Trégua
Alguns dias passaram enquanto seguiam viagem, com Selen guiando o caminho. Tinha sido o mesmo percurso que fez enquanto procurava pela floresta. Estava contente que agora Emeril tinha voltado a falar como antes, e agora tinha mais pessoas para distraí-la. Era a segunda viagem longa que fazia, só não imaginava que estaria fazendo o caminho de volta. Podia notar que já não era a mesma elfa de quando saiu da casa de sua mãe. Sentia-se mais forte e capaz de cuidar de si mesma, as experiências que teve na floresta somente a ajudaram a amadurecer.
Emeril passou mais anos do que gostaria na floresta, mas foi o último que a fez mudar muito mais. Morar longe do pai a fez reconhecer o valor de se cuidar sozinha e montar seus próprios horários. Agora viajava em expectativa de reencontrar a mãe.
Chegaram no oceano, onde possuía uma vila com várias casas simples e barcos de pescadores na borda. Conseguiram quartos para dormir na primeira noite, separados por casas na mesma vizinhança, então ofereceram trabalho para continuar passando os próximos dias, o que consistia em diversos serviços, garantindo um teto e comida, além de conseguirem pagar pelos reparos de um barco ao venderem seus pertences no mercado. Iriam precisar dele para cruzar o oceano.
—Não parece tão ruim uma vida no meio das pessoas, não é?
Selen provocou a feiticeira, tocando seus ombros. Estavam sentadas no cais, era noite, e compartilhavam alguns pedaços de carne, banhadas num molho apimentado.
—É estranho para mim ainda, ver tanta gente. — Admitiu. — Estar numa casa térrea, ver o mar, tocar a areia. Falar com todos esses desconhecidos, todos tão amistosos conosco, viajantes. Na floresta nos escondíamos de visitantes.
—Você ficaria perplexa se soubesse quantas pessoas moram ou visitam minha terra diariamente. — Sorriu, molhando a carne no molho e colocando grande parte na boca. — Ainda assim, aqui é uma cidade bem pacata. — Falou com a boca cheia. — As evoluções além do deserto não chegaram aqui, senão você estaria estranhando ainda mais.
—É tão diferente assim?
—Completamente.
—Minha mãe estará lá. Tenho certeza de que vai me ensinar cada coisa.
—Aposto que sim. Você fala dela todos os dias, deve estar ansiosa para reencontrá-la.
—Mais que qualquer coisa. Se eu soubesse o caminho estaria voando até ela.
—Ainda estamos longe. Vamos atravessar o deserto, então mais duas semanas no mar.
—Estamos dois meses viajando direto. Está me dizendo que ainda teremos mais um?
—Sim, querida, mais um. Por isso estamos dando um tempo aqui. Precisaremos de mais comida.
—E de tempo para eu treinar a encolher coisas maiores. Um barco é maior que tudo que já tentei.
Os lobos chegaram até elas e Emeril foi abraçada pelos três ao mesmo tempo antes deles se sentarem ao seu redor, oferecendo uma garrafa para ambas com liquido vermelho.
—Ilis deixa vocês andarem sozinhos com álcool na mão? — Selen provocou, tomando longos goles.
—Claro. — Jhan sorriu, animado. — Ela bebe tudo isso sozinha se não forem rápidas.
—E quantas vocês já beberam?
—Menos que ela.
Eles riram, tocando as garrafas num brinde e voltando a beber. Ian recebeu Kenny no colo enquanto sentava mais na beira para molhar os pés, e Jhan tirou a camisa suada, deitando as costas na madeira. A elfo terminou a carne e deitou a cabeça nas pernas de Emeril, que somente olhava o horizonte.
—Logo vamos estar andando de novo. — Jhan falou, soltando um longo suspiro. — Sem mais diversão, só assistir os casais nos amassos.
—Aproveitando os prazeres da cidade? — Selen perguntou num sorriso malicioso.
—Claro. Quer vir junto?
—Acha que já não fui? — Riu junto dele. — Somos os únicos descompromissados nessa viagem, temos que achar um jeito de sobreviver.
—Pena que compartilhamos o mesmo gosto para mulheres.
—Já oferecemos diversão de graça, mas vocês são orgulhosos. — Kenny falou com um sorriso de lado enquanto recebia beijos no pescoço.
—E eu disse que te dou uma amostra grátis. — Selen inclinou a cabeça na direção dela, piscando-lhe o olho.
—Se Ian se ajoelhar, talvez. — Jhan provocou.
—Vocês estão com fogo. — Emeril comentou, soltando um suspiro. — Por que não vão dar um mergulho para se aquietarem?
