Perdão
Seguiram os primeiros dias sem ninguém. Percorreram o caminho ao lado das montanhas, a cada dia a floresta ficando cada vez mais distante. Passaram por uma pequena cidade, mas Emeril não quis parar, estranhando a presença de tanta gente em um lugar não tão longe de onde cresceu.
Passaram mais alguns dias andando em campos abertos, falando pouco, andando de dia e montando acampamento a noite. O tempo permanecia ensolarado e com períodos de chuva quando acampavam, tornando difícil a caça ou que acendessem fogueira.
—É melhor darmos uma pausa amanhã. — Selen disse, segurando o zíper da barraca, subindo e descendo, entediada. — Está cansativo. Duas semanas andando direto. Preciso me exercitar e achar algo decente para comer.
—Tudo bem.
A chuva varria o terreno lá fora, balançando a fina barraca que a elfa possuía e que dividia com a feiticeira em noites conturbadas assim. Emeril estava deitada, olhos fechados, mantendo a respiração lenta.
—Você não anda falando com sua mãe. — Selen observou, olhando os próprios pés descalços. — Vocês brigaram?
—Não. Ela está preparando as coisas para a nossa chegada.
—Me tira uma dúvida.
Emeril a olhou, erguendo a sobrancelha, sinalizando para que continuasse.
—Você disse que a poção faz Ilis e você lembrarem dos sonhos. Mas é só os seus sonhos ou os sonhos em geral?
—Depende. Se eu quiser deixo ela ver o que sonho. Lembramos dos sonhos de maneira geral.
—Não parece divertido.
—É bom, se quiser enfrentar o que costuma esconder na cabeça.
—Então...
—Não, Selen. Não a procurei nos sonhos. Pare de querer saber dela. Vou começar a achar que está apaixonada.
Selen sorriu, balançando a cabeça mesmo que ela não visse. Deitou ao seu lado, virando-se na sua direção enquanto apoiava a cabeça na mão. Deslizou as costas dos dedos pelo rosto dela, atraindo sua atenção.
—Você é diferente das garotas que já estive.
—Você é diferente dos garotos que já estive.
—Não imagino por que.
—Posso te dar algumas dicas.
—Claro, pode começar.
Ela sorriu, também se apoiando de lado, piscando algumas vezes enquanto pensava. Selen continuou movendo os dedos no seu rosto, os olhos acompanhando o gesto.
—Você sempre zelou por mim, diferente deles. Sempre teve paciência, na maioria das vezes, e não me lembro de termos brigado de verdade.
—Algumas vezes.
—Não, discussões, mas... Você sempre foi sincera comigo, e as verdades as vezes não são boas de ouvir. Nenhum deles era capaz de dizer isso. Nenhum deles me enfrentava.
—Eram uns idiotas.
—Você também é uma idiota, mas de um jeito bom. Eu gosto.
—Gosta de mim?
—Gosto de você, Selen. Você me faz bem. É a diferença principal entre você e os outros.
—É bom ouvir isso. — Sorriu, aproximando-se um pouco e beijando sua testa. — Também gosto de você, Emeril. Porque apesar de você ter medo de mostrar quem você é, você acaba mostrando tudo, eu sei que gosta que olhem para você, mas você nunca mostrou a Emeril de verdade.
—Você viu?
—Estou vendo-a agora. Com medo de dizer o que quer de verdade.
—Selen, de novo não.
—Você gosta de mim, mas não da forma que gosta dela.
—Vocês são pessoas diferentes.
—Você entendeu, Emeril.
—Onde quer chegar?
—Fale com ela. Descubra o que está acontecendo. Não adianta dizer que não se importa, e ficar triste todos os dias. Você é a pessoa que mais fala, inclusive dormindo, te ver em silêncio o tempo todo está me matando, Emeril. Se eu não posso preencher o que te falta aí dentro, que nenhum namorado seu foi capaz, acabe com essa agonia de uma vez.
—Se te deixa em paz, eu vou pensar no assunto.
