A história não se apaga numa guerra
“Agora arranje nossa casa”, Seul me ordenou. Como eu não arranjaria? Com a guerra nós conseguimos riquezas, e herdamos todo o ouro e prata que o povo do mar possuía, então dividimos entre todos. O único privilégio que eu e meus irmãos tínhamos, era escolher a casa primeiro. Vigur e Volinüs escolheram as casas maiores perto da praça central, Vaanë preferiu se manter num local estratégico, num lugar elevado ao sul da praça, que dava visão privilegiada dos portões. Eu estava parada de frente a uma casa que descia a rua em direção ao mar Vaemerf, não havia casas ao redor, era uma região reservada, com um amplo jardim e uma passagem privada para a praia. A neve estava bem recuada da trilha até a entrada da casa, que se encontrava bastante conservada. Aquela tinha sido uma casa da família Vondelür, a principal. A casa de minha família ficaria com Veegan, eu tinha certeza, e era o certo a se fazer, eu nem me incomodava.
Eu sempre via essa casa no topo do morro, e nunca podia ver de perto porque havia guardas por toda a parte, e não permitiam que ninguém se aproximasse. Sempre quis ver de perto. E agora tinha a chance de finalmente fazer isso. Então Alinü saiu de dentro, e ao contrário de mim, não pareceu surpresa em me ver ali, assentindo na minha direção e parando pouco à frente da casa, sinalizando para que a seguisse.
—Eu estava começando a achar que não participou da guerra. — Comento, encontrando sangue nos seus trajes, mas nenhum ferimento grave.
—Não tive uma grande participação. — Disse sem qualquer vergonha. — Eu me defendi mais que ataquei. Não serei motivo de comemoração, sei disso.
—O que aconteceu? Nunca imaginaria que você não gostaria de batalhar.
Entramos na casa finalmente, e eu não me controlei em olhar ao redor. Havia móveis derrubados na correria que deveria ter sido durante a batalha, com sangue ainda espalhado no piso e nas paredes. Seguimos em silêncio, passando pelo grande salão principal com móveis bem feitos, com um lustre que brilhava.
—Eu não estava pronta. — Ela falou depois de muito tempo, quando virávamos para a esquerda, onde havia uma escadaria que levava ao segundo andar, que começamos a subir. — E eu não tinha motivos para lutar.
—Nem mesmo para possuir um lugar desses? — Sinalizo a casa, mas ela balança os ombros.
—Vivíamos num castelo. Depois passamos por várias casas grandes.
—Mas essa é uma casa especial. Pertenceu a família principal, aos Vondelür.
—E onde eles estão agora?
—Mortos. Então provavelmente nós assumiremos esse posto e elegeremos uma família secundária.
—Para que serve essa hierarquia de famílias? Não cria mais conflitos?
—Não. Nos respeitávamos acima de tudo. Ao menos, nunca soube de conflitos com essa motivação. — Faço uma pausa quando finalmente chegamos ao andar superior, onde havia várias portas escancaradas, quase que como um convite para explorarmos dentro, mas eu sabia que tudo tinha sido explorado em busca de riquezas escondidas. — A hierarquia servia para manter a população organizada. Para não haver guerras entre nós. A família principal dependia da segunda para manter sua influência e a paz, mas acima de tudo, para se manter. Não há primeiro lugar sem um segundo.
—Então viveríamos numa monarquia, como os cristãos. — Raciocinou, e eu movo a cabeça para concordar.
—Por que acha que não estava pronta?
—Acho que ainda tenho muito o que aprender. Eu vi a experiência dos meus tios durante a batalha, e soube que eu não estou à altura.
—Ainda. Mas é só questão de tempo. Eu manterei minha palavra. — Olho para ela, falando com firmeza.
—Eu sei que sim. Por isso queria te pedir uma coisa. — Esperei que ela continuasse, e ela se moveu inquieta no mesmo lugar antes de continuar. — Eu ouvi falando na cidade que você quer poupar as últimas crianças. Então tomei a liberdade de trazer as últimas que restavam. — Ela foi até uma janela e eu a acompanhei até o final do corredor, olhando para o jardim dos fundos, onde deveria haver dez crianças sentadas juntas na grama, sendo quatro pequenos o suficiente para serem carregados no colo.
