys tá totalmente por fora dessa treta e vóvys tá com medo que eu faça um escândalo no meu canal se ela te internar de novo. – gesticulava -- Claro que tive que fazer uma ameaça básica pra ela topar tirar você daquele lugarzinho mal decorado! – pausou brevemente – Não esquece de me agradecer, tá? – destacou ironicamente

 

--Obrigada! – derramou uma lágrima – Realmente, devo muito te agradecer! – reconheceu -- Eu só sinto imensamente que você tenha tanta raiva de ser filha de uma lésbica e tanto desprezo pela mulher por quem me apaixonei! – lamentou

 

--Isso é piada? É pra rir? – continuava debochando – Quem ficaria amarradona em saber que a mãe é lésbica, que quer fugir de casa como uma adolescente e que ainda se pegou no tipinho de sapata mais escrota que poderia haver? – riu brevemente – Pardonne moi, mamys! I’m sorry!

 

--Não fale assim... – pediu com seriedade

 

--E é pra falar como? – aproximou-se mais – Eu fiz o maior papel de otária facilitando sua pulada de cerca, -- falava alto -- tava crente que você ia se encontrar com Orlandinho, quando na verdade você ia sabe-se lá onde pra trepar com aquela sapatão escrota, pobre, malamprojeira, motorista de Iuba!

 

Chorava contidamente. -- Não fale assim... – pediu mais uma vez

 

--Como você acha que eu me senti? – continuava falando alto – Você é minha mãe, sempre te admirei, sempre te respeitei e de repente descubro que você mentia pra todo mundo, pra nos deixar e fugir por aí com uma qualquer que conheceu na internet! – gesticulava – E você nunca me contou nada!

 

--Acha que tava preparada pra ouvir? – tentava conter o choro – Sua reação agora mostra muito bem que não!

 

--Estaria se você tivesse ao menos tentado! – acusou

 

--E eu tentei MUITO! – respondeu um pouco exaltada – Mas quando você teve tempo pra conversar comigo? Sempre com tantos compromissos importantes e inadiáveis! Não era o que me dizia? – gesticulava – Qualquer festa, sessão de fotos, noitada ou mesmo postagem no seu canal era mais importante que conversar comigo!

 

--Não faz drama, mamys! – respondeu na defensiva ao se afastar – Se você quisesse mesmo...

 

--E DESDE QUANDO QUALQUER UM DE VOCÊS SE IMPORTOU COM O QUE EU QUERO? – respondeu berrando – NUNCA! – pausou brevemente para se conter – A falta de respeito como você fala de mim, da minha condição... – chorava – Como fala da Vera, só porque ela é uma pessoa pobre... – sentia-se triste – Eu fui oprimida a vida inteira, Latifah! Você não sabe o que é isso! – pegou um lenço de papel no bolso do casaco e secou o rosto – Nunca pude decidir nada por mim mesma! NUNCA! – olhava para a filha – Tenho 45 anos recém completos e NUNCA pude decidir nada por mim! E aí você estranha que eu quisesse ir embora? – riu brevemente -- Não aguento mais viver essa vida de mentira e aparências que me corrói por dentro!

 

--Já saquei que eu faço parte dessa sua vida de mentiras, daí! – respondeu magoada

 

--Você é minha filha! – retrucou de imediato -- Não se compare com Samir, que é meu marido contra minha vontade!

 

--E se fosse da tua vontade, você também não teria filha! – concluía erradamente

 

--Não diga isso! – aproximou-se da jovem – Eu NUNCA te rejeitei! – olhava nos olhos – E se me mantive lúcida até hoje, apesar de tudo que eu passo, foi justamente por ter você!

 

--Lúcida? – achou graça – Uma lésbica anônima que escreve contos na internet pra desabafar, se encanta com uma leitora a ponto de querer sair do armário pra fugir com ela e viver de amor numa cabana, se diz lúcida? – gesticulava – Você é completamente sem noção!