—Tem até o amanhecer. Depois disso, ou desiste dela, ou a chame.
—Está bem. Me deixe dormir agora. E vai dormir também. Garanto que a barraca não vai sair voando na chuva.
Afastou-se, virando para o outro lado e fechando os olhos. Selen sorriu, tocando seu ombro numa última caricia.
—Dorme bem.
—Você também.
Dormiram em meio a tempestade, algo do qual estavam se acostumando. Emeril não encontrou sua mãe novamente, mas buscou por Ilis dessa vez. Selen acordou primeiro, e aproveitou o tempo para fazer os alongamentos matinais. A grama estava úmida, o céu estava nublado, mas não impossibilitou que visse três pessoas no fim do horizonte, seguindo pela pequena estrada de terra. Estreitou os olhos, buscando as duas lâminas dentro da barraca, testando se estavam afiadas o suficiente. Executou alguns movimentos, mantendo a calma.
—Estava quase me sentindo ameaçada. — Kenny falou ainda ao longe, erguendo os braços. — Guarde isso, elfo.
Selen revirou os olhos, mas continuou segurando suas espadas, esperando que chegassem perto.
—Selen. — Ilis a cumprimentou, olhando ao redor, os olhos parando na barraca.
—Ilis. Novidade, você aqui.
—Sem ironia, por favor. Sabe por que estou aqui.
—Eu sabia, antes de irmos embora. Agora não tenho certeza.
—Os motivos continuam os mesmos. Preciso falar com Emeril.
—Ela está dormindo. Sente e espere.
Selen usou a espada para gesticular o chão, o que fez os outros três lobos avançarem um passo em frente a Ilis, prontos para atacar, o que só fez a elfa se postar a frente da barraca, braços estendidos ao lado do corpo para impedir que continuassem.
—Vamos mesmo precisar disso, Ilis?
—Abaixe as lâminas, Selen. Não faremos nada contra você nem com Emeril.
—Então se afastem, todos vocês.
Ilis suspirou, mas assentiu, recuando alguns passos e fazendo os outros lobos ficarem mais atrás, momento que Selen deixou as espadas no chão, ao lado da barraca outra vez. Olhou de forma cuidadosa para cada um, notando o cansaço e as marcas de olheiras abaixo dos olhos, todos molhados e tremendo.
—Viajaram de noite? — Perguntou ao cruzar os braços.
—Sim. Ou não iriamos alcançar vocês.
—Onde estiveram essas semanas?
—Resolvendo as questões com o ritual da alcateia, a lua cheia está chegando. Então resolvi as últimas pendências com Beah, assim ela não me segue além da floresta.
—Então decidiu se juntar a nós.
—Isso eu descubro depois de falar com Emeril. Então, por favor, eu respondo suas perguntas depois. Deixe-me falar com ela agora.
—Estamos todos cansados, elfo. Se quiséssemos fazer alguma coisa não estaríamos conversando agora. — Kenny falou, com paciência.
—Eu não acho que vão fazer alguma coisa. Eu só quero minha barraca sem vestígios do que elas vão acabar fazendo sozinhas lá.
—Sério, Selen? — A loba revirou os olhos, enfim entendendo. — Estava brincando conosco o tempo todo?
—Um pouco. Estava testando sua motivação.
—Te convenci o suficiente?
—Claro, ganhou sete minutos.
—Sete minutos? Preciso de mais.
—Se reclamar baixo para cinco.
—Dez. No mínimo.
—Como se você falasse tanto assim. Oito, e acabou.
—Que seja. Saia da frente.
Selen se moveu lentamente, acenando para que entrasse. Ilis revirou os olhos e entrou devagar, fechando o zíper, respirando aliviada ao ver Emeril, ainda a dormir profundamente. Sentou próxima dela, tocando seu rosto, retirando as mechas e acariciando sua pele, abrindo um pequeno sorriso. Inclinou-se e a olhou mais de perto, ficando alguns segundos ouvindo o som de sua respiração e o som suave dos seus batimentos. Começou a distribuir beijos pelo seu rosto, selando sua saudade, e também culpa, por ter ficado longe.
