Inevitável
Emeril passou os próximos dias entre os bancos, passando breves momentos acordada por dia. Liora se manteve todo o tempo ao seu lado, contendo as crises dos seus poderes, que variavam de mais breves para mais perigosas. Todos estavam em alerta, esperando pela próxima crise, famintos por terem que racionar a comida, dependentes da energia de Milo, uma vez que Liora estava focada na filha.
—Sinto falta dela. — Ian suspirou, movendo as mãos juntas para tentar esquentá-las. — Parece que faz tanto tempo que fomos pescar.
—Sente falta dela ou do tubarão que comemos a semana toda? — Jhan perguntou, arrancando um sorriso breve dele
—Eu sinto falta dela. — Repetiu, olhando para o lado, onde Emeril estava dormindo. — E ela está bem aqui, mas é como se não estivesse.
—Sobrevivemos uma semana. Só deve faltar mais alguns dias, com todo esse frio, não iria me surpreender se tivéssemos que andar no gelo.
—Estamos chegando. — Kenny afirmou, beijando os lábios de Ian. — Já vim nas terras dos elfos. Devemos começar a ver as margens amanhã de manhã.
—Estou ansioso por terra firme. — Jhan se animou. — Talvez encontramos um clima mais ameno lá.
—Emeril deve sentir tudo isso. — Ian suspirou, voltando a olhar na sua direção. — Ela não deve gostar de ver as três brigadas assim.
Calaram-se quando viram Liora se aproximar, o rosto demonstrando o sinal de cansaço. Ela se sentou entre eles, olhando o rosto de cada um, soltando um longo suspiro antes de falar.
—Eu sei que são dias difíceis e que estão cansados. Emeril me falou que eram amigos dela.
—Nós somos amigos dela. — Ian a corrigiu, franzindo o cenho.
—Sim. E sei que ainda sou uma estranha para vocês que só trouxe problemas, mas estou fazendo o que posso. E sei que vocês também. — Baixou o olhar, massageando a ponte do nariz. — Eu não sei se Emeril falou a vocês, mas estive preparando as coisas para a chegada de todos vocês, para que fossem acolhidos, depois de toda essa viagem. Vai haver uma casa para vocês dois, Kenny e Ian. E uma para você, Jhan. Espero que aceitem. Criei as casas na mesma rua onde a minha loja e minha casa estão, então vão estar próximos de Emeril e Ilis.
—Você fez uma casa para nós? — Kenny perguntou, surpresa.
—Sim. Não poderia deixar os amigos de minha filha desabrigados ou longe de sua alfa. Então não se preocupem. A viagem vai terminar amanhã. Só queria que soubessem que vão ter um lugar e sua privacidade. — Ela abriu um pequeno sorriso singelo, olhando para todos. — Não espero a amizade de vocês, e não quero nenhuma retribuição. Eu vou tentar contatar Emeril nos sonhos. Se ela acordar enquanto isso, cuidem dela e me chamem, tudo bem?
—Eu te chamo se algo acontecer. — Kenny garantiu.
—Obrigada. Tenham um bom dia.
Liora se levantou e acenou antes de descer para as cabines, os olhos de Selen somente observando o movimento. Milo e Ilis também dormiam, deixando o movimento no barco mais quieto do que nos últimos dias de agito. O movimento veio no fim do dia, quando Emeril acordou, os olhos brancos mostrando que estava verdadeiramente consciente. Os lobos avançaram, ajudando-a a sentar.
—Não durma. — Ian falou, tocando seu ombro.
—Estou fraca. — Ela sussurrou.
—Claro, você quase não tem comido ou bebido esses dias. — Jhan falou num sorriso, buscando esconder sua preocupação.
—Vou chamar Liora, então você aproveita e come alguma coisa. — Kenny falou, e olhou para os demais. — Mantenham ela acordada.
Ela acariciou entre os chifres de Emeril e seguiu para as cabines, deixando os rapazes com ela. Ela ofereceu um sorriso fraco e pediu para sentar no banco, eles a ajudaram prontamente e ficaram de cada lado seu.
—Teve bons sonhos? — Ian brincou.
