Vinte e dois
- Achei que você tinha tomado uma decisão – Fábio comenta, trocando de roupa. Tinha acordado há poucos instantes, e sua voz estava um pouco arrastada – Ao menos você me fez pensar isso, depois de todas as conversas que já tivemos sobre esse assunto.
O quarto ainda estava escuro, e os dois permaneciam deitados. Gostavam de ligar o despertador para tocar sempre alguns minutos mais cedo, só para terem aqueles instantes de preguiça antes de iniciarem o dia. Bianca brincava dizendo que faziam isso só para se atrasarem com mais calma.
Naquela noite ela teve um sonho estranho, mas não conseguia lembrar o que tinha sonhado. Acordou só com a sensação, e pensando em sua avó materna, que ela não se recordava de ter conhecido. Lembrou que foi dormir preocupada, porque no dia seguinte estava marcada a consulta com a médica que Fábio vinha conversando. O sonho foi meio que um amparo para essa angústia, e Bianca queria muito se lembrar.
Não conseguiu. E acordou determinada a não ir à consulta.
- Também achei que era sensato conversar com essa psiquiatra, essa tal de Beatriz – Bianca responde, em meio a um bocejo – Mas Fá, não acho mais que seja necessário. Voltei a ter sono durante a noite, estou me sentindo bem em vários sentidos, passei a última semana bem.
- Sim, mas...
- E você sabe o que penso sobre me consultar de graça – Bianca interrompe – Não gosto de ficar devendo favor. Para ninguém!
- Eu sei, amor.
- E, além disso, eu ainda não sei como essa mulher conseguiu te deixar todo preocupado com a sexualidade do Joaquim.
- Não é isso, é que...
- Eu não quero – Bianca interrompe mais uma vez, segurando o braço de Fábio. Apesar do que falava, sorriu para ele – Não quero falar com ela, não quero pensar em homossexuais, não quero! Não é tão ruim assim eu querer continuar de bem com a vida e escolher evitar de me aborrecer, é?
Fábio não diz mais nada. Apenas observa a mulher, que se vestia ao seu lado. De fato Bianca estava melhor, até o seu rosto parecia mais leve, com as expressões menos carregadas. E ele só estava dormindo bem porque ela estava dormindo melhor, e aí se revirava menos na cama, acordava menos vezes. Mas o principal indício de sua melhora era o fato de que ela não chorava mais, e nas conversas parecia a Bianca de sempre – principalmente agora, argumentando com seus motivos o porquê de não querer ir à terapia. Ele jamais a obrigaria a fazer nada, em especial algo tão invasivo quanto isso.
Sabia que nada feito de má vontade fica bem feito.
Tinha ressalvas também com essa questão de se consultar gratuitamente. Fábio, na verdade, não se sentia nada à vontade com isso, mas reconhecia que, se não fosse assim, todo aquele auxílio prestado não teria chegado até ele. E fora ajuda não apenas para Bianca, já que ele se sentia remexido de alguma forma (jamais diria “curado” porque tinha a sensação de que estava longe disso. Mas acreditava que reconhecer que há questões para tratar é sempre muito esclarecedor também – e por ora, bastava).
Era muito grato por toda a ajuda que tinha recebido desde a primeira vez que se consultou com a médica, foi uma surpresa em vários aspectos. E por mais que Beatriz tivesse recusado várias vezes, ele fazia questão de um dia pagar por tudo isso. Ou, ao menos, retribuir de alguma maneira.
Sentia que precisava recompensar também a vizinha da irmã de Teresa, que indicou a psiquiatra. Não sabia nem quem era!
Bianca entrou no quarto com a escova de dentes enfiada na boca. Já estava de uniforme, mas ainda despenteada e descalça, e sorriu para ele de um jeito fofo. Parecia mesmo livre da culpa que a tinha transformado de maneira quase absoluta. O sorriso estava fácil novamente e ela parecia enfim ter reencontrado a paciência que sempre teve com Joaquim (e com Fábio também!). Não dava mais aquelas respiradas fundas, de quando está zangada.
Parecia até mais bonita. Fábio refletiu, enquanto a observava, que era como se ela amanhecesse cada dia mais bela. E ele, cada dia mais apaixonado.
- Vou fazer café. Dá tempo de comer? – ele pergunta, a caminho da cozinha.
- Não, eu quero chá. Tem chá, não tem?
- Acho que se tiver é muito velho, deve estar até vencido. Vou ver.
Ao entrar na cozinha encontrou o marido remexendo numa caixinha de papel, que cuspia erva. Alguma traça vinha tendo uma vida zen dentro dos saquinhos de chá. Fábio sorriu quando sacudiu um e viu que não estava furado.