 

--E você completamente sem respeito! – retrucou magoada – Sou sua mãe e você não tem o direito de me tratar assim! – as emoções revoltavam-se dentro do peito – Por mais que não concorde, o mínimo que me deve é respeito! – falava com o dedo em riste – Não é o que você vive exigindo? Respeito pros LGBTs?

 

Não gostou do que ouviu. -- Tá parecendo até a sua amantezinha me cagando lição de moral! – respondeu com desdém – Não posso ter respeito por você já que ficou maluca! Talvez vóvys não tivesse de todo errada quando te internou!

 

--Cala boca, Latifah! – ordenou impaciente – “Ela não pode falar assim comigo!” – sentia-se agredida e desrespeitada

 

--Eu entendo que ela tenha vergonha de tudo isso! – olhava para a mãe com desprezo – Imagina o vexame pra família se todo mundo soubesse que a respeitável Sayruci Ajami Hafeez vive uma crise de adolescência tardia e por isso saiu por aí com a primeira sapata que deu-lhe uns pega!

 

--CALA A BOCA! -- sem pensar, esbofeteou o rosto da filha – “Meu Deus...” – arrependeu-se imediatamente

 

Latifah levou a mão ao rosto em estado de choque. “Ela nunca me bateu...” – pensou abalada

 

Sayruci começou a chorar com mais intensidade e não conseguiu falar coisa alguma.

 

--Você quer ir embora, não é? – falava sob lágrimas – Papys viaja sozinho em setembro, em meados do mês. Eu ouvi uma conversa... – abaixou a mão – Aproveite pra fugir nessa hora e esqueça que tem uma filha, porque a partir de agora, -- controlava-se para não cair no choro – eu esqueci que tenho mãe!

 

--Filha... – tremia nervosamente

 

--O motorista vem te buscar. – deu as costas e partiu chorando

 

Sayruci acompanhou a filha com o olhar e sentiu-se tomada por imensa tristeza. Sentou-se no chão e orou pedindo forças chorando copiosamente.

 

***

 

--BOM DIAAA! – Duarte fazia festa ao ver Abigail chegando com Quitéria para o café da manhã – COMO VAI A MINHA HÓSPEDE PREFERIDA? COMO VAI? MAS, OIII!– berrava e sorria como assistente de mágico – A SENHORA DORMIU BEM? – fazia caras e bocas – OII!

 

“Duarte tá falando igual a apresentador de televisão, eu hein?” – Abigail pensou desconfiada – “Coisa escandalosa!” – olhava para o homem – Oxe, o que é que te deu? – empurrava a cadeira de rodas

 

--Bom dia. – Quitéria respondeu igualmente desconfiada

 

--EU SEPAREI UMA MESA PERTO DA JANELA, OIII! – sorria de orelha a orelha – HAHA! – ria sem vontade

 

--Meu filho, eu tô velha e doente mas não tô surda e nem doida. – advertiu pacientemente – Não precisa gritar desse jeito. – pediu

 

O gerente ficou sem graça.

 

“Toma, papudo!” – Abigail pensou satisfeita – Quer ficar naquela mesa que ele mostrou, tia? – perguntou com carinho

 

--Quero, por favor. – concordou e logo se acomodaram

 

--Vou botar a comidinha da senhora. – pegou o prato sobre a mesa – Maria José tem feito direitinho conforme a dieta que o médico passou, não sabe?

 

--O que eu queria mesmo era uma boa tapioca de queijo coalho... – fez uma careta divertida

 

Achou graça. – Oxe! Daqui a pouco a senhora vai querer carne de sol! – brincou

 

--E eu fazia gosto mesmo... – sorriu

 

--Ai, ai... – afastou-se achando graça -- Deixe eu ir lhe servir. – andou até a mesa onde o café estava posto

 

--E a senhora tem feito gosto no nosso hotel? – Duarte perguntou bajulando – Diga qualquer coisinha que lhe desagrade e mando mudar na hora! – sorria forçadamente – Sua sobrinha sabe que comigo os problemas se resolvem em dois tempos!

