Capitulo 33
Num trajeto de carro que parecia arrastar-se pelas ruas da cidade, Joy vivia uma verdadeira batalha entre o coração e a razão. Sentia uma dor cortante pela perda abrupta e ao mesmo tempo queria libertar-se daquele sentimento. Seu pai tinha morrido. Desaparecera para sempre. Era atormentada pela sensação de que muito ficara por dizer...
Perdida, permaneceu calada e olhando para o vazio à medida que o carro seguia o seu rumo.
Elena, por sua vez, não sabia como agir. Ter sido portadora daquela notícia, abalara todo o seu ser. Foi sacudida por muitos questionamentos que a deixavam desnorteada. Não sabia muita coisa sobre a família de Joy. Ela quase não falava dos pais, ou quando o fazia, era sempre de forma evasiva. Tinha sim um elo forte com o irmão, mas era tudo o que sabia. Vê-la tão devastada com a perda do pai, demonstrava que existia amor...
Ela já tinha mencionado a briga com o pai quando decidira seguir os próprios sonhos. Nas entrelinhas, entendia que a mãe era omissa, mas muita coisa não fazia sentido.
Não sabia como agir. Não sabia o que dizer para amenizar-lhe a dor. Parecia que uma parede maciça se erguera entre elas...
Respirou fundo e encolheu-se no seu canto. Algo se esvanecia...
*****
Em casa, a aparente calmaria de Joy, deu lugar a uma explosão de sentimentos conflitantes. Andava de um lado para o outro, dizendo frases desconexas e intercalando momentos de choro convulsivo com profunda apatia.
-- Eu não pude despedir do meu pai. A última vez que falei com ele foi há mais de dois meses, e a nossa conversa foi uma briga em que eu disse que não precisava dele para mais nada.
Soluçava entre as palavras.
-- Já não é possível pedir desculpas, não tenho mais como mostrar que sou feliz sendo fotografa e não com o destino que ele traçou para mim.
Debatia-se.
-- Ele era ditador, mas tinha tanta coisa boa. Meu pai era um génio, muito inteligente e às vezes bem engraçado...meu pai...pai, pelo amor de Deus...pai. Tudo o que sei, aprendi com ele...
Desabou no chão batendo com as mãos no assoalho.
Agoniada e precisando fazer alguma coisa para aplacar um pouco a dor de Joy, Elena aproximou-se e agachou-se ao lado dela. Ergueu-a com carinho. Ela parecia pesar toneladas.
--O que queres fazer? - perguntou em tom calmo.
Joy pareceu confusa. Depois de absorver a questão, arregalou os olhos e externou a dor de forma acida.
--Sei lá o que quero fazer, acabei de perder o meu pai, queres que eu tenha respostas. Eu não sei! - Gritou.
Sobressaltada, Elena soltou-lhe os braços.
-- Deixa-me em paz!
Como um raio, Joy correu para o quarto e batendo a porta com força, trancou-a.
Ainda atordoada, Elena arrastou-se até à cozinha para acudir os animais que sem entender aquela tensão, já se movimentavam de forma atípica. Com algum esforço, conseguiu acalmar os ânimos, particularmente de Zayco que gania sem parar. Depois de beber muita água, sentou-se no parapeito da janela da cozinha, ciente de que precisava agir de forma prática. Munida de algum sangue frio, ligou ao irmão de Joy para saber os detalhes da cerimonia fúnebre. Mesmo abalado, ele conseguiu passar todas as informações e agradeceu por Elena tratar de tudo. Ela conseguiu comprar um voo para Londres para as 5 horas da manhã. Equacionados o fuso horário e as horas de voo, Joy ainda teria algum tempo para descansar antes do funeral do pai que aconteceria domingo pela manhã.
Depois de tratar de detalhes práticos, Elena sentiu as forças desvanecendo. Foi sacudida por uma tristeza poucas vezes experimentada na vida. Parecia-lhe que as cores esbatiam-se e que a qualquer momento, sua alma entraria no mais rigoroso e sombrio inverno. Permitiu que as lágrimas escorrem-se enquanto repetia que era o melhor para Joy.
--É o melhor para ela. Precisa da família para voltar a ser forte...
De olhos fechados, sentiu o rab* de Myk acariciar-lhe o braço. Acolheu-o nos braços e suspirou profundamente.