—Não lembro de ter sonhado muito. Acho que não chegava nesse estágio. Sei que era um sono agitado.
—Foi uma viagem agitada.
—Estavam dando a festa e não me convidaram?
—Você não lembra?
—Da festa? Não.
—Não. Das vezes que acordava, seus olhos mudavam de cor e coisas aconteciam.
—Do que está falando? — Ela estreitou os olhos, confusa, olhando dele para Jhan, que encolheu os ombros, nenhum deles sabendo como explicar.
—Você não estava consciente, não é?
—Eu só lembro quando minha mãe me dava alguma poção para beber.
—Claro que ela não faria as tempestades ou o fogo de propósito. — Jhan falou enquanto envolvia os dedos dela. — Sua mãe disse que algo está fazendo seu corpo e seus poderes se desenvolverem mais rápido do que deveria.
—Eu estou mudando? — Ela olhou o que conseguia do próprio corpo, mas somente piscou, sem notar nada.
—Sim, minha querida. — Liora respondeu, ajoelhando-se a sua frente e estendendo a mão para tocar seu rosto. — Seus poderes estão tão maiores, se você se concentrar, você vai sentir.
—Ela está fraca. — Ian protestou. — Precisa se fortalecer primeiro.
Liora piscou na sua direção somente, então se voltou a filha, segurando sua outra mão e colocando uma maçã em sua palma, gesticulando para que comesse.
—Eu preciso que fique acordada até amanhã, querida.
—Por que? — Perguntou enquanto mastigava, seus movimentos lentos, sem reflexo e sem força.
—Você conseguirá lidar com o que está acontecendo se estiver acordada, assim vai poder lutar contra o que está querendo derrubar você. Se continuar dormindo só vai enfraquecer.
—É como se minha energia não carregasse completamente.
—Porque aquele maldito quer enfraquecer você. Contigo acordada, posso cuidar de você. Você dormindo eu fico limitada a te esperar acordar.
—O mago no deserto... — Relembrou, e sua mãe assentiu. — Quanto tempo até chegarmos na terra dos elfos?
—Amanhã estaremos perto o suficiente para eu levar todos.
—Então... vai valer a pena ficar acordada para ver sua forma de dragão finalmente. — Sorriu mais animada.
—Você vai nos levar em forma de dragão? — Ian questionou, as sobrancelhas erguendo.
—Sim, é o plano. — Liora o respondeu, voltando-se a filha. — Consegui fazer um pouco de poção para te ajudar a ficar acordada, mas vai depender inteiramente de você.
—Claro, pode me dar. Estou cansada de ficar deitada, nessa forma. Mas não consigo voltar a forma humana, então...
—Não? — Estranhou, colocando o pequeno frasco em sua mão. — Mas deveria poder.
—Meu corpo pede para ficar assim.
—Acontece conosco na lua nova e cheia. — Jhan falou. — Talvez essas mudanças exijam que ela se mantenha nessa forma.
—Sim, normalmente quando está na idade certa você fica um período nessa forma para se fortalecer. — Liora observou, pensando. — Se o que ele fez está adiantando esse processo, talvez seja melhor não tentar voltar a forma humana.
—Espero que sua casa não tenha teto, então.
—É mais espaçosa do que imagina. Não há com o que se preocupar.
Emeril terminou a maçã e bebeu a poção, sentindo o liquido recuperar um pouco do seu ânimo. Tocou o rosto da mãe e o puxou para perto, abraçando seu pescoço contra o peito enquanto acariciava seus cabelos, sentindo o sorriso dela enquanto ela fazia o possível para abraçá-la de volta.
—Obrigada por cuidar de mim, mãe. Esperei tanto pelo momento que ficaríamos juntas.
—Não sabe o quanto esperei para poder te abraçar assim, querida. Senti tanto sua falta. Mas sabia que iriamos nos encontrar de novo. Cedo ou tarde.
Emeril sorriu, voltando a segurar seu rosto, tendo o seu acariciado, ambas se olhando. Os lobos se afastaram, incomodados, sequer retribuindo ao olhar fixo de Selen, no leme. Liora os ignorou, beijando a ponta do nariz da filha.