- Bia, não quero ficar remexendo nesse assunto, mas eu já tinha marcado a consulta com a Beatriz. Eu vou até lá depois do trabalho para explicar que você está bem, que não quer ir, e que eu também não vou mais – ele diz, entregando para ela a caneca quente.
- Tá certo – Bianca responde, calçando os tênis – Hoje tem balanço no Viver, vou ter que fazer hora extra. Eu trago da rua alguma coisa para a janta.
Os dois caminharam de mãos dadas até o ponto do ônibus, que logo chegou. Fábio aproveitou que estava dentro do horário e parou na vendinha que tinha ali perto, para colocar crédito no celular. Conhecia o rapaz que trabalhava no local, tinha sido seu colega de escola, e trocou a recarga pela troca da lâmpada do pisca-alerta da moto dele, que tinha queimado.
Voltou para o ponto de ônibus e sentou, assim que o banco esvaziou. Enquanto discava o número que estava anotado no canhoto de uma nota fiscal, Fábio pensava que sua busca poderia ter um fim com aquela ligação. Bianca já estava bem, e poderia ficar ainda melhor, se a sua busca pelo irmão desconhecido acabasse agora.
- Oi, bom dia. Seu Antônio? Oi, o senhor não me conhece, mas estive procurando pelo senhor – Fábio diz, assim que a ligação é atendida, depois de três toques. Por mais que tentasse falar pausadamente, o nervosismo fez com que suas palavras se atropelassem e ele terminou a frase com uma careta.
- O que é? – pergunta a voz grave, do outro lado da linha.
- É sobre seu filho, ele...
- O que foi que o Adriano aprontou desta vez? – interrompe o homem. Fábio imaginou que, pela voz, o homem era grande e corpulento. E bravo também.
- Nada, eu acho. Nada comigo, pelo menos – ele balbuciou.
- Olha, se ele aprontou alguma coisa, eu sinto muito. E sinto mais ainda em dizer que os problemas dele, são só dele, tenho nada que ver. Já cansei de ficar me aborrecendo com as molecagens dele. Ele não cresce e eu que tenho que me chatear? Não, não senhor. Se ele bateu no seu carro, sinto dizer que ele não vai pagar o conserto. Se ele mexeu com a sua namorada, cuidado para ele não a roubar de você. Se ele contraiu uma dívida contigo, meu amigo, você foi passado para trás...
- Sim, entendi – Fábio resmunga, com uma ruga enorme marcando a testa – Faz assim... Esquece! Faz de conta que nem liguei! Tenha um bom dia, adeus.
Desligou o telefone e caminhou pensativo até a oficina. Se aquilo não era um sinal, o que mais seria? Se aquela era a pessoa que ele tanto procurava, era melhor mesmo não encontrar. Beatriz tinha razão quando disse que achar esse irmão poderia trazer problemas e não soluções. E Fábio definitivamente não queria aborrecimentos para Bianca. Ela não o perdoaria jamais e ele, muito menos.
Passou o dia, de muito serviço, pensando no assunto, se sentindo até um pouco ingênuo, mas igualmente de sorte, porque tinha brecado a tempo. A caminho do consultório, aproveitou o tempo no ônibus para refletir mais um pouco, e no que diria logo mais à Beatriz. Não gostava de ir direto do trabalho para lá, mas sentia-se na obrigação de explicar pessoalmente o que o havia feito tomar a decisão de não a encontrar mais. E não podia adiar aquela conversa.
Tinha tirado o máximo possível da graxa que tinha nas mãos, e no elevador reparou que embaixo das unhas ainda estava com sujeira. Sentiu-se envergonhado e durante alguns segundos, ainda nos primeiros andares de subida, considerou a possibilidade de ir para casa. Não era agradável chegar todo imundo àquele consultório decorado de maneira tão elegante.
Enfiou as mãos nos bolsos e dirigiu-se à recepção. Cíntia o cumprimentou com um sorriso e pediu para que ele aguardasse. Disse que Beatriz estava terminando uma consulta, mas o atenderia em alguns minutos.
Sentado no sofá macio e florido, pela primeira vez ele reparou em tudo o que havia à sua volta. Imaginou que talvez nunca tivesse notado aquelas coisas antes, pois sempre que ia até ali estava com preocupações demais na cabeça para olhar e observar as coisas.