--E no final, somos sempre nós. - Beijou seu fiel companheiro.
*****
Perdida em pensamentos enquanto observava a rua quase deserta e gelada, Elena sentiu braços quentes envolvendo o seu dorso. Joy apoiou a cabeça na sua barriga e chorou copiosamente. Elena afagou-lhe a cabeça e mesmo lutando contra, as lágrimas correram soltas pela sua face.
--Desculpa a minha estupidez. Estou destroçada e sem controlo do que falo, mas tu és a ultima pessoa nessa vida que eu quero destratar. - Soluçava.
Elena beijou-lhe a cabeça e abraçou carinhosamente permitindo que ela chorasse.
--Marquei-te um voo para casa às 5 horas. Foi o único horário que te permite chegar e descansar algumas horas até o funeral. O voo é longo e com a diferença de horários, precisas de um tempo para recuperar...
--Muito obrigada! Eu não teria discernimento para nada disso e preciso estar com a minha família.
Elena sorriu e limpou-lhe as lágrimas.
--E o Zayco? -Sobressaltou-se.
--Eu cuido dele!
--Não te atrapalha?
--Claro que não. Eu e o Myk gostamos muito dele e eles, por incrível que possa parecer, já são os melhores amigos.
Sem forças, Joy esboçou um leve sorriso.
--O que achas de tomar um banho quente para relaxar um pouco a tensão do corpo? - Perguntou Elena com carinho.
Presa num emaranhado de emoções, Joy não esboçou uma única palavra. Abraçou Elena com muita força e soltou um suspiro do âmago.
Com alguma resistência, Elena conseguiu conduzi-la ao banheiro.
--Meu bem, precisas de roupas para a viagem...
--Tenho muita roupa em Londres. Não te preocupes com isso. Preciso apenas de um bom casaco de inverno, mas isso podes emprestar-me.
--Passaporte, teus cartões, objetos pessoais...
--O que seria de mim sem a tua presença de espirito?
Elena sorriu e bateu a cabeça.
--Vou rapidamente até ao teu apartamento e recolho tudo o que precisas.
--A essa hora?
--Nem é tão tarde assim, e lembra que o destino quis que morasses a duas quadras da grega...
--Minha grega, meu melhor presente. - Joy aproximou-se de Elena e abraçou-lhe.
Demoraram-se no abraço. Joy precisava de alento e Elena lutava para manter uma certa praticidade quando suas forças estavam por um fio. Mas o abraço surtiu o efeito desejado. Acalmou Joy e encheu Elena de esperança.
*****
--Joy, para de ser teimosa e beba um pouco de chá. Não te pedi para comeres um banquete, mas não podes ficar assim. Recomendações do Thomas.
--Aquele lá agora quer mandar em mim. Não consigo engolir nada, Elena. Minha garganta está travada.
--Eu vou continuar a insistir até vencer essa tua teimosia.
Joy esboçou um leve sorriso.
--Obrigada pela minha mala. Só agora eu me dou conta que não poderia viajar sem essas coisas. Eu era bem capaz de aparecer no aeroporto sem o passaporte.
--Até parece. Tu és a pessoa mais pratica que conheço. Rainha da organização...
--Nem sei como estou de pé, meu bem...
--Senta aqui! - Elena puxou-a para a borda da cama. - Precisas relaxar um pouco...
--Não sei como reagir quando chegar lá...
--Não pense nisso agora...
--Eu não sei o que dizer à minha mãe...é o marido dela que faleceu, o único homem que ela conheceu a vida toda. Eu acho que ela gostava dele, mesmo sendo pessoas tão diferentes...
--Não se martirize tanto, Joy. Eu acredito que quando chegares lá, vais saber o que dizer e se não souberes, tudo bem. É uma situação extrema e inesperada, mas vais estar com a tua família e acredito que um servirá de apoio ao outro. Mas...- Elena calou-se por achar que já estava a ultrapassar os limites.
--Hmmm? - Mas Joy parecia interessada em qualquer coisa que ela tivesse em mente.
Elena encarou-a com olhos de ternura:
--Permita-se sofrer, chorar, esquece o controle.
--Eu estou em choque, parece que uma onda gigante passou sobre a minha cabeça e levou tudo...sinto-me vazia, á deriva...se não estivesses ao meu lado, eu nem sei...