—Quer um voo particular?
—Eu posso ter?
—Sempre.
—Vai ser ótimo.
—Consegue ficar em pé?
—Sim. Vamos!
Liora sorriu e se levantou, segurando sua mão enquanto a guiava para a proa. Equilibrou-se na ponta enquanto Selen diminuía a velocidade, só então Emeril notou que sua mãe era maior que ela, seus cabelos cobriam toda sua coluna em cachos presos por elásticos em três partes. Ela saltou com os braços estendidos, asas crescendo em suas costas e ganhando altitude enquanto o dragão tomava conta do seu corpo, sobrevoando o barco. Emeril sorriu, admirada, e seguiu os passos da mãe, batendo as asas para alcançá-la.
Liora possuía o corpo todo negro, juntamente dos olhos e chifres. Media pouco mais de 60 metros de comprimento, e Emeril se esforçou para segui-la até plainar no ar, sendo atendida em seguida quando sua mãe passou por baixo dela, oferecendo suas costas de apoio.
—Você é tão grande! — Falou alto, engatinhando em suas costas. — E muito rápida.
Liora subiu alto, o pôr do sol sendo o único a fazer companhia para elas no horizonte, enquanto o barco não passava de um ponto no oceano. Liora plainou acima das nuvens, maravilhando Emeril com a paisagem e o silêncio. Ela brincou nas costas da mãe, correndo e se equilibrando, aventurando-se nas asas até cair, mas somente riu enquanto o vento batia em suas costas, e Liora voou ao redor dela.
—O que elas estão fazendo? — Kenny perguntou aos outros, observando-as no ar.
—Se divertindo. — Selen respondeu, também olhando para ambas, um sorriso bobo nos lábios.
—Elas são malucas. — Ian falou.
—Agora sei para quem ela puxou. — Jhan riu, cruzando os braços. — Se Ilis ver isso vai ficar maluca.
—Ou feliz. — Selen sugeriu. — Ela está tão preocupada com Emeril dormindo o tempo todo, que se vê-la animada assim, vai ficar aliviada.
—Provavelmente. — Kenny afirmou. — Mas vou deixar a tarefa de acordar a alfa para ela, vai ser melhor.
Liora voltou a receber a filha em suas costas, que correu até seus chifres, segurando-os para se equilibrar.
—Solte fogo, mãe!
Liora ergueu os olhos, vendo a empolgação da filha, perguntando-se se ela se lembrava de que soltou fogo pela boca nos últimos dias. Ainda assim, fez sua vontade, respirando fundo e soltando uma longa rajada de fogo a frente, recebendo o ar quente no rosto. Emeril vibrou em resposta, mas dessa vez seu grito ecoou em chamas, e ela se surpreendeu, segurando mais firme os chifres.
—Era disso que falava quando disse que minhas habilidades estavam se desenvolvendo? Porque admito, eu gostei.
Liora quis rir, mas ao invés disso mergulhou em direção ao barco, pousando a filha e voltando a forma humana, parando a sua frente. Emeril a abraçou outra vez, na proa do barco, inclinando-se na ponta dos pés.
—Mãe... Você está com alguém? — Sussurrou.
—Por que essa pergunta?
Liora a olhou, e Emeril sorriu, acariciando seu rosto sem notar os lobos gesticulando para Selen, incentivando-a para falar, mas a elfa era incapaz de ouvir o que elas falavam.
—Há um brilho intenso no seu olhar. Encontro essa intensidade nos olhos de Kenny e Ian, mas eles estão juntos faz tempo.
—Encontra algo semelhante nos olhos de Ilis?
—Eu encontro um mundo inteiro nos olhos dela. Mas não vem ao caso. Você nunca me falou que estava com alguém.
—Faz pouco tempo, para falar verdade.
—Eu sabia! Quando vou conhecê-lo?
—É uma mulher, minha querida.
—Sério? Ela gosta de você também?
—Eu acredito que sim.
—Emeril. — Selen tocou seu ombro, olhando entre ela e Liora, e recebeu um abraço apertado quando teve a atenção dela. — Você parece bem. O que tinha na sua bebida?