Reparar, então, era até um sinal da sua melhora, também! Talvez começasse a conversa com a médica por esse ponto; pareceu um bom argumento! Só não revelaria que, até ali, ele jamais tinha observado algo no ambiente que vinha frequentando. Pareceu ingratidão, e Fábio olhou para os lados, como se alguém o vigiasse – ou aos seus pensamentos.
Observou a mesa da recepcionista, no fundo da sala ampla, bem na quina das paredes. Cíntia estava concentrada em algo que lia no computador, e parecia sorrir. Ela usava um uniforme de um tom azulado, que combinava com a cadeira. À sua volta havia diversos vasos de tamanhos diferentes (a maioria de vidro, transparente), com plantas igualmente distintas. Pareciam orquídeas, mas Fábio não era muito entendido nessas coisas. Mas já tinha visto flores parecidas no mercado, algumas custando uma pequena fortuna.
Pensou que, talvez, aquelas plantas ali fossem intencionais. Como tudo na decoração, parecia ter sido algo pensado, planejado. Por um instante, imaginou Beatriz escolhendo a cor das cortinas, o tom que usaria nas paredes, se teria três ou quatro sofás. Mas descartou o pensamento, porque lhe pareceu que a mulher não era sensível o suficiente para se preocupar com cores, ou tons. Certamente teria desembolsado uma grana com algum decorador, depois de se inspirar nesses ambientes que aparecem em revistas que ficavam à disposição em lugares justamente como aquele consultório.
Fábio reconheceu que as flores combinavam com as enormes paisagens expostas nas paredes, em fotos de cachoeiras, rios e praias. Era quase possível ouvir aquele cômodo inteiro sussurrar “relaxe”. “Propício para uma sala de espera de malucos”, ele pensa, rindo por dentro.
Mas se percebeu relaxado, e estava com o pensamento longe quando ouviu de repente vozes alteradas, vindas da sala de Beatriz.
No momento em que se indagava sobre o que poderia estar acontecendo, aquele vozerio todo atrapalhando a calmaria da decoração, a porta se abriu com um estrondo e bateu forte na parede. O consultório inteiro pareceu tremer com o barulho.
- Por favor, beba uma água, se acalme e veja com a Cíntia se tem algum horário livre para você voltar ainda esta semana – Beatriz fala, logo após o barulho, saindo da sala acompanhada por um homem – Jonas! – ela chama – Essa semana!
Fábio nota que apesar da visível confusão que envolvia o homem de rosto vermelho à sua frente, Beatriz demonstrava uma incrível calma. Falava pausadamente, num tom de voz firme, seguro, e sem desviar os olhos do paciente descontrolado, em momento algum. O único gesto, ele percebeu, foi tirar a franja que caiu na frente dos olhos – mas nesse momento ela nem piscou.
- Não vou marcar retorno. Não volto mais aqui! –o homem grita.
Mesmo um pouco assustado, Fábio reparou que Beatriz não moveu um único músculo. Será que ela não tinha percebido que o homem era duas vezes maior que ela?
- Sim, você vai marcar retorno. E voltará aqui assim que tiver horário livre, Jonas. E sabe por quê? Porque estou te pedindo isso. E só peço porque sei que é para o seu bem, porque é fundamental para a sua melhora. Eu quero te ver bem.
- Eu não volto mais! – Jonas grita, mas deu um passo para trás, vendo Cíntia se aproximar. A secretária também aparentava estar calma, e estava ali para acalmar o sujeito, não para confrontá-lo.
- Cíntia! Por favor, veja quando o Jonas pode voltar aqui – Beatriz pede, dando as costas para os dois e fechando a porta da sua sala, de maneira delicada.
Com os olhos arregalados, Fábio viu o homem gritar mais algumas palavras, direcionando a voz para a sala de Beatriz. Estava sinceramente preocupado com a possibilidade de o cara resolver entrar lá, e ficou um tempo parado ao lado do bebedouro. Para ele, Beatriz era frágil e a possibilidade de levar uma surra era grande. Ficou pensando em como seria se precisasse intervir – porque interviria, obviamente.
Mas Jonas acalmou-se. Quando foi chamado para entrar, alguns instantes depois, Fábio viu que o homem chorava, preocupado com a possibilidade de Beatriz nunca mais querer vê-lo. Por mais que Cíntia o convencesse de que a médica iria sim, atendê-lo novamente, o homem soluçava como uma criança.
Ao entrar na sala, ficou admirado ao ver que a mulher sentada à sua frente aparentava estar absolutamente normal. Parecia, até, que nem tinha acontecido aquela cena toda alguns minutos atrás. Ele mesmo ainda estava um pouco meio assim!