Emeril acordou, piscando algumas vezes, sua mão tocando os cabelos da loba por reflexo. Não conseguiu evitar o sorriso com a certeza de sua presença ali, algo dentro de si ficando com um peso a menos.
—Ilis... — Sussurrou.
A loba a olhou de perto, mirando entre seus olhos castanhos e seus lábios carnudos. Não falou nada, simplesmente avançou, beijando com saudade a boca que pensou todos os dias. Emeril seguiu o próximo passo primeiro, movendo a língua na dela, espantando de uma vez os vestígios do sono. Pressionou os dedos na sua nuca, colando os seus corpos o máximo que podia. Afastaram-se devagar, respirando o mesmo ar enquanto se olhavam.
—Você está horrível. — Emeril falou primeiro.
—Obrigada. Você está com bafo.
—É o que acontece quando acaba de acordar. Não mandei você chegar do nada me beijando.
—Não te vi reclamando.
—Não estou. Por mais que seja muito bom beijar você, nossos problemas não vão se resolver assim.
—Eu sei. Tenho menos de oito minutos para falar com você antes que Selen ache que estamos acasalando.
—Oito minutos? Vamos ser sinceras, isso pode levar um minuto se nos apressarmos.
—Você quer acasalar?
—Acasalar? Só essa palavra me dá calafrios.
Ilis sorriu, dando espaço para que ela se sentasse.
—Seu tempo está correndo, comece a falar. — Falou, esticando-se para se alongar e espantar o sono do corpo.
—Claro, então... Eu precisei de tempo. Para digerir tudo que vi aquela noite. Depois que vocês foram embora, eu precisei falar com Beah. Com a saída de três lobos da alcateia dela, acho que serviu para acalmar os ânimos dela para pensar. Nenhum lobo gosta de perder membros. Ainda menos quando um é antigo e outro era o namorado dela.
—Quem? Jhan?
—Sim, Jhan. Por isso estranhei quando o vi com os outros, procurando por minha liderança. — Suspirou. — Então sua mãe começou a me procurar enquanto dormia.
—Minha mãe o que? Ela não me disse nada.
—Eu pedi que não dissesse. Eu queria falar com você pessoalmente. Ela me contou o que realmente acontece até chegar naquele lugar em que ela estava. São medos e desejos misturados, todos os sentimentos. Você precisa enfrentá-los para chegar até aquele lugar.
—Ela também. Não é um feitiço tão fácil. Por isso ela o escreveu em mim. Estávamos muito longe, ela nunca teria conseguido chegar até mim sem ele. Então provavelmente, naqueles sonhos, tinha algo seu também.
—Sim, eu reconheço agora. Não significava que você realmente queria que acontecessem.
—Tem coisas que sim, tem coisas que não. — Suspirou, estreitando os olhos na direção dela. — Depois do que te falei na cachoeira aquele dia, você ainda tem dúvidas, Ilis? Eu disse que queria um lugar nosso, sem interferência de Selen, nem dos lobos, nem do nosso passado. Então você vê tudo aquilo nos sonhos e acha que eu iria querer aquilo? Você brigando com Selen ou nós três compartilhando a cama? Eu entendi que gosto da atenção que recebo das pessoas, ela já me jogou isso na cara.
—Você é assim, eu sempre soube. Às vezes é um defeito, outras não. — Respirou fundo, deixando os ombros caírem enquanto desviava o olhar. — Eu fui uma idiota. Não devia ter deixado você. Vendo tudo aquilo, fiquei confusa com o que estava sentindo.
—Te fez pensar uma segunda vez se queria ficar comigo?
—Sim.
Ainda que doesse ouvir, Emeril já imaginava que isso tinha acontecido. Ilis voltou a olhá-la, sentindo-se mal pela tristeza que encontrou nos olhos dela. Tocou sua mão, esperando que ela a afastasse, mas ela fez o contrário, e prendeu os dedos aos seus.