--Estarei sempre aqui! - Disse convicta das palavras e do sentimento. Dos olhos escorriam lágrimas quentes que traduziam várias emoções.
Joy beijou-lhe a boca num rompante. O doce dos lábios misturou-se ao salgado das lágrimas, transformando aquele instante num marco inesquecível. Entregaram-se ao breve instante com tamanha intensidade, que fez pulsar todas as células dos seus corpos. Os corações, esses batiam no mesmo ritmo...
Algum tempo depois...
--Ainda tenho tempo para descansar. Graças a ti. - Sorriu.
--Mas não me conformo com o fato de não teres comido nada...
--Não consigo...obrigada por tanta paciência.
--Precisas fechar esses olhos e descansar um pouco.
--Vou ficar quieta na cama e organizar as minhas ideias.
--Sim. Vou sair e deixar-te em paz. Acordo-te perto da hora da viagem.
--Fica comigo - pediu segurando com força a mão de Elena -contigo ao meu lado eu sei que vou conseguir ao menos fechar os olhos.
--Ok! - Elena abraçou-a e ela encolheu-se toda no abraço.
--Estou tão acostumada a dormir assim...
--Shhhh...tente dormir...- Elena não queria ouvir coisas que a levariam às lágrimas. Bravamente resistia ao turbilhão de emoções que sacudiam a sua alma. Mas se Joy começasse a falar...
Joy chorou. Os sentimentos eram tantos, e teciam verdadeiras teias no seu coração. Naquele momento de desespero, percebeu-se envolvida num sentimento intenso por Elena. Sabia-o, mas a dor da perda do pai, aclarara o fulgor daquele elo. Ela era essencial, seu lugar preferido, de paz, força, esperança. Elena era luz, sonhos bons e coragem para realizá-los. Podia prever mudanças drásticas na sua vida, mas por mais árdua que fosse a luta, não desistiria de Elena. Não enquanto ela a quisesse e era obvio que a queria. Seu abraço era o colo perfeito. Seu cuidado era de amor...
Elena sentia o coração bater em cada canto do seu corpo. Queria que Joy tivesse a certeza de que não estava sozinha. Não era boa com as palavras e expressar sentimentos não era de suas maiores qualidades...
Joy embrenhou-se nela. Já não se ouviam mais soluços. Respiravam na mesma cadência. Joy adormeceu. Elena demorou-se num beijo na sua cabeça e permaneceu atenta.
*****
Elena acordou assustada com o barulho dos animais dentro do apartamento. Num ímpeto, pulou da cama e correu para junto do telefone. Ainda sonolenta, procurou por uma chamada de Joy e nada. Um pouco mais desperta, notou que ela ainda sequer tinha chegado na Inglaterra.
Sem ânimo, cambaleou de volta para a cama. O dia, assim como a sua alma, estava cinzento e lá fora chovia a cântaros. Rolou por alguns minutos na cama, mas completamente impaciente, saiu do quarto. Myk enrolou-se nas suas pernas e Zayco pulava sem parar. Pareciam empenhados em arrancá-la daquela tela cinzenta. Sorriu e agachou-se para brincar com seus companheiros. Zayco rodava em torno do próprio corpo e parecia querer cheirar alguma coisa. Provavelmente procurava por Joy.
Sentindo-se tonta, decidiu preparar uma chávena de cappuccino. Não ingeria qualquer alimento há bastante tempo, mas não tinha nem força e muito menos vontade de preparar nada. Tinha dormido umas três horas, se tanto, e sua cabeça pesava toneladas. Em contrapartida, seu coração parecia vazio. Seria exagero sentir-se assim? Por onde andaria o célebre desapego?
Olhou mais uma vez para o telefone. As horas corriam lentamente. Deixou o aparelho sobre a mesa da cozinha e caminhou até à sala. O parapeito da janela pareceu-lhe o melhor lugar. Teria a companhia da vida lá fora...
Pelo caminho, ligou a sua caixa de música, tudo para dirimir o vazio que a sufocava.
Sentada e abraçada às pernas, permitiu que a mente viajasse até a noite em que conhecera Joy. De repente, um filme lindo passou-lhe pela mente. O coração já não estava mais vazio. Sorriu ao ver a pele arrepiada.