—Estou surpresa que você tenha se dado ao trabalho. E surpresa que os tenha trazido aqui. Eu não disse que ficaria com essa casa.
—Quando eu vi, simplesmente soube que era sua casa. É o tipo de casa que ficávamos enquanto viajávamos. — Ela sorriu melancólica. — Não acho que outra pessoa escolheria esse lugar.
—E o que gostaria de me pedir?
—Eu quero que escolha um deles para ser seu segundo filho, e que me deixe criá-lo.
—Não é assim que funciona. Você é minha primeira filha, não é seu dever criar um filho meu. Seu dever é aprender a assumir meu lugar.
—Eu sou uma bastarda, todos sabem disso. Eu seria sua filha legitima se você tivesse se unido ao meu pai. — Eu fiquei em silêncio, ela tinha razão, mas não sabia que ela tinha pesquisado sobre nossos costumes. — Vigur me contou. E também me disse que seu primeiro filho legitimo será aquele que está no ventre de Seul.
—Você é minha primeira filha legitima, Alinü, porque eu te criei assim, e porque seu pai está morto. Mesmo que quisesse me unir a ele, não poderia. Ele já não estava em sua forma altiva quando realizou o ritual. Não duraria muito tempo. Então não diga bobagens. Se quer uma criança, você pode escolher. Seria honrado de sua parte fazê-lo.
—Se eu fosse sua filha legitima, o filho de Seul teria que ser entregue a um de seus irmãos, e eu não acho que ela queira isso. — Então voltou a olhar pela janela, para as pobres crianças que estavam atordoadas com a noite de terror que tiveram. — Eu sou uma bastarda, igual eles serão, porque os pais morreram. Então eu cuidarei daquele que você nomear seu segundo filho.
—Por que você quer isso? Criar um filho tiraria seu foco em se tornar líder.
—Isso pode esperar. Deixe Veegan assumir a liderança como sempre lhe foi prometido. Nossa luta pode esperar, sei que ainda tenho um caminho a percorrer até cogitarem me aceitar como líder. — Então me olhou com determinação. — E sei que seguirei o caminho certo se puder cuidar de algo seu.
—E por que não de algo seu? — Olho pela janela, para cada criança em potencial. — Eu iria adorar ter um neto.
—Quando eu tiver um filho, quero que nasça do meu ventre, para que meu sangue e meu legado sigam adiante, como você fez.
—E como você pretende criar um filho meu? Afinal, será um bastardo, e não alguém do meu sangue.
—Mas será da sua família, e eu o tornarei digno de herdar seu nome, como espero que serei um dia. — Ela segurou ambos meus ombros, atraindo minha atenção para o seu rosto sério. — Eu o tornarei forte e habilidoso, e quando tiver idade, você testará suas habilidades. Se ele passar por sua aprovação, então terei cumprido com minha palavra.
—É o que você realmente quer?
—Sim. É o que quero.
—Eu falarei com Seul. Um filho meu também é um filho dela agora, e eu não posso decidir isso sozinha.
—Eu posso esperar, e se necessário, falarei com ela também.
—Por enquanto fique nessa casa e cuide dessas crianças. Os serviçais logo devem chegar para limpar a casa. Tenho certeza de que há quartos para todos. — Deslizo um dedo na sua bochecha, acariciando sutilmente. — Só se certifique de que nenhum fuja.
—Claro. Nenhum vai embora. Eu prometi comida e uma cama para passarem a noite. Eles não irão a lugar algum.
—Amanhã eu retorno. Tenho que me reportar a Veegan.
Beijo sua testa, olhando para as crianças uma última vez antes de sair da casa, voando de volta para os Montes Gelados. Encontrei graahkinianos lá, que relataram abrigar crianças e jovens que fugiram do confronto na última noite, então mandei que as mantivessem. Veegan estava no salão de Arin, tomando o desjejum, mas se levantou e veio me abraçar de maneira respeitosa, sorrindo quando segurou meus ombros.