- Acho incrível você não se abalar! – ele exclama, sentando-se. Estava realmente surpreso, e isso era perceptível na sua feição.
- Não é tão incrível, se você imaginar a mesma situação acontecendo com você – ela responde, sorrindo amigavelmente.
Fábio achou que alguma coisa parecia ter acontecido, e Beatriz estava até mais bonita. A achou com o semblante mais leve, e mesmo sentada, dava a impressão de estar mais alta.
- Ou você se abala, sempre que alguém te confronta no trabalho? – Beatriz quis saber.
- Bom... – Fábio não soube o que responder. Até porque não se lembrava de já ter acontecido algo do tipo alguma vez.
- Pense da seguinte maneira: imagine que você passa a tarde inteira consertando o motor de um carro. Quando termina o trabalho, na hora de dar a partida, o carro liga, mas engasga sempre que troca a marcha. Isso significa que algo saiu errado, não é?
- Ou que tem algum outro problema causando a falha.
- Exato! – ela sorri novamente. Remexia em alguns papéis em sua mesa, mas olhava para ele a todo instante – O que aconteceu lá na recepção agora há pouco foi exatamente isso. Eu tentava convencer o dono do carro a vir novamente à oficina, para eu poder terminar o serviço. Não quero que ele engasgue nas marchas.
- Sei, mas é que lá na oficina nenhum cliente dá sinais de que vai partir para a agressão.
- Ah, mas nem aqui. O Jonas é inofensivo – ela comenta, levantando-se e caminhando até a pequena geladeira.
- Mesmo assim. Duvido que seu marido fique tranquilo, imaginando a possibilidade de você apanhar de algum paciente.
- Certo. Bom, se eu tivesse um marido, não penso que ele se preocuparia com esse tipo de coisa. Para estar casado comigo, em primeiro lugar ele teria saber que eu sei me defender – ela responde, sentando-se novamente. Colocou à sua frente dois copos coloridos cheios de suco e notou que Fábio a olhava, descrente – Não acha que eu saiba me defender?
- Não é isso! – ele se desculpa, sem graça – Mas é que as mulheres em geral não sabem.
- “Mulheres em geral” – Beatriz repete, pensativa. Tomou um golinho do suco e anotou algo que Fábio não conseguiu ler – Me fale sobre isso.
- Não tenho nada para falar – ele alega, meio na defensiva. Por que os olhos da psiquiatra brilhavam tanto? – Só falei por falar.
- Não penso assim. Na minha opinião, você julga que todas as mulheres estão sempre em risco e são frágeis demais para se defender sozinhas. Todas as mulheres ou, as “mulheres em geral” – Beatriz usou um tom diferente, e Fábio arqueou uma sobrancelha – precisam de um marido forte, sempre por perto, para protegê-las e salvá-las. Afinal, o mundo é perigoso, elas podem apanhar em qualquer lugar. Até, sei lá, durante o expediente, no trabalho delas.
- E não é o correto? Não é isso que acontece?
- Não, Fábio, não é – Beatriz responde, bebendo outro golinho. Estava com as mãos firmes, como sempre sem anéis ou pulseiras – Sabe, as coisas mudam, a sociedade evolui, os homens não andam mais por aí segurando um tacape.
- Sei disso – Fábio ri, mas vê que ela permanecia séria.
- Hoje em dia, as mulheres não precisam mais se casar, seja para se sentirem protegidas ou por qualquer outro motivo que ao longo da história obrigou muitas a se casarem contra a sua vontade – Beatriz continua, didaticamente – Além de a presença de uma figura masculina não ser mais “obrigatória”, ser casada não evita (nunca evitou!) que algo de ruim aconteça a uma mulher. Não quero nem quero entrar no mérito de que há muitos casos em que as mulheres são agredidas pelos próprios maridos, pelos seus companheiros, por aqueles que deveriam defendê-las, como você diz, e muitas morrem, em crimes tipificados como feminicídio.
- Que é um termo novo, modinha...
- Para um tipo de crime antigo – Beatriz interrompe, ao ver Fábio virando os olhos – Mulheres são assassinadas porque são mulheres, porque sofrem discriminação de gênero. São vítimas de misoginia, que nada mais é do que o ódio, a aversão, a mulheres, ou seja, é um distúrbio de comportamento. Eu entendo um pouquinho dessa área.
- Tá, tudo bem. Já sabem se defender, não precisam mais se casar se não quiserem, mas as mulheres ainda precisam dos homens – Fábio continua, divertido.
- Fábio, você sabia que o machismo é a principal causa dos feminicídios?