 

--Humpf! – Abigail ouviu e fez um bico -- Desde quando? – resmungou consigo mesma enquanto servia o prato da tia

 

–Eu gostei do hotel, dos funcionários... – respondeu olhando para o homem – E fiquei besta de saber que um estabelecimento desse porte, com essa localização, caiu nessa esparrela de ficar sem hóspede! – criticava – O senhor e o dono daqui tinham que ter vergonha na cara, não sabe? – chamava a atenção – É uma vergonha que cheguei aqui há uns dia e só hoje o senhor dá as caras pra trabalhar! Enquanto isso, os outro funcionário chega cedo, sai tarde e trabalha feito burro de carga! – fazia cara feia – E o senhor aí, parece até uma besta amarrada na feira!

 

--Pia só, mulher! – Maria José falava para Abigail – Tua tia tá dando o maior sabão no chefe! – achava graça

 

--Tivesse a quem puxar, Bigail! – Laerte comentou satisfeito – Duarte foi curiar e se estrepou!

 

--Sabe que tia Quitéria só me dá orgulho? -- observava a cena

 

--Que é isso, senhora? – respondeu constrangido – Eu resolvia uns assuntos do hotel e... – não sabia o que dizer

 

--O bom chefe dá o exemplo, meu filho! – continuava falando – Trata bem os empregados e paga o justo! – gesticulava – Eu não sei quem te botou nessa posição, mas o senhor não tá merecendo, não! E se só tem nós de hóspede, a culpa é sua que não soube administrar nem essa riqueza aqui e nem os funcionário, que são ótimas criatura! – mirava o rosto do homem – Agora vá trabalhar e deixe de me curiar!

 

--É... eu vou dar uma passada na recepção pra ver se Rita precisa de ajuda. – desejava fugir dali – Bom café e com licença. – saiu quase fugido

 

--Tia, -- Abigail colocava o prato pronto na frente da idosa – a senhora arrasou! – sorria satisfeita

 

--Ele ouviu até pouco! – gesticulou – Deixe vir me curiar pra ver só! – olhou para Maria José e Laerte – Vem sentar todo mundo aqui mais nós. – convidou – Tomar o café tudo junto.

 

--A gente não pode, dona Quitéria. – Maria José respondeu timidamente – Até queria porque vim trabalhar em jejum, mas não pode.

 

--Pode não... – Laerte também ficou envergonhado

 

--Oxe, vocês agora deram de fazer desfeita aos mais velho, é? – Abigail sentou-se na mesa – Se ela chamou, vocês vêm! – insistiu brincalhona

 

Os dois funcionários se entreolharam e sorriram. Serviram-se e se juntaram às duas mulheres na mesa.

 

***

 

Sayruci voltava da igreja com Samir. Havia orado muito e pedido sabedoria para lidar com tudo pelo qual vinha passando. Pensava em Latifah e na dor que sentiu ao ouvir cada palavra dela. Pensava na mãe e na atitude arbitrária e cruel que a mulher havia tomado ao interná-la. Sentia saudades de Vera e desejava saber notícias.

 

--Sazii? – o marido chamou carinhoso – Está sentido alguma coisa ruim? – olhava para ela

 

--Não. – olhou para ele e sorriu – Apenas pensando na vida.

 

--Não pense muito. – beijou-a nos lábios suavemente – Aquela crise de choro que você teve no Parque não é uma coisa normal. É bom evitar pensar pra que não aconteça de novo! – recomendou – Notei que desde que meu sogro morreu você ficou muito abalada. – julgava que tudo se devia a isso

 

--Toda tristeza passa. – acariciou a mão dele rapidamente – Essa também vai passar. – abaixou a cabeça

 

--O motorista vai deixá-la em casa e então me levar pro escritório. – continuava olhando para a esposa – Tome um banho, descanse... – aconselhou – Depois almoce quando tiver fome. Sem se preocupar com a hora.

 

--É o que vou fazer. – concordou – Mas... querido? – olhou para ele – Dispense a enfermeira hoje, sim? – pediu humildemente – Quero descansar em paz.