Deitou-se nas pernas e deixou-se embalar pela melodia de Throw me a line dos Haevn. Queria poder abraçá-la, arrancar-lhe qualquer dor mais pungente. Queria estar junto...
As lágrimas vieram e com elas muitas certezas. Precisava colocar algumas coisas em ordem na sua vida e quem sabe aquela não era a ocasião perfeita. Em relação ao que sentia, não tinha mais dúvidas, mas as certezas eram apenas suas. Mas, ao contrário de qualquer outro momento da sua vida, estava disposta a correr riscos. Valia a pena. A sua felicidade valia muito a pena.
A tristeza foi cedendo lugar a um novo estado de espírito que ainda não sabia muito bem como definir. Perdeu-se em devaneios.
O telefone tocava. Ela pulou da janela e correu até à cozinha. Não era Joy, mas era Milanka. Sorriu. A amiga sempre com o melhor timing.
--Já não deverias estar em Joanesburgo?
--Olá para a senhora também. Partimos amanhã à noite, às vésperas do Natal porque o meu namorado é viciado em trabalho.
--Não reclames...
--Ei? Jamais! E se eu reclamar podes mandar me internar. O que fazes?
--Nada...
--Nada? E a inglesa maravilhosa que ocupa grande parte dos teus dias?
Silêncio.
--Hmmm, depois da comemoração de ontem, a senhora está cansada. Entendo...
Silêncio.
--Troia? Está tudo bem?
Elena não conseguiu segurar o choro.
--Elena, pelo amor de Deus...
--A Joy foi para casa...
--Brigaram? Isso é normal, Elena. Embora vocês nunca brigam, uma hora teria de acontecer. Vai ficar tudo bem. Ela é completamente apaixonada por ti, e tu...
--Ela foi para a Inglaterra! O pai faleceu.
--Hã? Meu Deus...e isso tudo aconteceu de ontem para hoje?
--Sim...
--Eu liguei para te convidar para passar tempo comigo, mas sem nenhuma esperança. Claro que perco para a inglesa...
--Eu vou!
--Sim, venha. O Ethan viajou logo cedo e volta ao final da noite. Viajamos amanhã e quero muito ver-te antes do ano novo.
--Eu vou daqui a pouco. Preciso mesmo da tua loucura.
--Sou toda tua!
Risos.
*****
Thomas aproximou-se de Joy e abraçou-a por trás. A irmã parecia tão desconectada e ao mesmo tempo carente de algum afeto. Desde que chegara para o funeral do pai, falara apenas o essencial. Processava tudo de forma mais lenta e solitária.
--Paloma está encantada com as histórias de Madia.
--É, parece que sim...
--Vais ficar aqui connosco?
--Não entendi.
--Ficas aqui, ou vais para o teu apartamento?
--Ah, não sei. Devo ficar aqui por mais alguns dias, até porque o meu apartamento deve estar um caos...
--Não com a mãe que tens.
--Como assim?
--A mãe é a típica cuidadora e extremamente organizada. Ela mantém o teu apartamento impecável.
--Por qual razão ela não nos contou sobre o estado de saúde do pai? A mim, pelo menos, ela não contou nada...
--Eu sabia que estavas intrigada com esse pormenor...
--Estou irritada! Talvez essa não seja a palavra certa para exprimir o meu sentimento, mas eu não gostei. Fui pega de surpresa, isso abalou-me de tal forma...
--Eu também não sabia. Desconfiava que alguma coisa não estava muito bem, mas ela sempre dizia que não era nada de especial.
--Nós estávamos mais próximas ultimamente, ela poderia ter dito...
--Poderia, se soubesse.
--Como assim?
--Ela desconfiava que as coisas não estavam muito bem porque o pai foi perdendo energia, mas sempre prezando pela altivez, pelo orgulho exacerbado...
--Ele morreu...
--Sim. Chegamos aqui em Londres e fomos diretamente ao hospital. Questionei, claro. Mesmo abalada, ela conseguiu explicar-me como as coisas tinham acontecido.
--Quero saber!
--Há mais ou menos seis meses, ele começou a ter um comportamento mais estranho do que o habitual. Passava dias sozinho nas casas do interior, tinha conversas intermináveis com o médico, começou a fazer mudanças nas empresas.
--Fora as conversas com o médico, o resto pareceu-me natural...