—Muito engraçado. Mas não vai durar muito. Estou aproveitando enquanto consigo ficar em pé.
—Isso é bom. Posso aproveitar isso e conversar com você algo?
—Claro. A sós?
—Não. Acho que Liora vai querer ouvir. Você quer sentar?
—É algo ruim?
—Espero que não veja assim.
Liora respirou fundo, trocando um longo olhar com a elfo para ter certeza de que faria isso agora. Selen assentiu, e enquanto Emeril se sentava, segurou a mão da feiticeira, o que não passou despercebida por ela, que franziu o cenho, olhando entre ambas, tentando acreditar no que estava vendo.
—Vocês estão brincando? — Perguntou, inclinando a cabeça e encarando a elfo, que permaneceu séria. — Selen...
—Eu sei que parece confuso. — Ela falou devagar, tentando escolher as melhores palavras. — Eu queria esperar que você estivesse bem, mas o clima no barco está pior a cada dia, e eu precisava que você soubesse.
—Todos já sabem?
—É um barco, minha querida. — Liora falou num pequeno sorriso. — Você sabe que é difícil esconder as coisas aqui.
—Não faz sentido nenhum. Vocês já se conheciam antes? Selen disse que você conhecia a mãe dela.
—E eu conheço. Mas só conhecia os filhos mais novos dela, se essa é sua dúvida. Só voltei à terra dos elfos no último ano.
—Mãe, eu te contei sobre Selen.
—Muito menos do que me falava de Ilis. Eu sei que vocês são amigas, sei o que tiveram, mas você sabe que não é algo que eu escolhi. Ou ela.
—Não faz sentido. Simplesmente não faz.
—Emeril... Muita coisa aconteceu enquanto estava passando por esse estado de mudanças. — Selen se abaixou a sua frente, tocando seus joelhos. — Só... Eu sei que já fiz muitas coisas idiotas, você já ficou com raiva de mim várias vezes. Sei que vai ficar com raiva agora. Mas dessa vez eu não fiz nada errado, porque dessa vez... Eu sinto que estou fazendo a coisa mais certa que já fiz na vida.
—Com todas as pessoas no barco, com todas as pessoas no mundo...
—E aconteceu logo com a sua mãe, não é? Não posso me desculpar por isso dessa vez. É algo que eu realmente quero.
—É algo que nós queremos. — Liora confirmou, tocando a cabeça de Selen. — E queremos que você possa aceitar isso, quando estiver pronta.
Ela ficou em silêncio, tentando processar os fatos, os lobos observando a cena em expectativa. Mas Emeril balançou a cabeça, suspirando e se levantando, massageando as têmporas enquanto andava entre os bancos. Selen se levantou, aproximando-se dela e a segurando pelos ombros, encontrando seus olhos amargurados.
—Emeril... Eu não quero e nem posso perder sua amizade também. Por favor... Pense nisso com cuidado.
Ela tentou abraçá-la, mas Emeril a afastou, virando-lhe as costas e descendo as escadas para as cabines
—Dê tempo para ela, minha luz. — Liora se colocou à frente da elfo, segurando seu rosto em mãos. — Até onde sei podia ser pior. Ela só precisa absorver os fatos.
—Eu só espero que não seja como aquele ditado élfico. “Tudo que temos pode ser perdido para tudo que precisamos.”
—Se você precisa da amizade dela, não tem que se preocupar. Cedo ou tarde...
—Melhor se for cedo.
Selen abriu um sorriso rápido, selando seus lábios e a abraçando com carinho, fechando os olhos para aproveitar a sensação cálida de sua pele.
—Quando vou ganhar um voo particular?
Liora riu antes de se afastar, acariciando seus cabelos, olhando sobre seu ombro para os lobos, que brincavam no leme, animados, então girou a elfo pelos ombros, aproximando-se do seu ouvido.
—Vá falar com eles. Podemos parar o barco hoje para que todos descansem. Emeril não deve perder o controle hoje.
—Claro. Vem comigo. Já devem falar conosco agora.
Liora a seguiu para a popa, juntando-se a eles, só então o clima amenizando de uma vez.
Fim do capítulo
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