—Boa ideia. — Ian se animou. — Nadar pelado.
—Não podia ter dado ideia melhor. — Kenny respondeu.
Ambos tiraram as roupas e correram pelo cais até mergulharem juntos, nadando em meio a brincadeiras. Jhan rodou no chão de madeira do cais e caiu na água ainda de calça, deixando-se boiar.
—Você vai levar uma bronca de Ilis por falar para os lobos dela nadarem bêbados.
—Eu não deixaria com que se afogassem.
—Está bem. Então mostre que ainda sabe o que fazer com as mãos e me ajude aqui.
Selen se levantou, gesticulando para os botões de sua camisa, fazendo-a revirar os olhos enquanto se levantava. Começou a desabotoar enquanto Selen desatava o nó em sua calça, olhos atentos nos próprios movimentos. A elfo ficou nua a sua frente, um sorriso torto de lado.
—Quer ajuda?
—Não vou mergulhar. Vou ficar de olho em vocês caso algo aconteça.
—Tão responsável. Tem certeza que não sente falta?
Emeril estreitou os olhos para a pergunta, mas suspirou, lembrando que ela estava alterada por causa da bebida, então a empurrou pelo ombro, fazendo com que caísse no mar. Voltou a sentar, observando os lobos entretidos até sentir o toque úmido de Selen em sua perna, apoiando-se nela para boiar.
—A água está fresca, por que não entra?
—Ela refrescou seus pensamentos?
—Lembrei que você gostava muito de ficar na cachoeira.
—Sim, é um lugar tão lindo e calmo.
—Ainda que tenhamos passado momentos nada calmos lá.
—Selen, o que está querendo?
—Que você entre aqui para termos diversão. Do que está com medo?
—Você não está em si.
—Claro que estou. Você não sente falta? Você gostava tanto de ficar na água.
—Sim, e agora gosto de outras coisas. O que está havendo com você?
—Só sinto sua falta.
—Achei que estivesse satisfeita com as mulheres na cidade.
—Não é a mesma coisa. Com você era diferente. Podíamos aproveitar agora.
—Aproveitar o que, Selen? Eu sei que só tínhamos sex* e carinho, mas fazer isso agora não tem mais qualquer sentido.
—Só porque tem isso com Ilis? Ela não está aqui agora.
—Decidimos esperar. O que temos é diferente, e assim está bom para mim. E por isso eu não teria nada com você ou outra pessoa porque ela não está aqui agora. Eu a quero, você sempre soube disso.
—Sim, sim. — Suspirou, revirando os olhos. — Você me trocou por ela.
—Não tínhamos um compromisso, Selen. Você só ia para a sua casa para ter a companhia das mulheres da vila. Depois você diz que não sabe o motivo de meu pai não gostar de você.
—Ele nunca soube que tínhamos algo. Ele não gostava de mim porque sou elfo.
—Eu sai de casa para morar com você. Ele não era tão idiota assim.
—Ele não está aqui agora.
—Selen, por que isso agora? Achei que tínhamos as coisas resolvidas.
—Você nunca teve problemas em tirar as roupas para mergulhar.
—Selen, não seja uma idiota agora. Temos uma viagem toda pela frente ainda.
—Exatamente. O que você quer com Emeril sem roupas? — Ilis parou ao lado da feiticeira, completamente nua.
—Você não entenderia se não provou. — Selen provocou.
—Vou avisar os lobos para voltarem para casa. Nadar a noite é perigoso. Ainda mais se estão bêbados.
Ilis andou até a borda do cais, assobiando para os demais e então gesticulando para que voltassem. Emeril suspirou, segurando as mãos da elfo e a fazendo sair da água, conjurando uma toalha e a cobrindo.
—Vá dormir, Sel. Amanhã temos mais tarefas.
—Vai me levar para a cama?
—Selen, já chega. Você vai acabar arranjando uma briga se continuar com essas provocações.
—Por que? Ilis vai me bater?
—Não. Mas eu vou parar de conversar com você se continuar com isso. Se tem algo para resolver comigo, faça isso quando estiver sóbria.
—Você está ficando muito chata.
—Precisa de ajuda? — Kenny parou entre ambas, fechando os últimos botões de sua bermuda.
—Pode levá-la para o quarto? Estou sem cabeça para isso.
—Eu vou sozinha. — Selen tentou desviar de ambas, mas parou quando Ilis se colocou a sua frente.
—Eu levo. Estamos dividindo o quarto, de qualquer forma.