--Ele contratou uma equipa de gestão sénior. Ele começou a delegar...consegues imaginar isso?
--Não...- Respirou fundo ao lembrar-se das últimas discussões.
--Madia começou a interessar-se pelos assuntos da empresa, e ficou surpresa ao descobrir que o pai tinha delegado a gestão em mãos de terceiros. Ele continuava a mandar, mas não como antes. Foi perdendo as forças, mas sempre tentando disfarçar.
Joy ouvia com atenção ao mesmo tempo que observava a mãe que continuava a conversar com a namorada de Thomas.
--Ela só descobriu a gravidade da situação no último mês. O pai colapsou algumas vezes e ela pressionou o médico. Ele não disse nada, mas o senhor Collins foi obrigado a contar que estava com um problema sério no coração. Os últimos dias foram intensos...
--E nós, completamente alheios.
--Sim. E ela mais uma vez pensou em nós.
--Como?
--Ela me disse por essas palavras que não ia atrapalhar os nossos sonhos, ainda mais o teu sonho que demorou a acontecer porque vivias os do pai...reproduzi a frase dela.
Joy emudeceu e os olhos foram inundados de lágrimas.
--O pai escondeu a sua condição. Não sabemos se por orgulho, ou por receio que passasse a ser alvo de pena. Bom, qualquer que tenha sido a razão, foi pautada pelo orgulho excessivo. Ele teve os melhores cuidados. Podemos dizer que, à maneira dele, foi feliz.
--Eu queria ter dito alguma coisa. As últimas conversas foram tão impessoais...
--Eu não falava com ele há mais de um ano. Não tenho remorsos...
--Nem eu, mas queria ter tido ao menos mais uma conversa. Queria que ele soubesse que meu sonho está vivo e que sou feliz.
Thomas abraçou a irmã com muito carinho e encheu-a de beijos.
--Carente!
--Bruta! Mas isso não é novidade para ninguém.
Riram no abraço.
--Ela pensou em nós...
--É tudo que ela sempre fez...
--Preciso me conectar mais com a minha mãe...
--Quem sabe seja esse o momento oportuno...
--Esse é o momento. Aprendi a sentir com a leveza do coração...
--Hmmm, os milagres de Nova York.
--Idiota!
Risos.
--Aproxime-se, Madia não morde. Apesar da dor da perda, acho que ela está muito feliz. Estamos juntos.
Elena saiu do abraço do irmão e caminhou para junto da mãe e Paloma. Estava emocionada e mesmo sem muito jeito, passou o braço pelo ombro dela. Aquele movimento, de certa forma inusitado, não pareceu causar espanto na mãe. Acolheu-o naturalmente.
Não demorou muito para Joy desarmar-se e aproveitar alguma calmaria naquele episódio conturbado que vivia.
*****
--Alô! -Joy atendeu com a voz sonolenta.
--Meu bem, eu sei que já é muito tarde para ti, mas só agora consegui um momento de paz para falar contigo.
--Nem sei que horas são, mas fiquei acordada até tarde. Queria muito falar contigo, mas esperei que tu me ligasses para não ligar em hora errada.
--Teve um lançamento da editora e o evento prolongou-se além do esperado. Não podia sair porque era um autor da minha escala, aliás, um dos melhores.
--Correu tudo bem?
--Sim! Agora graças aos céus já posso descansar um pouco. Já não há nada importante pelo resto do ano.
--São apenas 5 dias até o ano novo.
Risos.
--Pois, e normalmente são os dias mais tranquilos da loucura que é a EWO. Como estás? Ontem não estavas muito bem...
--Não sei definir o meu estado de espirito. Eu sei o que quero fazer, mas estou tentando equacionar um sentimento de culpa que me corrói. Por incrível que possa parecer, foi muito mais fácil soltar as amarras da outra vez que precisei olhar para mim...
--Meu bem, é mais fácil soltar amarras do que elos. Conseguiste uma conexão linda com a tua família, com a tua mãe em particular...
--Minha mãe é tão sábia, inteligente, acolhedora...é tens razão, é muito mais difícil decidir quando existe harmonia...
--Joy, é tão bom ouvir-te falar da tua mãe. Sabes como é a minha relação com Melina, então sempre achei estranho o teu distanciamento. Tu és tão doce e carinhosa e...
