Capítulo 3

"Nunca se abale por conta de um erro, pois, será com ele que seguirás o caminho certo!" (Suellen Santos)

Zaira

Ali estava eu, moída da correria do dia, num trabalho noturno que costumava fazer de muita má vontade embora rendesse uma boa grana.

Deslizava com desenvoltura numa pista de dança, com uma bandeja pesada em mãos, servindo aos clientes de uma casa noturna situada na Barra de gênero Dance/disco/Pop e com tendências GLS, porém frequentada também pelo público hétero.

O local tinha capacidade para 600 pessoas e possuía três pistas de dança, dois bares, mezanino, camarote VIP, telão e palco onde aconteciam apresentações com artistas renomados.

A casa funcionava de quarta a sábado e geralmente eu estava por ali duas vezes na semana, quando não estava extenuada dos trabalhos diários.

Era muito assediada por homens e mulheres quando em serviço; os colegas me chamavam de Zai a doce, ao perceberem alguns correndo atrás de mim no expediente e até depois dele!

Eu não dava lugar pra esse tipo de comportamento, porém a farda que vestíamos deixava meu corpo bem marcado e isso chamava atenção de quem apreciava um corpo de mulher fora dos padrões normais e ainda assim com curvas acentuadas.

Sei que meu tipo físico nem sempre atraía homens ou mulheres que gostavam das muitas femininas. Eu tinha quase um metro e setenta e sete, braços e coxas fortes; costas largas e abdome definido.

Entretanto, muitos e muitas enlouqueciam pelo meu físico como se eu fosse apenas isso. Afirmavam que eu era de uma beleza exótica, filha de uma negra de longos cabelos cacheados e de um marinheiro asiático que passara um tempo no porto de Salvador, até partir em seu navio sem olhar duas vezes pra trás ou para mulher que engravidara e levava no ventre um fruto daquela relação relâmpago de cinco meses que vivera.

Sua mãe D. Tânia vivia hoje a vida sossegada e era casada com um bom homem; O Elias, que a ajudara a criar-me! O marinheiro sumiu no mundo e ninguém nunca mais soube notícias ou o viu.

Sempre pratiquei exercícios físicos e o tempo que passara encarcerada no presídio feminino fora onde mais pegara massa muscular, pois cumprindo pena no regime semiaberto, não restava outra coisa a fazer senão malhar o corpo pra não perder de vez a saúde mental!

Sim, eu sou ex-presidiária! Sacudi a cabeça jogando aquelas lembranças terríveis pra o fundo da memória trancando-as lá e continuei servindo.

_ Zai, no camarote tem um povo VIP – Drânia, supervisora dos garçons e garçonetes me interceptou – Preciso que fique servindo exclusivamente lá a partir de agora, tem uns 150 clientes, quero mais oito mulheres e oito homens adicionados aos já existentes lá perfazendo trinta ao todo, sob sua supervisão.

_ Ok! – falei contrariada porque no camarote o assédio era mais forte, a clientela era formada pela elite de empresários e filhos de papai que achavam que podiam tudo e que nós, funcionários, tínhamos que aceitar quaisquer de suas atitudes infames – Vou chamar os colegas e já nos juntaremos à equipe de lá.

Duas horas depois meus braços doíam imensamente por causa das bandejas pesadas com as quais já circulara pelo camarote.

Ainda assim, tudo estava tranquilo! Como de praxe algumas cantadas e vários nãos às propostas de término de noite e de repente senti minha boca secar ao ver um par de olhos verdes brilhantes me encarando surpresos.

Desviei o olhar passando a ignorá-los... Era aquela médica que me confundira com um homem!

Meu queixo endureceu de irritação ao lembrar o olhar de decepção dela ao notar o seu engano.

Não vou negar que a achei linda e fiquei feliz ao pensar que havia certo interesse por mim ao chegar ao Hospital do Subúrbio e reencontrá-la. Todos os sinais eram de que Virg flertava discretamente comigo; mas minha desilusão foi amarga ao entender que a doutora encantara-se com um suposto moço Zai e não pela moça Zaira!

Também, ainda que fosse pela Zaira a atração, nada poderia rolar de sério entre uma mecânica e faz tudo com uma médica! Sacudi a cabeça aborrecida com os rumos dos meus pensamentos e foquei em girar mais bandejas no camarote sempre evitando o lado que ela estava.

Sem querer, observei como ela estava linda! Usava uma saia branca até os joelhos, camisa mangas três quartos de cor amarela e saltos altíssimos pretos; Ao lado dela um homem muito bem vestido aparentando riqueza se desdobrava em agradá-la... Aquilo não me desceu bem e voltei a desviar os olhos daquela direção.

_ Zai? – um colega chamou – Leva uma roda de tequila pra mesa 04, por favor? Preciso ir ao banheiro.

Acenei concordando numa aparente calma, mas estava com o coração disparado agora... Era a mesa dela! Era inevitável o encontro cara-a-cara.