—Você trouxe vitória para a nossa família, irmã. Graah vai lembrar disso e abençoar seus filhos.
—Então concederá força para trazermos mais vitórias nas próximas gerações. — Completo, segurando seu rosto e encostando nossas testas por um instante, porque sabia que era tradição. Em muitas lutas nosso pai retornava para casa e seus irmãos executavam o mesmo cumprimento.
—Estou orgulhosa de você.
—Eu não teria conseguido sozinha. — Digo mais séria, afastando um passo. — E também não estaria aqui agora.
—O que está dizendo? — Seu cenho franziu.
—Eu tive uma visão, e eu morria nessa guerra. Mas Seul me salvou. Então antes que algum boato comece a rodar pelas ruas, foi Seul quem derrotou o líder do povo do mar.
—Seul? Você deixou sua esposa grávida ir à guerra? — A acusação estava explicita, mas não tentei mascarar os fatos.
—Seul não precisa de minha permissão para fazer nada. Ela teve o indicio de uma visão também, e quis impedir que acontecesse. Ela não teve qualquer ferimento. Mas como você sabe, não venceríamos essa guerra sem ter Seul como nossa aliada, e ela lutou pelo nosso povo, mesmo sabendo que está grávida. — Estreito os olhos na sua direção enquanto ela se remexia desconfortável no lugar. — E você sabe que ela merece reconhecimento acima de todos aqui.
—Todos viram isso acontecer?
—Era uma batalha, Veegan. Ninguém iria parar para ver uma única luta. Mas sim, há testemunhas.
—Você não torna minha vida mais fácil, irmã. — Ela voltou a se sentar, e sinalizou para eu fazer o mesmo, e eu o fiz, mas não tentei comer nada, estava cansada e só queria acabar com aquilo logo. — Os magos tiveram grande importância nessa guerra, não vou negar. E também admito que Seul é capaz de surpreender, de forma que acredito que ela tenha derrotado Trhoom.
—Ótimo. Seul merece ser reconhecida, depois de tudo. Dentre todos nós, ela é a criatura mais obstinada de todas.
—Ah, eu sei. Eu não seria louca em negar isso. — Ela acabou sorrindo, então sinalizou para que eu continuasse a falar.
—Então como deve imaginar, ela ficou horrorizada quando começamos a matar as famílias. — Ela moveu a cabeça, concordando.
—Todos ficariam, mas acredito que ela ainda mais.
—Sim. Então, eu decidi cancelar a ordem de matar todas as crianças, e as que sobraram Seul decidirá seu destino.
—Não deve ter muitas. Não vou me opor a isso. — Ela tocou a própria barriga. — Também não é do meu agrado. Se vocês garantirem que não estaremos criando inimigos em nossos tetos, não farei objeções. Contanto que todos eles saibam seus lugares e não sejam colocados acima de nossos filhos.
—Alinü pareceu me dar uma boa solução. Treinar as crianças e testá-los quando crescerem. Daria prova de sua lealdade.
—Bem, vamos pensar em algo.
—Ah, tenho certeza de que irá reconsiderar, agora que você tem um neto. Devo te parabenizar?
—Neto? Verg fez algum bastardo? — Seu nariz torceu em desgosto.
—Sim, com uma das esposas de Trhoom.
—O que?
—Todos já devem estar sabendo agora. O bebê está comigo e Seul, e a cerimônia será realizada em dois dias.
Dessa vez ela socou a mesa com força, mas a cor em seu rosto se perdeu, e eu respiro fundo enquanto ela pragueja o nome do filho. Eu imaginava a raiva que ela devia estar sentindo, porque o primeiro filho deveria seguir o exemplo acima de tudo, e não trazer vergonha para a família.
—Por que você não matou o bastardo? — Ela me acusou.
—Porque estaria matando seu filho junto. Ele teria lutado com nossos irmãos se eu fizesse algo. E todos são testemunhas que ele aceitou a união livremente. Não havia nada que eu pudesse fazer.