--Não fui sempre assim. Acho que fui criada para não permitir que as emoções me dominassem. Distanciei-me da minha mãe...
--A minha mãe diria que as coisas acontecem quando têm de acontecer. Infelizmente, houve uma perda para que pudesses conectar com a tua mãe...
--Sabes que faz sentido. Faz todo o sentido se eu imaginar que a admiração cega que eu tinha pelo meu pai e a vontade de fazer tudo na perfeição, desconectou-me completamente da realidade. Sim, porque a realidade é essa que vivo agora, de pessoas falhas, mas dispostas a acertar. Pessoas e não seres imbatíveis...
--Ainda bem que eu te atropelei no parque quando já admitias falhas.
Risos.
--Ah, agora aceitas que eu fui atropelada.
Risos.
--Nos atropelámos. Melhor assim?
--Sim! Elena, sabes que não gosto muito de ser carente, mas a verdade é que estou com tantas saudades tuas. Saudade da minha vida contigo, saudade da tua alegria, das tuas patetices, da forma como me acalmas e me impulsionas. Eu sinto falta do teu olhar, sobre mim, sobre o meu trabalho, sobre a vida. É, estou carente.
--Ou gostas de mim.
Gargalhadas.
--Tu não costumas ser óbvia.
Risos.
--Eu não gosto de ti, eu sou apaixonada por tudo que te representa. Meu bem, não terias uns 5 dias livres?
--Depende...
--Ah, sou apaixonada pela forma como adoras me provocar até ao limite.
Gargalhadas.
--Preciso ser intrigante ou a senhora cansa.
--A senhora precisa se esforçar muito para eu me cansar.
Risos.
--Eu preciso fechar algumas coisas na EWO, mas é bem provável que tenha alguns dias livres.
--Pense com muito carinho. Não posso voltar porque agora é que vão começar os trâmites legais e...
--Já estás certa do que fazer?
--Será uma comunicação difícil, mas eu sei muito bem o que quero. Não vou simplesmente virar as costas e seguir minha vida como se essa não fosse uma parte importante dela, mas meu caminho é outro. Eu sei o que me faz pulsar a alma e com certeza não é gerir empresas de turismo.
Elena sorriu e respirou aliviada. Aquela sensação de paz, ajudou-a a tomar uma decisão que, entretanto, não foi partilhada.
--Teu irmão ainda está em Londres?
--Sim! Estamos todos juntos, embora ele e a namorada tenham planos para viajar no fim de ano.
--E tu?
--Fico com a Madia. É provável que passemos alguns dias em Rye. E tu?
--Minha mãe e o Richard foram para a Florida e queriam me levar junto. Minha mãe queria festas no sol e o Richard não a mima quase nada.
Risos.
--A senhora foi dragada pela EWO e não foi...
--Realmente para o Natal seria impossível, mas eu não estou muito ávida por celebrações. Meu bem, preciso desligar, tenho uma chamada à espera e tu precisas dormir.
--Ah, agora que já estou desperta...
Risos.
--Desculpa, mas precisava falar contigo. Essa diferença horária não ajuda em nada.
--Eu não reclamei. Atenda a tua ligação. Adorei ser acordada.
Risos.
*****
Depois de ter comunicado a sua decisão à chefe, Elena experimentou algo próximo a um superpoder. Não tinha sido nada demais, afinal tinha direito a dias de descanso. Mas, com a consciência mais ampliada, pôde perceber que vivia pelo trabalho, sendo quase escrava dos delírios de Brigitte. Antes não fazia diferença viver praticamente dentro das paredes da editora e talvez por isso, não levasse a sério os argumentos de Milanka, ou da mãe. Mas agora permitia-se ouvir o seu corpo e o coração falava numa língua muito clara.
Antes de falar com Brigitte, tudo foi tratado a nível dos recursos humanos, tirando qualquer possibilidade de contragolpe. Mas Brigitte, mais preocupada em organizar as suas curtas férias, minimizou qualquer outra informação. Situação perfeita, sem desgaste para ninguém.
*****
--Precisamos erguer uma estátua para essa inglesa.
--Idiota!
Gargalhadas.
--Deves concordar comigo que antes desse furacão, nada te arrancava daquela editora. Troia, beiravas a chatice.