 

--Está certo. – balançou a cabeça afirmativamente – Sazii, depois peço que converse com Latifah. – olhou para a frente – Desde que você foi internada ela ficou abalada demais. Acho que até agora não se recuperou, mesmo depois que o médico achou por bem lhe dar alta.

 

--Converso... – virou o rosto na direção da janela – “No dia que ela quiser falar comigo de novo...” – pensou com tristeza

 

***

 

Após chegar em casa e tomar um banho, Sayruci escreveu um capítulo inteiro de seu conto e o postou imediatamente. Em seguida, desceu as escadas e seguiu até o jardim. Estava louca para falar com Vera e depois de tudo que aconteceu acabou concluindo que não seria perigoso se ligasse para ela.

 

“Maama foi desmascarada e se bem a conheço, deve ter dispensado o detetive.” – pensou – “Talvez esteja maquinando sobre o que fazer, mas por ora deve estar apenas me acompanhando à distância.” – pegou o celular e novamente inseriu o chip extra, o qual escondia no bolso – “Preciso falar com Vera! Não aguento mais! Não posso viver paralisada pelo medo!” – esperava que atendesse – “Tomara que ela esteja bem!”

 

--Eita. – sentiu o telefone vibrando no bolso da calça – Será ela? – sorriu empolgada e atendeu imediatamente – Alô? – levantou-se da cadeira

 

--Oi, meu amor! – respondeu sorrindo – Como é que você está? – queria notícias – Soube que sofreu um acidente e morri de preocupação!

 

--Minha linda, que saudade! – ficou radiante – Você não sabe como eu andava doida que chega dói pra saber de você, pra te ouvir! – andava de um lado a outro – Tava maluca pra saber notícias! Desde que você saiu daquela praga de clínica nunca mais soube de nada!

 

--Me conta tudo você primeiro! – pediu – Quero saber do acidente que sofreu, em como você veio parar aqui pra me salvar, da conversa que teve com Latifah... – estava ansiosa – Me conta?

 

–O acidente foi que eu cortei a mão, foi uma sangueira doida e alguns vizinhos foram lá em casa e me levaram prum hospital ali perto. – não entrou em detalhes – Foi no dia que você mandou a mensagem, que eu só fui ler depois. Mas fique tranquila que achei a encomenda, conferi o lacre e escondi lá em casa. Não abri o trem, sei nem o que é. – gesticulou – Aí eu liguei pro restaurante pra falar com você, fiquei sabendo da internação e me virei em mil pra ir pra Foz. Pensei em te tirar da clínica à força, mas depois me ocorreu que era um plano sem base. – resumia a história – Soube que sua filha tava num evento e fui lá. A conversa não foi muito boa mas no final deu certo: ela fez a família te tirar daquele inferno!

 

--E você falou sobre nós, não foi? – passou a mão nos cabelos

 

--Não fique zangada, por favor! – pediu preocupada – Mas não teve jeito!

 

--Não fiquei, meu amor! – sorriu – Você foi uma verdadeira heroína, minha caipira safadinha! – reparou o ambiente para ver se alguém prestava atenção

 

--Agora me conte você, minha linda! – pediu – O que aconteceu e como estão as coisas aí?

 

--Eu soube que você tinha se acidentado e que a encomenda havia sido entregue a outra pessoa. Não sei explicar, mas pensei no pior e fiquei desesperada. Tive uma crise de nervos em pleno restaurante. – lembrava – Maama estava lá, não sei como descobriu sobre nós e mandou me internar naquele lugar maldito. – andou um pouco pelo jardim – E uma vez internada, minha vida foi um martírio e eu não quero lembrar que fiquei sendo diariamente dopada!

 

--E quem lhe falou do acidente? Prima Socorro? -- perguntou desconfiada

 

--Sua prima? – estranhou – Não, foi a pessoa que me ajudou a despachar a encomenda. Eu só conversei com a Socorro quando a conheci na sua casa.