—Mas eu sentia tanto a sua falta, Emeril. Mais do que naquele ano. Naquele ano eu não sabia o que era ter você nos meus braços, recebendo seus beijos e carinhos. E doeu. Mesmo que tenha me ocupado com os preparativos para a lua cheia, não foi o suficiente. Tinha que achar você antes que fosse tarde. Eu preciso saber, agora, antes que Selen me expulse da barraca. — Suspirou, olhando os olhos da feiticeira por um longo instante. — Você me perdoa?
Emeril respirou fundo, desviando os olhos enquanto repetia suas palavras na cabeça, sabendo que se negasse, estaria mentindo a si mesma. Inclinou-se na direção dela, apoiando-se no seu ombro, então selou os lábios nos dela por um longo momento, afastando-se pouco para olhá-la.
—Também errei. Devia ter encerrado as coisas com Selen antes de te levar para a minha cabeça. Devia ter te preparado melhor para o que poderia acontecer. Eu falhei também, mas também aprendi. — Pausou, respirando. — Eu espero que você aprenda a falar comigo, Ilis. Eu entendo que tenha sido mais lobo que humano nos últimos anos, mas se não aprender a lidar com o que sente e conversar comigo, mesmo que seja para pedir um tempo para pensar, não vamos sair do lugar.
Afastou-se mais, engatinhando até a ponta da barraca e descendo o zíper, mas voltou a olhá-la, seus olhos acompanhando seus movimentos.
—Eu não vou te perdoar uma terceira vez.
Suspirou, recebendo apenas o assentir em resposta, o suficiente para encerrar a conversa. Saiu da barraca, oferecendo a mão para ajudá-la a sair. Do lado de fora, a loba envolveu seus dedos e olhou na direção de Selen, que sorria, no meio do movimento de alongar ambas as pernas, sentada no gramado.
—Finalmente. — Falou, esticando-se para segurar o peito do pé.
—Não passei seu tempo. — Reclamou, erguendo a sobrancelha.
—Não acho que ela esteja falando disso. — Emeril falou, olhando-a. — Ela estava todos os dias me atormentando para conversar com você.
Selen conteve o riso com o olhar que recebeu da loba, mas somente prosseguiu com seu alongamento.
—Agora entendo o que quer dizer com ela ser irritante. — Falou baixo para Emeril, que sorriu.
—Finalmente podemos descansar agora. — Ian comemorou, recebendo um tapa de Kenny. — Ouch. Mas é a verdade.
—Sim, vão descansar. Eu vou caçar algo para compensar vocês.
—Essa sim é a alfa dos sonhos. Vamos ficar aqui, aproveitando a paisagem. — Ele gesticulou Selen.
—O que ele está falando? — A elfa perguntou, notando todos os olhares em si.
—Disse que você é bem maleável. — Kenny falou com um sorriso de lado, fazendo a outra rir.
—Vocês não viram nada.
—Se quiser nos mostrar em nossa barraca, estaremos esperando.
Emeril riu quando Selen entendeu do que estavam falando, mas não encontrou surpresa no rosto dela com a proposta.
—Posso ensinar você, se quiser.
—Quer vir junto? — Ilis sussurrou no ouvido de Emeril. — Ou vão nos convidar também.
—Diz que não é por causa da lua cheia. — Ela a olhou, o rosto aberto num sorriso.
—Eles são assim naturalmente, você vai se acostumar.
—Posso ir com você, alfa? — Jhan se colocou ao lado de ambas, as mãos nos bolsos. — Não quero ouvir o acasalamento desses dois tão cedo.
—Claro. Vai ser bom um par de mãos a mais.
Emeril assentiu na sua direção, respirando fundo algumas vezes enquanto deixava as asas saírem pelas suas costas. Ilis retirou a camisa pela cabeça, baixando a calça e se transformando em lobo logo em seguida. Jhan seguiu seu gesto, tirando as roupas antes de deixar o lobo tomar conta de sua pele. Emeril alçou voo, enquanto os lobos correram na direção que ela seguiu.
Fim do capítulo
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