Beatriz recosta-se na cadeira e observa o rapaz. Era novo, ela sempre ficava triste quando via pessoas jovens agarradas a conceitos tão antigos. Não imaginou que um ocorrido na sala de espera fosse a deixa que precisava para conversar sobre algumas questões com ele. Há dias que ela pensava na última conversa que tiveram, e era seu dever esclarecer alguns pontos. Fazia parte do seu trabalho.
- Você fala de um jeito... a escolha das suas palavras é muito interessante – ela diz, também escolhendo bem o que dizer – Me passa a impressão de que você realmente acredita que o homem é superior à mulher, seja por fragilidade, seja por...
- Nós somos fundamentais para a continuação da espécie – ele interrompe, como se lembrasse de repente de um argumento mais consistente.
- “Nós” – Beatriz repete, balançando a cabeça – Há muito tempo eu adquiri uma “alergia” a generalizações. Porque generalizar é muito, muito complicado. A partir do momento em que você fala “nós”, você se responsabiliza por todo homem que habita o planeta. Veja que, muitas vezes, ser responsável pelos seus atos já é complicado, já é muita coisa. Imagine então ser o responsável por tudo de errado que os outros fazem. Talvez você não queira isso para você!
- Não quero. Então, digo por mim: sei que eu sou fundamental para dar continuidade à minha família.
Fábio se sentia numa espécie de jogo de gato e rato. E isso porque sua intenção foi elogiá-la! Ele gostou da conduta da médica diante de um homem de quase dois metros, enfurecido, gritando com ela, e quis ressaltar a sua tranquilidade, a sua condução diante do fato. Mas parecia que Beatriz tinha levado para o pessoal, e ficava o encurralando.
Ele só queria dizer que não ia mais se consultar, mas percebeu que teria que atravessar um longo caminho, ali naquela sala, até conseguir o seu objetivo.
- Sim, você é fundamental para a sua família. E tão simples quanto isso é o fato de que muitas mulheres nunca vão ter você, e nunca darão continuidade à sua família.
- Pode ser. Mas precisarão de outro homem para isso.
- Ou não! Muitas não pretendem engravidar. Muitas preferem adotar órfãos. Muitas são lésbicas (e as que engravidam, não o fazem necessariamente da maneira como você pensa). Muitas inseminam. As possibilidades são múltiplas, variadas. Os tempos mudaram, lembra?
- Ah, doutora. Eu sei que você quer puxar sardinha para o seu lado, porque você é mulher, e eu já ouvi esses papos de que mulher ajuda mulher, mas o que eu quero dizer é que o macho é a peça-chave para qualquer civilização, qualquer sociedade. Em qualquer época!
- “O macho” – Beatriz repete, colocando a caneta de lado.
Ela se esforçava ao máximo, sempre, para não transparecer jamais o que sentia, o que pensava. Estava fora da caixa de sapato, afinal. Mas era humana, e certos assuntos, para Beatriz, eram espinhosos. Sem pensar direito, num momento de guarda baixa, levou a mão à têmpora, quando a cabeça começou a doer.
- Eu acho que o mundo está é ficando muito chato. Não se pode falar mais nada que ofende, tudo é mimimi. Nem piada tem mais graça.
- Fábio, eu tenho vontade de te pedir para me dizer exatamente o que você quer dizer com tudo isso, essa é uma conversa que eu adoraria ter com você, de verdade. Não porque eu sou mulher, mas talvez justamente por isso, sim. Mas não vamos ter tempo para eu explanar tudo o que seria necessário, e não quero que uma conversa tão importante como essa, seja rasa. Então esse papo vai ter que ser numa outra hora, em outro momento. Vamos otimizar nosso tempo, sermos objetivos e focar no assunto que é mais importante: sua esposa. Você disse que a traria aqui hoje.
Fábio só a observa. Em momento algum imaginou que estava sendo examinado. Sempre teve a impressão de que suas conversas eram um simples bate-papo (não teriam sido?). Beatriz o encarava serenamente e, como sempre, demonstrava absoluta calma. Não tinha nenhuma expressão no rosto, exatamente, nada que pudesse dar alguma mostra do que estava pensando. Só piscava, e o encarava, aguardando.
- Conversei com a Bia. Ela não quer vir aqui conversar com você e se consultar, e eu estou de acordo.
- Tudo bem. Você quer me falar o que a levou a tomar essa decisão?
- Ela está bem, dona Beatriz. Muito bem, por sinal. Voltou a dormir, o humor não oscila mais... Voltou a ser ela.