 

“Eita, boi! Então com quem a prima falou?” – pensou preocupada – “Terá sido com a mãe miserenta??” – deduziu estarrecida

 

--Você deve saber que Latifah pressionou maama e por isso levei alta. – continuava contando a história – E desde então tenho feito o desmame das drogas que me deram, Samir contratou uma enfermeira pra cuidar de mim nesse meio tempo e não tenho feito nada interessante. – pausou brevemente – Ontem Latifah e eu conversamos e foi horrível. – suspirou – Tive uma crise de choro depois e... ela não quer mais saber de mim. – falou com tristeza

 

--Ah, minha linda... – lamentou – Eu sinto tanto... – não sabia o que fazer – Me perdoe por ter estragado tudo...

 

--Você não estragou nada, meu bem! – respondeu de pronto – Olha, ouça-me bem. – notou que empregados se aproximavam – Eu... eu vou embora em setembro! – acabava de decidir – Pode me esperar, que eu vou! – prometeu – E conte nada a absolutamente ninguém!

 

Vera sorria de orelha a orelha. – Mal posso esperar! – estava feliz – Deixa eu te contar que desde a Parada LGBT tenho feito serviços pra uma espécie de ONG em defesa dos nossos direitos! Serviço de foto e filmagem! Tô até aprendendo a pilotar drone! – falou toda prosa

 

--Hum, que linda. – sorriu bem humorada

 

--Eu vou estudar esse trem de drone pra aprender a fazer uns serviço mais interessante e ganhar melhor! – contava empolgada

 

Achou engraçadinho. – Eu te amo! – sussurrou – Agora tenho que desligar, meu bem.

 

--Também te amo! – respondeu embevecida

 

--Postei capítulo novo. Depois lê. Tchau! – desligou o telefone e fechou os olhos – “Tadinha... toda prosa porque tem feito uns trabalhos melhores...” – sorria – “Que pena que minha filha não consegue ver a pessoa maravilhosa que minha caipira é...”

 

--E eu vou ler, uai! Assim que chegar em casa! – falava sozinha ao guardar o telefone

 

--Que amor, hein? – Natasha brincava – Quando é que eu vou conhecer essa mona?

 

--Ai, eu também quero, pra ver se aprovo! – Veruska brincou também

 

As duas chegaram a tempo de ouvir somente a declaração de amor.

 

--Vocês vão conhecer! – respondeu animada – Ah, se vão! – sorria como boba – “E depois vou dar uma prensa na prima!” – decidiu – “Ela quis se meter onde não devia e só fez bestagem!”

 

***

 

Latifah acabava de fazer uma gravação para seu canal. Havia falado sobre moda, maquiagem e acessórios. Reparava satisfeita nas muitas curtidas e comentários deixados pelos seguidores. Estava prestes a desligar o notebook quando um deles chama sua atenção.

 

Aline&Pedro há 1 min

Amei as dicas de hoje! Sou sua fã e acho o máximo que além de super antenada nas tendências vc é uma grande defensora da causa LGBT. Minha cunhada, que nem conheci, foi assassinada há anos atrás por um psicopata exatamente por ser lésbica. Com mais gente como vc nesse mundo, isso nunca ia acontecer. Obrigada por existir! Bjss

 

Imediatamente lembrou-se de alguns fatos recentes.

 

“--Não precisa, não, uai! – Vera secou os olhos com uma das mãos – Eu pensava que a senhora Latifah se importava com os LGBT, mas era tudo mentira! Na vida real a história é outra! – lançou um último olhar sobre a jovem – Passar bem! – seguiu em direção à saída”

 

--Não... – chacoalhou a cabeça buscando espanar as lembranças mas elas não paravam

 

“--Lúcida? – achou graça – Uma lésbica anônima que escreve contos na internet pra desabafar, se encanta com uma leitora a ponto de querer sair do armário pra fugir com ela e viver de amor numa cabana, se diz lúcida? – gesticulava – Você é completamente sem noção!

 

--E você completamente sem respeito! – retrucou magoada – Sou sua mãe e você não tem o direito de me tratar assim! Por mais que não concorde, o mínimo que me deve é respeito! – falava com o dedo em riste – Não é o que você vive exigindo? Respeito pros LGBTs?”