—Tem certeza? — Emeril encolheu os ombros.
—Sim. Vejo você amanhã.
—Ah... Obrigada por estragar minha noite, Selen. Boa noite para vocês.
—Vamos juntas, estou exausta. — Kenny falou na língua dos lobos, passando o braço sobre seus ombros.
Emeril somente assentiu, ainda desanimada por sequer ter a chance de conversar com Ilis depois de um dia inteiro esperando por essa chance.
—Não preciso de cuidados, lobo, deixe-me em paz. — Selen reclamou tão logo chegaram no quarto.
—Os lobos já estavam bebendo antes de os liberar de nossa reunião. Você não bebeu o suficiente para ficar bêbada.
Selen sorriu, deitando na cama e tirando a toalha do seu corpo, mas os olhos da loba permaneceram fixos nos seus, esperando.
—O que estava querendo com Emeril? Irritá-la? Não precisa ser um gênio para saber que você não a levaria para cama daquele jeito.
—Eu não te devo satisfação, lobo.
—Selen, temos uma trégua por algum motivo. Você sabe que só estou aqui por causa de Emeril. Desde do começo, desde muito antes de você aparecer. E sabe que só teve algo com ela porque fui embora. Então o que está querendo agora?
—Quanta pretensão, lobo. Emeril nunca olhou para mulheres até eu dar essa opção a ela.
—Você pode ter mostrado, mas ela não teria aceitado se já não tivesse isso em mente.
—Você só passou a ser humana para ela faz algumas horas.
Ilis suspirou, balançou a cabeça e se sentou no colchão.
—Por que está agindo desse jeito? Achei que pudéssemos ser amigas, e não somente depender de uma trégua para manter a paz.
—Não temos nada em comum.
—Não precisamos ter traços em comum. Nós convivemos no mesmo ambiente, com as mesmas pessoas, e estamos dependendo uns dos outros para sobreviver e seguir viagem. Então eu repito: poderíamos ser amigas.
Selen quem suspirou, sentando para secar os cabelos enquanto desfazia as tranças.
—Se você não quer falar com Emeril sobre o que está acontecendo, então preciso saber se realmente quer levar essas provocações adiante.
—Relaxe, lobo, não quero levar Emeril para a cama, nem nada parecido.
—Então?
—Eu gosto dela. — Admitiu, puxando sua bolsa para perto, pegando roupas secas para vestir. — E sinto falta dela. Mas também sinto que não era o certo a fazer em assumir um relacionamento com ela. Eu disse que era ela quem sentia que faltava algo, mas... Também me sentia assim. Talvez seja complicado ver todos vocês juntos, e por mais que me incluam, não me sinto parte disso.
—Por que não?
—Emeril está indo atrás da mãe. Você e os lobos estão sendo o suporte dela. Eu sou o guia da excursão.
—Emeril te considera demais para achar que você é somente isso. Ou já teria quebrado seu nariz várias vezes com suas provocações.
Selen riu, vestindo uma calça mais justa e se levantando para pendurar a toalha no gancho da porta.
—Emeril é uma pessoa inquieta. — Voltou a falar, olhando sobre o ombro para Ilis. — Em vários sentidos. Ela tem fome de viver, de descobrir coisas novas e acima de tudo, de aprender. Talvez faça parte daquela coisa que a faça ser ela. Talvez seja por causa da idade. Eu não sei, isso a faz ser encantadora e irresistível. Mas...
—Não é mais o que você quer.
—Não. Eu já vivi muitas aventuras. Conheci muitas terras. Agora sinto que devo criar uma aventura diferente, que Emeril não seria capaz de me oferecer.
—Você quer se fixar num lugar?
—Num lugar? Talvez. Com alguém? Sim. Então, sim, podemos tentar trocar nossa trégua por alguma amizade, mas depois. Agora é... estranho.
Ilis assentiu, então estendeu a mão na sua direção.
—Renovamos a trégua?
—Claro. — Sorriu, dando um passo e apertando sua mão.
—Até porque se Emeril é doce demais para relevar suas brincadeiras, eu posso tentar te ignorar com maior eficácia.
Selen riu, empurrando-a pelo ombro, então apagou as velas e se deitou na própria cama, respirando fundo enquanto relaxava. Ilis também deitou, tirando a camisa que Jhan tinha lhe emprestado, virando de lado para tentar dormir.
—Ilis?
—O que?
—Espero que você seja o que falta para ela.
—Eu também. Se eu não for, você descobre se tem segunda chance.
Fim do capítulo
Dois capítulos curtinhos, achei melhor postar logo :D
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