- Mas? – Beatriz pergunta. Tinha bastante experiência e sabia sempre quando a pessoa precisava de uma motivação para dar continuidade à determinada narrativa. Ou sentia receio de falar a verdade (que parecia ser o caso).
- Eu comentei com ela algumas das coisas que conversamos na última sessão. Ela reparou que eu estava intrigado e acabei contando sobre a minha preocupação de um dia o Joaquim virar gay.
Beatriz contrai os olhos e fixa o olhar em Fábio. Tentava, mentalmente, refazer exatamente o caminho que haviam trilhado no último encontro, e como tinham chegado naquele ponto. Deu uma rápida olhada para o caderno em que fazia anotações, e sua expressão voltou ao normal quando ela pareceu ter recordado a questão abordada.
- Nós nunca dissemos que o seu filho “viraria” gay – ela lembra – Talvez você tenha feito uma leitura diferente do que foi dito naquele dia. Por favor, me diga o que entendeu, para que eu possa esclarecer.
- Não entendi nada errado. Eu diria que foi exatamente o oposto disso. Na verdade, a nossa conversa me fez refletir, e muito. E eu cheguei à conclusão de que não acho certo, não quero que meu filho seja gay, mas sei que preciso respeitar, é a opção de cada um.
- Não, não é opção. Estamos falando de orientação sexual, que é muito diferente. Não existe uma orientação certa e uma errada, vamos deixar isso bem claro, porque eu acho importante – Beatriz mantinha o tom de voz calmo e tranquilo – Respeito, Fábio, é um pressuposto de qualquer sociedade; é uma obrigação de todas as pessoas, não um favor. Não existe nenhum mérito em dizer que não aceita, mas respeita. Além disso, achar que não é certo um determinado tipo de relacionamento nada mais é do que juízo de valor. Classificar as pessoas como boas ou más, certas ou erradas, segundo a sua orientação sexual, é homofobia. Note que nem precisa de violência para se enquadrar como crime. Você lembra do que me disse no nosso último encontro?
- Eu disse que era capaz de bater no meu filho, se um dia ele me dissesse que é bicha – Fábio responde, meio cabisbaixo, nitidamente envergonhado.
- Isso. Recordo, inclusive, que você disse que o “espancaria”, se um dia ele se assumisse gay. A palavra escolhida foi essa – Beatriz observou o rapaz emudecer por alguns instantes, olhando para as próprias mãos – Imagine você revelar, sem pudor, sem papas na língua, que espancaria o seu filho, que você alega amar, porque ele nasceu, por exemplo, com o olho de uma determinada cor. Ou com o cabelo liso, e não enrolado. Foi isso o que você disse que faria com o Joaquim.
- Sim, você tem razão. Eu reconheço que, como todas as demais coisas que você falou até aqui, você estava certa. Eu estava errado. E graças a isso, no caminho para casa depois da última sessão, fiquei pensando nessas coisas. Não quero nunca magoar meu menino, e como aquilo ficou na minha cabeça, acabei comentando com a Bianca.
- Certo. E então? – Beatriz viu Fábio engolir em seco, apesar do suco à sua frente, que permanecia intocado.
- Então que conversamos sobre tudo isso, o tratamento, fiz questão de sempre falar que fazia bem, que seria bom, e até que estava tudo certo, ela disse que viria, parecia disposta. Mas hoje, depois de listar alguns motivos que a impedem de vir aqui, ela comentou que não quer se aborrecer. Disse que esse assunto de gays a aborreceria.
- Fábio, isso é muito complicado. Em momento algum foi dito aqui que eu falaria sobre esse assunto com ela. Na verdade, nós só tocamos na questão porque quis que você entendesse que encontrar com o irmão da sua esposa poderia acarretar o surgimento de problemas que ela teria que enfrentar, graças à sua descoberta. E conhecer um irmão homossexual, entre várias possibilidades, poderia ser uma das questões que ela poderia ter que confrontar. E que você disse que seria um problema.
- Sim, sim. Eu sei – Fábio responde. Notou que, apesar de não ter movido nem mesmo um dedo, ou alterado o tom de voz, Beatriz estava chateada este por ter sido o motivo do cancelamento – A Bia está bem e acho que isso é mais do que suficiente. E eu também já desisti de encontrar com o tal irmão. Não vai valer a pena e mais uma vez você tinha razão: encontrá-lo pode trazer problemas.
- Eu fico feliz que ela esteja bem. E fico tranquila por saber que você entendeu o risco de trazer esse irmão para a vida de vocês. Mas me preocupo muito com o julgamento errado que ela pode estar fazendo de mim, e do tratamento que proporciono. A homofobia é crime e quase uma patologia, mas só falo isso para quem precisa ouvir. Não pretendia tocar nesse assunto com ela, a menos que julgasse necessário. Me aborrece muito imaginar que ela tenha desistido de me procurar por esse motivo.