—Que matasse a desgraçada. Um bastardo não valeria nada. Verg ainda poderia ter um filho puro.
—Veegan, você está com raiva agora, mas a razão encontrará seus pensamentos depois. — Digo com calma. — Verg tem um filho legítimo. E vai concretizar a união. Você pode deserdá-lo se quiser, mas ele lutou com glória e fúria pelo nosso povo, mesmo não tendo presenciado a guerra que nossos pais lutaram, ele arriscou a vida pela causa como todos os guerreiros. Você tem motivos para se orgulhar dele. Você quer mesmo que o filho que carrega seja amaldiçoado por tomar o lugar do primeiro filho? — Ela não respondeu, mas continuou com raiva nos olhos. — Verg está sendo honrado em arriscar seu posto de primeiro filho por essa criança e por essa mulher.
—Você já falou demais pelo meu filho. Eu ouvirei o que Verg tem a falar, se ele tiver a coragem para isso. Se não tiver mais nada a falar, está dispensada.
—Há mais algo.
Levanto, contornando a mesa e parando diante dela, atraindo mais a sua atenção, como se fosse possível, e mais suspeitas ainda, dado seu temperamento difícil, deveria pensar que iria desafiá-la para ser líder no seu lugar.
—Eu fiz juramentos a Graah quando pensei que morreria. E um desses juramentos era me reconciliar com você. — Ela relaxou no assento, seus ombros caindo sutilmente. — Então eu decidi que não é justo ter inimizade com minha irmã por causa de seus sentimentos por minha esposa. Não lutarei com você por isso. Seul é livre, ela é doce, gentil, com uma astúcia invejável e uma força de vontade incansável. — Toco o cabo de Sopro da Morte e sorrio para ela. — Admiro sua audácia em tentar roubar minha esposa, Veegan. Mas eu confio nela e permanecerei ao lado dela, independentemente de quem ela escolha, sei que nosso elo será eterno, porque estamos juntas de várias formas. Então quero fazer as pazes com você e dizer que estou disponível se quiser manter uma relação comigo, irmã. — Estendo a mão para ela finalmente, que ergue as sobrancelhas em completa surpresa, mas também havia admiração no fundo deles, e talvez por isso ela tenha aceitado minha mão, apertando de maneira firme.
—Eu quero manter uma relação saudável com você, Vonü, desde do começo eu quis isso. E fico feliz que tenha enxergado isso agora. — Ela voltou a se levantar e me encarou de perto. — Você pode ter suas visões, mas eu sei, no fundo de minha alma, que terei um futuro com Seul, e por isso não vou desistir.
—Não cabe a nós decidir. Graah dará o mérito àquela que for a pessoa certa. E não é porque eu me casei com Seul que sou essa pessoa. Agora eu sei disso.
—Vonü? — Seul apareceu no salão, e sorriu quando nossos olhos se encontraram, eu sorri de volta. — Eu ouvi sua voz, então preparei seu banho. Venha se esquentar.
Olho uma última vez para Veegan antes de seguir Seul para nosso quarto, prendendo-a contra a porta tão logo a fechei, distribuindo beijos pelo seu pescoço enquanto a ouvia rir em surpresa, pressionando os dedos na minha nuca.
—Vonü... — Ela falou num suspiro, inclinando a cabeça para me dar espaço. — O banho era verdade. Eu preparei para você.
—Estou me esquentando. — Sorrio contra a sua pele, puxando a alça da sua camisola para baixo, concentrando meus beijos no seu ombro.
—Vonü... a água vai esfriar assim. — Ela reclamou, ainda que seus dedos continuassem pressionados na minha cabeça.
—Você ouviu a conversa, não ouviu? — Pergunto num tom leve, retirando sua camisola por completo, deixando que caísse no chão.
—Ouvi Veegan gritando sobre Verg, temi que ela tentasse algo com o bebê, já que ela quem deu a ordem de matar todos. — Ela ofegou ao fim, minha mão pressionando nas suas nádegas para erguê-la, suas pernas se prendendo ao meu redor no mesmo instante. — Você está suja, Vonü. Tem sangue até no seu cabelo.