 

Levantou-se da cadeira transtornada. – AH! – gritou – Que merd*! – envergonhava-se de si mesma

 

Desde a discussão com a mãe, Latifah criava propositadamente várias razões para passar o mínimo de tempo em casa. Naquela noite, ocupava um quarto do hotel da família sob o pretexto de se concentrar para gravar.

 

Caminhou até a janela do quarto e olhava sem ver o mundo exterior. Mais fragmentos de sua discussão com a mãe vieram em sua mente.

 

“--E DESDE QUANDO QUALQUER UM DE VOCÊS SE IMPORTOU COM O QUE EU QUERO? – respondeu berrando – NUNCA! – pausou brevemente para se conter – A falta de respeito como você fala de mim, da minha condição... – chorava – Como fala da Vera, só porque ela é uma pessoa pobre... Eu fui oprimida a vida inteira, Latifah! Você não sabe o que é isso! – pegou um lenço de papel no bolso do casaco e secou o rosto – Nunca pude decidir nada por mim mesma! NUNCA! – olhava para a filha – Tenho 45 anos recém completos e NUNCA pude decidir nada por mim! E aí você estranha que eu quisesse ir embora? – riu brevemente -- Não aguento mais viver essa vida de mentira e aparências que me corrói por dentro!”

 

Derramou uma lágrima. – Por que tinha que ser assim, hein? – perguntava aos Céus – Justo a minha mamys? – secou os olhos com a ponta dos dedos

 

“--Sua mãe é a melhor autora de contos lésbicos que já vi na vida! – Vera afirmou com admiração – Busque por Khaalii e você verá. Me apaixonei por ela desde que comecei a ler o que escreve! – declarou-se – E a amo com todas as minhas forças!”

 

A lembrança daquela declaração de Vera fez com que sentisse curiosidade em ler o que a mãe escrevia. Voltou para a mesa e procurou por Khaalii na internet, encontrando o site da Academia Lésbica. Clicou para ver e descobriu que a mãe já havia escrito alguns contos.

 

--Gentem, eu tô passada com isso! – observava admirada – E não é que ela tem um monte de fã? – reparou que havia um conto ainda inconcluso – Postou capítulo novo hoje? – surpreendeu-se – Ah, mas essa eu quero ver. – clicou sobre ele e começou a ler

 

Zayah caminhava tristemente pelos jardins de Mammoul. Um lugar que lhe remetia a tantas lembranças carinhosas da sua infância, agora trazia em si a mais triste de todas elas. Pois foi lá, tendo belas flores e árvores frondosas como testemunhas silenciosas, que sua filha, o tesouro do seu coração, lhe despejou as mais duras palavras e renegou o fato de um dia ter-lhe chamado de maama.

Por que as coisas têm que ser assim? Ela se perguntava. Já não bastava viver a infelicidade da incompreensão materna? Não bastava a dor de nunca ter sido aceita por sua maama apenas pelo fato de ser lésbica? Não bastavam os anos de prisão dentro de si mesma, as palavras não ditas, os gritos presos na garganta? Não bastavam todas as vezes em que teve de sorrir quando desejava chorar, que teve que ficar quando desejava partir, que teve de aceitar quando queria negar?

Sim, é muito duro e triste ser renegada pela própria maama, porém, Zayah aprendia agora que muito mais duro é ser renegada pela filha. Aquela que um dia crescera dentro do seu ventre, a criança tão esperada, tão amada... Aquela de quem um dia cuidou, que protegeu, amamentou, banhou... Aquela por quem reza todos os dias, aquela por quem pôde aturar o cárcere a céu aberto no qual se encontra...

Sim, é muito mais duro, pois é como se um pedaço, uma parte dentro de si, decidisse morrer por vontade própria, sem que se saiba como salvá-lo...

E cada vez mais Zayah se convencia de que Sulah era a única pessoa neste mundo de expiações e provas que conseguia vê-la como o ser humano que realmente é e que era capaz de amá-la exatamente por isso.

 

Latifah não conseguiu mais ler e chorou como nunca havia feito em toda vida.

 

Fim do capítulo