Capítulo extra pra compensar o sumiço por aqui...
Os que dançam com a dor
— Então, HÇŽi yún, como está se sentindo hoje?
Vai se foder, pensei, mas nada disse. Devia estar adentrando na segunda semana desde que eu tinha que entrar na sala da psicóloga, ela ficar me olhando com um semblante amigável, fazer as mesmas perguntas de sempre e eu continuar calada, esperando dar a hora para poder ir embora e ela insistir em dizer que me esperava na próxima.
Cruzei os braços e fiquei encarando a vista que fazia lá fora. Caía uma chuva fina, e o jardineiro, com um grande chapéu de palha, ainda assim, aparava as plantas dali. A psicóloga acompanhou a minha vista para fora.
— Tem algum hobby? O que você mais gostava de fazer?
Gostaria que você calasse a sua boca e me deixasse em paz. Dizem que quando não quer dizer, seus gestos dizem mais do que as palavras. Respirei fundo e a encarei da forma mais soturna que eu poderia e ela pigarreou, voltando a mexer no seu bloco de anotações, escrevendo alguma coisa. Possivelmente que deveriam me internar na ala dos mais graves.
— HÇŽi yún, eu andei conversando com sua mãe e pude conhecer um pouco mais de você pelo que ela me disse...
O nome da psicólogo era Maria Paula. Ela era jovem e cheia de vitalidade, com a feição sempre animada, e aquilo me irritava profundamente, afinal não era fácil ver uma pessoa sorridente e feliz lidando com pessoas que consideravam defeituosas e excluídas da sociedade.
— Você tem uma namorada, certo? Amanda o nome dela, não é?
Deixei de olhar para fora e encarei o rosto dela. Infelizmente, ela tinha chamado minha atenção depois de ter proferido um nome que eu não ouvia há tanto tempo.
— Como é a relação de vocês? – Maria Paula se ajeitou na cadeira, enquanto eu continuava sentada no sofá, com as pernas esticadas.
Não ia falar da Amanda ou qualquer coisa relacionada a ela. Pelo menos isso não iria ser imaculado. Voltei a olhar para fora, e a chuva havia aumentado a ponto de o jardineiro ter saído da sua função de aparar os arbustos.
— Sua mãe falou que vocês se dão bem, que ela é uma menina bastante...
— Dá pra não falar da Amanda?
Ouvir minha própria voz depois de um tempo surpreendeu-me. Tanto a mim quando a psicóloga que, reafirmando em seu lugar, voltou a me olhar.
— Então gostaria de saber o que você tem a dizer dela.
Franzi as sobrancelhas, e deixei escapar meu descontentamento de ter dito qualquer frase que seja para aquela mulher que iria dissecar tudo o que eu ia falar para depois distorcer para que eu fosse dada como uma doente problemática.
— Soube que ela é uma boa garota – Maria Paula olhava para o caderno, e depois olhou novamente para mim. Costumava me encarar até quando eu nada falava – Que lhe ajuda muito.
E que sou um peso morto para ela. Pensei que a uma hora dessa, Luiza ia estar dando em cima dela, como alguém dá em cima de uma viúva, afinal ela sequer deve estar sabendo se estou viva.
Fiquei com raiva. Fechei meu punho e bati no encosto da mesa. Maria Paula continuou olhando, batendo a caneta no seu bloco de anotações.
— E que houve um incidente em que...
— Cala a boca – batia os dedos inquietos contra o encosto após batê-lo, com a mão no rosto. Tentava segurar o choro que queria aparecer ali. Maria Paula tinha acertado um ponto que era uma ferida exposta.
Desde que tinha entrado ali, minha raiva tinha se catalisado de uma vez. Não devia nada a ninguém ali, estava contra a minha vontade e sentia um ódio latente na maior parte do tempo que, quando estava sozinha e com os métodos certos, descontava em mim. Se achavam que eu iria ficar melhor ali, ia mostrar o possível que estava errado e que só havia um jeito de acabar.
— Mas, HÇŽi yún...
— Cala a boca! – voltei a dizer e, em um movimento, saí da sala dela e bati a porta, caminhando pelo jardim vazio, com a mão ainda cobrindo o rosto enquanto eu cortava o caminho de todos e me escondia na pequena vegetação que tinha ali.
Sentei no banco que costumava ficar e voltei a chorar. Nos meus picos de raiva, eu chorava logo após, e me sentia pior quando chorava. A fragilidade se tornava cada vez mais evidente e, em vez de ser um lugar de cura, parecia ser o meu maior flagelo.
Mexia minhas mãos inquietas, que passavam pelas marcas em meu braços, pelo meu corpo, e as lágrimas desciam do meu rosto, pelo meu pescoço e molhavam minha camiseta. Não era fácil estar ali, e ver aquela mulher que não me conhecia falar de uma das poucas, se não a única, figura que ainda mantinha intocada em meio aquela confusão que tinha se tornado minha vida era ainda mais intragável.
Senti algo gelado tocar meu ombro. Quando virei, era Caetano, com um cigarro nos lábios, segurando uma lata de refrigerante.
— Sessão difícil?
Suspirei fundo, dando os ombros. Ele sentou ao meu lado, e abriu a latinha. Desde que tinha se encontrado comigo pela primeira vez nesse lugar, continuava a vir todo dia, e não dizia nada. Cumprimentava-me, acendia um cigarro, jogava a fumaça para longe, andava de um lado a outro, às vezes levava um livro e lia algum capítulo dele, depois se despedia. Fazia isso diariamente.