- Não, por favor, não se preocupe com isso! – Fábio interrompe. Assim como previu, ela estava chateada – A Bia sabe, tanto quanto eu, que você foi fundamental para a melhora dela. E nós vamos ser sempre gratos a você, doutora.
- Não estou tão certa de que posso me tranquilizar – ela diz, bebendo mais um pouco do suco.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Andreia
Em: 08/11/2021
Boa tarde autora tô adorando e sinto po prazer em estar tv com vc.
Bom pelo jeito depois desta conversa tensa e complicada e que á Beatriz teve com o Fábio sobre a homofobia dele, ela teve q se segurar muito para não falar p ele o q tinha vontade. Quero só ver hora que ele saber que ela é lésbica e principalmente hora que descobrir que elas são irmãs.
Só quem passa o preconceito que já começa em nossas casa onde a gente deveria receber apoio e principalmente nem aceitação sim o respeito em nossa vida e nem isso nos temos né. E o engraçado desta sociedade que nos lésbica gay e etc... nós temos q dar a aceitação e respeito pq é cobrado isso nosso mais não recebemos de volta né, e está história linda vem mostrando isso para nós e muito mais profundo sobre o q todos nós passamos.
Tomará que hora que está verdade aparecer os dois tanto Bianca e Fábio esteja vendo a vida de modo diferente e saber que nós somos seres humanos como os heteros e pagamos os mesmo impostos e vivemos da mesma forma com qlq ser humano no mundo.
Aínda não tive uma idéia como elas vão descobrir está verdade.
Quando será que Beatriz vai fazer o pedido de casamento p Fernanda de verdade e para ela dizer sim. A família da Fernanda parece ser gente muito gente fina.
Vamos bora lar ler mais ..
Abraços nossos......
Resposta do autor:
Oi, querida!
Vou começar respondendo do final:
A família da Fernanda é, sim, mto fofinha, inclusive o capítulo que a Bia vai até a casa deles é o meu preferido, no livro todo.
A verdade do parentesco vai ser descoberta a conta gotas, logo mais vc chega nessa parte <3
E Beatriz é muito elegante, aposto que não transpareceu o desgosto em ouvir o Fábio de nenhuma forma rs
Esses dias eu li a entrevista de algum gay famoso (que já me esqueci quem era rs), e a pessoa comentava sobre essa necessidade que nos é imposta, de nos assumirmos. Fiquei refletindo sobre isso... hétero não se assume em nada, mas querem que a gente faça isso rs
Infelizmente, nos tempos sombrios que vivemos, a homofobia está bem em destaque (lembrando que originalmente essa história foi criada em 2007). A impressão que eu tenho é que caminhamos para trás!
Eu esperava carros voadores em 2021, não discutir que a terra é redonda, ou que o amor salva!
Olha... dá-lhe literatura lésbica pra salvar a gente desse caos, viu rs
Beijos, boa leitura pra vcs! <3 <3
kasvattaja Forty-Nine
Em: 04/06/2021
Olá! Tudo bem?
Gosto da sua escrita — mas isso eu já falei, quer dizer, escrevi —, no entanto as coisas que lá no começo de essa sua história parecia que logo, logo nós iriamos ver algo mais concreto e objetivo nos relacionamentos, ainda não aconteceu.
Como suas histórias não costumam serem muito longas, começo a ficar um pouquinho temerosa — ou seria impaciente? — com os personagens e seus destinos.
É isso!
Post Scriptum:
''Nada é tão fatigante como a indecisão e nada é tão fútil. ''
Bertrand Arthur William Russell,
Matemático, Filósofo, Ensaísta E Historiador.
Resposta do autor:
Oi, querida dona 49! Eu estou bem, e espero que vc tb!
Este é um livro grande, ele tem 50 capítulos. A história em si, é objetiva, acredito que vc já até tenha sacado o que é que amarra tudo. A questão é só que até o o capítulo final há acontecimentos que temperam o enredo (espero que com bom tempero, não com temerosidade ou impaciência rsrs).
Quero te tranquilizar pq há um fim, os personagens serão encaminhados, e com amor.
Amor Incondicional é um livro à parte dos meus escritos, talvez devido ao tamanho, à narrativa mais lenta, à morosidade nos eventos. É uma história que aborda muito mais a complexidade dos personagens (temos até uma psiquiatra!) do que os cenários em que eles transitam, ou os eventos a que estão sujeitos, por exemplo.