Fui ao bar pegar o pedido e me dirigi para lá. Com profissionalismo servi a todos até chegar a ela; a estas alturas minhas mãos tremiam levemente quando me inclinei para servi-la. Nossos olhos se encontraram e um sorriso amplo surgiu na boca bonita da mulher.

_ Meu amigo – a voz do seu acompanhante soou me fazendo sair daquela nuvem de torpor que o simples sorriso dela me causava.

Voltei-me pra o homem que focou os olhos em meu busto e ficou desconcertado.

_ Desculpa moça! Er... Por gentileza, me traz um uísque – Ele educado pediu.

Senti meu rosto arder sem entender, pois nunca me incomodara com equívocos como aquele antes.

Saí rapidamente de lá e senti os olhos da doutora me seguirem. Entreguei a tarefa ao colega que me pedira o favor e retornara do banheiro alegando que precisava fumar um cigarro pra relaxar e dirigi-me para a área reservada a fumantes, indo pra um canto isolado onde os funcionários não se misturavam aos clientes.

Fumei dois cigarros em sequência tentando acalmar a alma. Quando terminava o último uma voz macia e levemente rouca se dirigiu a minha pessoa.

_ Fumar traz imensos prejuízos à saúde, sabia disso moça bonita?

Antes de me virar, já sabia quem era. Encarei-a um pouco irritada.

_ Entendo com isto que não é adepta do tabaco – espicacei vendo-a enrubescer com o uso do duplo sentido que empreguei propositalmente – O que me leva a pensar o que veio fazer aqui...

_ Tomar um ar, talvez! – falou a mulher sorrindo lindamente – E também cumprimentar-te, visto que não tive a oportunidade de fazê-lo ainda há pouco.

_ Hum – comecei a dirigir-me à entrada do camarote quando lhe senti a mão segurar meu pulso forçando minha parada.

_ Te ofendi de algum modo pra me tratar assim?! – sua voz soou magoada – Estás me ignorando solenemente desde que me notou neste lugar!

Movi meu pulso soltando-o de seu agarre e séria a olhei.

_ A senhora não precisa se preocupar se porventura me ofendeu – esclareci e me surpreendi com minha fala a seguir – Creio que seu garboso acompanhante está sentindo sua falta, ele parece não poder deter suas mãos de polvo em sua presença! Visto que está constantemente a passar as mãos por teu corpo.

Ela abriu a boca, mas não esperei pra ouvir o que dela sairia. Disparei para o camarote xingando-me por dentro pela inconsequente fala.

_ Deuses, o que foi aquela cena de ciúmes lá fora?!! – murmurei baixinho – Enlouqueci de vez...

O trabalho intensificou-se e foi bom; assim minha mente não teve tempo para desviar-se pra certa médica. Às 3h da matina encerrei meu turno.

Estava exausta! Montei na moto e parti pilotando rápido, cheia de ansiedade de chegar a minha casa para tomar um banho e cair na cama pra um sono de três horas quando iniciava meu turno de entregadora de aplicativo. Tudo caminhava pra esse desfecho desejado; mas, alegria de pobre dura pouco...

A moto começou a fazer um barulho estranho duas esquinas após a rua da casa noturna até que parou de vez!

A rua estava deserta e não era um bom lugar pra ficar parada de bobeira. Assim desmontei e passei a empurrar a moto de volta ao Clube pra deixá-la na garagem. Suada, consegui fazer isso e voltei a caminhar pela rua em busca do ponto de ônibus pra ir pra casa.

Minha cabeça estalava de dor e me sentia aérea de tanto sono quando ouvi uma buzina; ignorei e apertei os passos.

_ Zaira? – ouvi a Virg me gritar e seu carro emparelhar devagarzinho ao meu lado – O que aconteceu que está andando assim por esta rua deserta? Cadê a tua moto?!!

_ A miserável achou de quebrar justo agora e eu sem uma ferramenta para consertá-la – bufei pisando mais forte e acelerando os passos mais uma vez – Vai-te embora que essas ruas são perigosas neste horário pra que fique desfilando neste carro caro.

_ Entra que te dou uma carona – convidou olhando-me preocupada – É perigoso pra você também e até mais, já que está a pé! Entra!

Hesitei um pouco, mas o cansaço me venceu.

_ Mais dois quarteirões e tem um ponto de ônibus, me deixa lá – comuniquei ao entrar no automóvel – E o garboso? Pensei que sairiam juntos.

Vi um meio sorriso nela quando me olhou rapidamente.

_ Preferi ir sozinha pra minha casa – esclareceu a doutora – Estou muito cansada, deixei o plantão a tarde. Só vim porque era comemoração de aniversário de um querido amigo.

_ O mauricinho deve ter se frustrado! – deixei escapar e voltei a xingar-me internamente – Não que isso seja de minha conta.

Ela manteve silêncio e encostei a cabeça no encosto do banco fechando os olhos por alguns minutos.

Fim do capítulo