Olhei para ele de relance. Havia novas marcas em seu corpo, recém cuidadas. Ele olhou de volta para os meus braços, que estavam do mesmo jeito. Seu jeito amigável e cuidadoso me lembrava Judite, ele fumava como ela, só que escondido dos olhos dos demais, e por isso eu tinha criado simpatia por ele o suficiente para não me afastar dele quando ele chegava toda tarde ali comigo.
— Também não gostava de falar com a psicóloga no começo. Depois me acostumei – ele tragou o cigarro, jogando a fumaça para cima – Estou nessa há seis anos, acredita?
Olhei-o com incredulidade. Caetano parecia ter a mesma idade que eu, se não poucos anos mais velho.
— Eu meio que aprendi a conversar com os outros, mas não é que eu goste muito disso porque no final das contas, quando estou só no meu quarto, percebo que ninguém realmente entende o que eu passo e...
— Por que está me dizendo isso?
Ele me olhou surpreso, e riu, coçando seu rosto que mostrava um resquício de barba mal feita.
— Porque você parece ter alguma coisa a dizer, só não sabe como.
— Não tenho nada a dizer – respondi assertiva. Não tinha ido ali para criar amizades, principalmente com alguém que parecia estar se sentindo ótimo e que queria me convencer a falar com a psicóloga usando alguma psicologia reversa.
Ele bateu os dedos das mãos um contra os outros, mexendo com o cigarro entre os lábios. Olhou novamente para mim.
— Não é só porque eu tenho me acostumado a ir que eu realmente goste. Não curto a ideia de alguém falando o que eu tenho que fazer se não faz ideia do que acontece na minha vida. Você também pensa assim?
Concordava em silêncio e ele, ao perceber, continuou falando.
— É que acho que dividimos algumas coisas em comum, HÇŽi yún.
Olhei-o de soslaio.
— Quis dizer que estamos no mesmo time.
Cerrei os olhos, sem entender o que ele quis dizer.
— Digo, da equipe dos fodidos da cabeça, mas isso já deu pra perceber – ele girou o dedo indicador em frente ao rosto, apontando para o que nos cercava.
Comecei a rir.
— É aqueles que se odeiam tanto a ponto de se machucarem e se acharem insignificante para todos, a ponto que sua dor sucumbe tudo que importa e a única coisa que você quer é dar um fim a tudo isso.
Meu riso deu contorno ao meu olhar sério em sua direção, e dessa vez, ele que riu.
— Mas imagino que tenha alguém que lhe espera lá fora – ele tragou o cigarro novamente – alguma amiga, namorada? Ambos?
Questionei-me com que fundamentos ele estava alegando aquelas verdades incisivas, e ele percebeu.
— Não tenho problema com isso, digo... – ele colocou o cigarro entre os lábios, dando com os ombros – Tem gente que tem problema com a sexu*l*idade dos outros. Acham que isso é um defeito ou coisa do tipo, mas sinceramente? Não passam de um bando de imbecis.
Ouvir aquelas palavras era, no mínimo, estranho, vindo de alguém que mal conhecia. Nunca tinha dito para alguém sobre minha orientação, porém para ele, aquilo era tão cristalino que ele sequer se importou, perguntando como se fosse comum, banal e corriqueiro.
E, percebendo que eu parecia relaxar conforme eu pensava na situação, ele continuou.
— Então...falar dela é difícil? – ele me encarou. Não com curiosidade, mas com a atenção de um ouvinte. Concordei com a cabeça.
— Eu entendo – Caetano respondia, pensativo, em um tom de voz mais soturno – pra mim também não é fácil, mas olha...
Ele segurou meu ombro com firmeza em meio a seus dedos magros e frios, e continuou sorrindo.
— Tenho certeza que em breve ela vem te visitar e você vai se sentir melhor.
— O que te faz dizer isso?
— Que se ela gostar mesmo de você, vai vir dar um jeito de vir lhe visitar. Acredite em mim, sempre dão...
— Não fale o que não sabe – ri sarcasticamente, tentando evitar falsas esperanças.
— Se fosse comigo, eu ia gostar que me visitasse – ele terminou o cigarro e escondeu a bituca em um canto do jardim – Pelo menos uma vez.
— E você, tem alguém? – perguntei.
Caetano suspirou consigo mesmo, e deu um sorriso contido.
— Tenho, e sinto que em breve iremos nos ver.
Concordei com a cabeça, e ele se despediu de mim.
— Ei, Caetano.
Ele virou novamente para onde eu estava.
— Significa ondas do mar, ou o ritmo do oceano.
Caetano deu um largo sorriso ao entender do que eu estava falando.
— É um lindo nome, e combina com você. Foi uma ótima escolha, ondas do mar.
E, de frente para mim e andando de costas, despediu-se de mim novamente. Voltei a ficar só, olhando para os pássaros que cortavam o ar, voando para os seus ninhos, saindo deles, cantando em meio a chuva que começava a se dissipar no ar. Fechando os olhos e ouvindo o canto deles em meio ao barulho do vento, a tarde começava a se tornar aprazível.
Fim do capítulo
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Marta Andrade dos Santos
Em: 05/10/2021
Entendo perfeitamente a situação deles.
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