Sempre foi meu livro preferido msm assim!
De coração, desde o incício a minha torcida é para que vcs gostem!
Se eu falhar, saiba que tentei!
Um beijo!
[Faça o login para poder comentar]
amoler
Em: 03/06/2021
Tu escreve muito, mas MUITO bem.
Tua obra é impecável e eu não tenho nada a criticar do teu trabalho. Mas realmente não é o MEU estilo de leitura.
PARA MIM é muito foco e espaço para o casal hétero. Achei que acabaria logo, se separariam ou o Fábio morreria, e não aconteceu. Ao que parece ainda vai longe e ler sobre relação hétero me da preguiça porque eu sou hétero. Não me atrai ler sobre algo que eu conheço.
Gosto de ler o inédito. Gosto de ler e sentir curiosidade, aflição, ficar sem saber o que virá, mas lendo sobre casal hétero nada disso acontece. PARA MIM não funciona. Eu não "entro" na obra. Aí a leitura não fica prazerosa PARA MIM.
Se tudo girasse em torno da Fernanda e Beatriz, com aquela irmãzinha, Talita, causando bagunça, eu piraria de felicidade. Ali é onde algo existe. Ali está o inesperado. Naquele "núcleo da novela" eu não consigo imaginar nada do que vai acontecer. Já no do Fábio e Bia eu já imaginei uns 30 conflitos e soluções para todos eles.
E o outro ponto, menos importante, é que é muita descrição e poucos diálogos. Eu me senti relendo os livros do George R. R. Martin, do Game of Thrones. Acho que ele me traumatizou. Quando vejo muitos parágrafos sem diálogos já saio pulando tudo. Por isso que li todos os seus capítulos nessa tarde.
Novamente, sua escrita é absurda de boa e foi apenas os estilos que não bateram (o seu de escrever e o meu de ler).
Bom trabalho.
*Se eu pareci babaca, peço desculpas.
Resposta do autor:
Olá!
Vc disse muitas coisas, fiquei pensando por onde deveria começar.
O primeiro ponto, acredito, é que esta é uma história para lésbicas. Esse é o meu público-alvo. E minhas leitoras, em sua maioria, sabem como é sofrível a tal da homofobia.
Homofobia é o tema central da história deste livro, além do amor, de todas as formas.
Para tratar a homofobia, infelizmente preciso enfiar héteros sem noção no enredo. Gosto? Não, mas sem eles não há história!
Beatriz e Bianca são as personagens principais deste livro. Se não tivesse o "núcleo" HT, seria só mais uma história de duas minas que se conhecem, se apaixonam, se separam, em algum momento se casam... e há várias histórias assim, aqui no Lettera, inclusive, e minhas tb!
Tenho um livro que fica disponível aqui na plataforma até o fim do mês que é basicamente isso (e é uma história fofinha, que eu amo).
Para essa, porém, o enredo é esse. Então, além das meninas adoráveis, há os hétero chato que estragam qualquer rolê.
Entendo que não se atraia pelo o que conhece, que esse universo heterossexual é o que você está inserida (sinto muitíssimo por isso!), e que por isso não há novidades quando lê sobre casais de homem e mulher, mas quanto a isso não tenho muito o que fazer... A não ser desejar que vc encontre histórias à altura!
Quanto aos parágrafos longos, e o pouco diálogo, é uma pena que vc não tenha lido!rs A narradora desse livro é quase uma personagem extra!
Te desejo muita sorte, nesse mundo, e no mundo literário tb!
Muito amor no seu coração, sempre!
Um beijo!
P.S.: se ainda tiver uma chance, indico que leia meu livro Sorte e Sol. É bem sapatônico rsrs
[Faça o login para poder comentar]
cris05
Em: 03/06/2021
Caraca, Bia Beatriz se segurou foi muito. Jesus!
Fábio, meu filho, me ajuda a te ajudar. Essa conversa foi osso, viu.
Cícera, querida, dá um pulinho lá na casa de Bia Bianca e Fábio pra ter um dedinho de prosa. Nunca te pedi nada.
Beijos!
Resposta do autor:
Hahahahaha
Queria mto fazer um comentário, mas seria um spoiler TÃO ABSURDO que estragaria a história hahahaha
A conversa foi osso msm. Ela se segurou pq ela é profissa! Mas deu o recado, né
Beijos!
[Faça o login para poder comentar]
Marta Andrade dos Santos
Em: 03/06/2021
Complicado!
Resposta do autor:
Né!
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]