—Você não está fazendo um bom trabalho em me levar para o banho.
Seu riso ecoou pelo quarto, então suas mãos trabalharam em soltar as pregas de minha armadura, primeiro nos ombros, então entre as asas e finalmente nas costelas, deixando que caísse no chão num baque. Eu a carreguei em direção ao banheiro, beijando seu pescoço, soltando-a somente dentro da banheira, retirando a bainha antes de tirar minha calça e me juntar a ela. A banheira era pequena, mas não era problema quando a queria perto, movendo minhas pernas em torno de sua cintura, deslizando meus dedos entre seus cabelos loiros, olhando em seus olhos agora vermelhos.
—Eu quis dizer cada palavra. — Digo a ela, sentindo seus dedos deslizando pelo meu busto em busca de limpar o sangue que estava ali. — Eu realmente quero ficar com você, Seul.
—Eu sei. — Ela selou meus lábios sutilmente. — Eu gosto de ouvir você falando essas coisas. Sobre seus sentimentos. Mas preferiria que você estivesse dizendo para mim, e não para Veegan.
—Eu queria deixar os fatos claros para ela. — Junto um pouco de água na mão e derrubo na testa dela, limpando seu rosto com as pontas dos dedos. — Não precisa se preocupar, sempre direi o que sinto para você.
—Então me conte mais sobre essas promessas para a sua deusa. O que mais você prometeu?
—Vou reerguer sua estátua na praça central em Tieres.
—Que expansivo.
—Graah me concedeu a vida através de suas mãos hoje. É o mínimo que posso fazer por ela me deixar estar ao seu lado, cuidando de nosso filho.
—Bem, assim sendo, farei minhas preces a Graah por me fazer ir atrás de você... de novo. — Ela sorriu, descendo as mãos pelo meu corpo e se ocupando em minhas pernas. Eu acabei sorrindo com a ideia.
—Você? Rezando por Graah?
—Graah, Deus, eu não sei. Eu rezaria a cada um deles.
Limpei seu pescoço e seus seios, enquanto ela começou a limpar meu rosto, acariciando meus cabelos e então limpando meus chifres, como sempre demonstrando admiração ao tocá-los. Observei o contorno que já saia de sua cabeça, a base firme que se estabelecia no seu couro cabeludo.
—Eu coloquei o bebê de Verg dentro de uma ilusão. — Ela anunciou. — Para o caso de alguém tentar algo antes da cerimônia. O impressionante é que não me sinto mais cansada como antes. Estou melhorando.
—Você pratica a cada dia, se dê um pouco de crédito. Os resultados estão aparecendo.
—Me faz ver o quão incrível seus poderes são, Vonü. Começo a ficar animada com esse bebê, como ele vai se desenvolver, se será mais forte.
—Se ele herdar sua teimosia, será o mais forte entre nós.
—Minha teimosia? E seu orgulho então?
—Tenho plena certeza que o orgulho não é herdado. — Digo num sorriso de lado, fazendo-a rir. — Mas talvez possamos ensinar alguma coisa a algum desses órfãos. Você já pensou em algo?
—Talvez. Você encontrou as crianças?
—Alinü trouxe as crianças para a nossa casa. — Digo lentamente, ela somente balança a cabeça, concordando. — Outros estão abrigados aqui pelo vilarejo.
—Isso é bom. O que você tem em mente? Estou sentindo que tem mais alguma coisa.
—Você está certa. Alinü me pediu algo, mas eu quero saber o que você acha, porque não afeta somente a mim, mas a você também.
—Os pedidos de Alinü...
—Ela quer que eu adote uma das crianças e o nomeie meu segundo filho.
—Segundo? Mas ela é a primeira. Nosso filho será o segundo.
—Segundo os costumes de meu povo, a união entre pessoas de tipos diferentes deve ser realizada frente a Graah, para que os filhos sejam legítimos. Eu não me uni com o pai de Alinü, então ela sabe que nos olhos dos graahkinianos, ela sempre será bastarda.
—Mas se você mudar o nome dela e conceder seu sobrenome, ela não será bastarda. Vai ser reconhecida como sua herdeira legítima, algo que ela sempre foi. — Ela cutucou minhas costelas como se estivesse me recriminando pelos costumes que seguia.
—E eu farei isso. Mas nós concordamos que ela deve mudar suas atitudes antes disso acontecer.
—Mesmo assim, não faz sentido um segundo filho adotado. Por que ela iria querer não ser reconhecida como sua primeira filha?
—Ela quer ser reconhecida quando merecer isso. Mas sabe que se nosso filho for reconhecido por segundo filho, então os costumes mandam que ele seja criado por meus irmãos.
—E por que eu faria isso? Eu e você somos mais do que capazes de criar essa criança sem precisar da sua família.
—Não é questão de capacidade. — Digo com paciência, inclinando sua cabeça para trás para que a mergulhasse na banheira, molhando seus cabelos enquanto movia os dedos em seu couro cabeludo, despregando qualquer resquício da batalha que pudesse haver. — Ele continuaria morando conosco. Continuaríamos ensinando o que quisermos ensinar. Mas em relação aos costumes, a história, a luta, meus irmãos o ensinariam em tempo integral. Farão viagens e passarão tempos fora.
—É o que Veegan fará?
—Sim. Eu e meus irmãos iremos ensiná-lo.
—Vocês têm costumes estranhos. Por que isso ajudaria nosso filho? — Ela me fez mergulhar a cabeça para trás, ainda que não conseguisse submergir por completo por causa dos chifres e porque a banheira era pequena com nossa posição, mas ela levou seu tempo em meus cabelos. — Não ajuda você ter cabelos da cor do sangue afinal.
—Então nosso filho vai herdar seus traços. — Ela riu com isso, mas não discordou.
—Pessoas de cabelo vermelho tendem a ter um temperamento forte. — Comentou com tom de humor, com um sorriso brincando nos seus lábios. — Os cristãos dizem que são adeptos do satanismo, por terem a cor do fogo.
—Bem... sou uma endemoniada, não sou? Não podia ser diferente.
—Você é a mais doce das criaturas, Vonü. — Ela me puxou para perto de novo, apoiando os braços nos meus ombros enquanto explorava o par de chifres que estavam no fim da minha cabeça. — Eu não mudaria nada. — Sorriu com alegria. — Só umas coisas, mas talvez nem isso.
Beijo seus lábios, sentindo seus dedos pressionarem com mais força os chifres, como se precisasse de apoio, eu não me incomodei, inclinando-me na sua direção para aprofundar o beijo. Ela me afastou pelos chifres, um sorriso diabólico nos lábios quando a olhei. Ela estava se divertindo, e eu também estava ao ver as ideias que passavam por trás dos seus olhos.
—A água está ficando fria. Vamos para a cama.
Concordei, e ela se levantou enquanto se apoiava nos meus chifres, saindo da banheira e se enrolando numa toalha antes de segurar outra a frente do corpo, esperando por mim. Julguei que estivesse planejando algo, mas não me incomodei, sai da banheira e deixei que ela me secasse, sentindo o cuidado que possuía por cada parte de mim.
—Nós poderíamos ensinar tudo isso ao nosso filho. Mas entregar essa responsabilidade aos meus irmãos, significa uma prova de confiança, e levaria honra aos seus lares. — Expliquei por fim, olhando para ela pelo reflexo no espelho a frente, enquanto ela secava meus cabelos.
—Honra. — Ela repetiu, mas não era possível definir o que ela estava pensando. — Eu te prometi que deixaria nosso filho seguir seus costumes. Nada mais justo, uma vez que viveremos entre sua família.
—Mas é o que você quer?
—Não vejo problema. Quero que nosso filho seja honrado.
—Nomear ele nosso segundo filho, permite que Alinü também o ensine, porque seria a primeira filha.
—E você confia em Alinü com um filho nosso? Mesmo um bastardo?
Suspiro, entendendo sua hesitação. Ela ainda achava que Alinü faria algo para machucá-la, mas não a culpava, porque minha filha já tinha feito demais. Eu me virei para olhá-la, retribuindo aos seus cuidados e começando a secar seu corpo com a toalha que a cobria.
—É sua filha, Vonü, se disser que confia nela e acredita que ela não faria nada com nenhum dos nossos filhos, eu vou me esforçar para acreditar também.
—Ela parece estar sendo genuína, Seul. Mas você devia ver com seus próprios olhos e tirar suas conclusões. Eu não quero que faça algo que se arrependa depois. — Olho para ela pelo reflexo outra vez, secando seus cabelos. — Não precisamos decidir agora. O bebê ainda vai crescer, e as crianças continuarão abrigadas em nossa casa. Isso pode esperar.
Ela moveu a cabeça para concordar, então beijei seu ombro antes de levá-la para a cama, deixando que deitasse sobre meu corpo enquanto envolvia minhas asas ao seu redor, procurando aquecê-la. Suas asas ainda eram magras e desengonçadas, já tinham a estrutura longa, mas eram como uma coluna exposta, sem músculos, sem força. Seus ossos na coluna deviam estar doloridos, sua pele sensível, mas ela estava aguentando bem. Ela desfez a ilusão e eu vi o bebê num berço ao seu lado da cama, adormecido e embrulhado, calmo como se nada tivesse acontecido naquela noite. A inocência de crianças.
—Vonü? — Ela me chamou, e eu comecei a acariciar seus cabelos, murmurando para que falasse. — O que acontece depois que um graahkiniano morre?
—Nós festejamos.
—Quão sádicos vocês são.
—Não festejamos sua morte. — Eu quase ri pela sua ignorância. — A morte é esperada por todos. Festejamos seu encontro com Graah, que é mãe de todos nós, e festejamos sua eternidade. Fazemos oferendas para que os mortos tenham o melhor tratamento em sua nova casa nos domínios de Graah, e que a sirva de maneira honrada.
—Casa?
—Sim. Onde encontram suas famílias de gerações.
—Então lá na guerra, quando estavam morrendo e se recusavam a me deixar curar seus ferimentos...
—Eles queriam ir ao encontro de sua família, de Graah. Se fossem curados estariam renegando o chamado da Deusa.
—Você recusou o chamado de sua Deusa?
—Não. Porque a lâmina nunca me acertou.
—Eu teria curado qualquer ferimento que ele fizesse em você. Graah não poderia te tirar a vida com um filho seu na minha barriga.
Eu a apertei mais forte em meus braços, fechando os olhos. Seul tinha medo de me perder, mesmo que não tivesse colocado isso em palavras claras, eu tinha entendido.
—Desculpa, Seul. Eu devia ter lutado com mais vontade, e sei que fui fraca. Mas depois que tive a visão...
—Você achou que era seu destino. — Ela completou depois que não falei mais nada, então suspirei, porque ela tinha razão. — Eu sei que vocês acreditam muito em destino. Também sei que você tem mais experiência com as visões do que eu. Mas você não acha que se podemos ter essas visões, podemos alterar o que acontece se somente decidirmos isso? Digo... Você podia ter me dito ou pedido maior número de guerreiros perto de você na batalha.
—Eu tive a visão e me deixei vencer. É por isso que nunca mais procurei pelos significados das visões que tive durante os anos. Depois que se entende o significado, é como se ficasse presa a ele.
—Então saiba que as visões não são definitivas Vonü. Eu sei que tem coisas que são imutáveis, mas tem outras que valem a pena lutar. Você não acha?
—Sim, você tem razão. Eu vou lutar, tenho vários motivos para fazer isso, e você me fez enxergá-los. — Ela inclinou a cabeça para me espiar, eu beijei sua testa. — Agora estou pronta.
—Que bom. Porque eu estava começando a achar que estava enganada sobre você.
—Não. Mas serei uma esposa melhor de agora em diante, como prometi. E mais tarde nossa vida vai mudar.
Ela sorriu, concordando, então deitou a cabeça no meu peito e adormeceu. O melhor momento de tudo aquilo era tê-la entregue nos meus braços.
Fim do capítulo
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