--Muito obrigada pela sinceridade. Sempre é tempo de redefinir a rota...
--No teu caso, entraste na direção certa e com uma convicção invejável. Estavas tão convicta que contagiaste algumas incautas pelo caminho.
Gargalhadas.
--Não seria o contrário?
Risos.
--A tua voz te denuncia, mas pergunto mesmo assim. Está tudo bem?
Gargalhadas.
--Elena, se eu parasse para descrever cada emoção que tenho vivido, entraríamos o novo ano ao telefone.
Gargalhadas.
--Ela nem é exagerada! Fico muito feliz.
--Troia, e a doida? Ela não quebrou a sala? Não te ameaçou de forma velada como sempre faz?
--Milanka e seus giros de 180 graus.
Gargalhadas.
--Sabes que sou elétrica e que adoro detalhes.
--Se a Brigitte quiser que me demita. Quero novos rumos para a minha vida profissional. Sabes que prezo pelo bom desenrolar das coisas, mas se ela quiser ir por outros caminhos...cansei, Milanka.
--Eu até acho que vais seguir por rumos muito mais estimulantes...
--Hmmm?
--Palpite...
--Como se eu não te conhecesse. Agora preciso ir, mas mais tarde não me escapas. Feliz Ano Novo, minha doida preferida.
--Feliz Ano Novo, Troia da minha vida.
--Dê um abraço no Ethan.
--Darei daqui a 2 minutos.
Risos felizes.
*****
--Joy, tens a certeza que não queres viajar com o teu irmão?
--Eles vivem em eterna lua de mel, eu seria um estorvo.
--Ah para, Joy. - Gritou Paloma da cozinha.
--Vês? Eles não se importam.
--Madia, quero ficar quieta. Eu sei que preferes a companhia do teu filho preferido, mas sinto informar-te que para o réveillon, só a Joy. - Brincou.
--Eu sei que está a brincar, mas saiba que minha satisfação em ter-te aqui...
--Eu sei mãe. Estou a brincar para desanuviar...
--Eu queria que ficasses com gente jovem, exatamente para mudar o rumo dos pensamentos...
--Gosto da tua companhia. Tu és mais jovem que muita gente da minha idade.
--Concordo! - Gritou Paloma.
--Oh sua maluca, o que fazes na cozinha?
--Estou com fome!
--E o Thomas? Essa casa está muito quieta.
Paloma riu.
--Ele saiu, mas já volta. Vou preparar o nosso jantar, enquanto ele não chega.
--Não exageres na quantidade. Viajam amanhã e a Madia não come comida requentada.
--Ah, asseguro-te que não vai sobrar uma migalha.
--Thomas encontrou a mulher perfeita. Ela é bem centrada, apesar do espirito aventureiro. Equilibra a excentricidade do teu filho.
--Meus filhos são tão diferentes e ainda assim, tão próximos. Mesmo com todas as minhas imperfeições, eu consegui criar pessoas tão integras e especiais...
Joy abraçou a mãe com carinho. Ainda tinha alguma dificuldade em verbalizar seus sentimentos, mas as atitudes eram cada vez mais explícitas.
Mais tarde, já cansadas de esperar o regresso de Thomas, as mulheres jantavam a deliciosa preparação de Paloma.
--Devo concluir que o meu prato foi aprovado. A Joy que quase não comeu nos últimos dias, repetiu a dose.
Joy riu e quase se engasgou.
--Aprovadíssimo! - Decretou Madia.
--Paloma, estou em transe com essa comida. E eu que achava que ia sobrar muita coisa.
Risos.
--Tem mais no forno. Não me esqueci da satisfação do meu namorado.
Risos.
--E esse garoto que não aparece. Ele já foi mais educado...
--Ah, falando mal de mim.
Thomas entrou pela cozinha adentro como um raio.
--Thomas, estás todo molhado. Sai de perto de mim. - Joy empurrou-o para longe.
--Tira esse casaco, meu filho. Ainda pegas uma gripe...
--Paloma, se estás a pensar que sou filho da mãe e irmãozinho mais novo, é isso mesmo que essas mulheres pensam. - Fez um ar pesaroso arrancando risadas da namorada.
--Por um triz não ficaste sem comida. A tua mulher esmerou-se e nós estávamos famintas. - Brincou Joy.
--Espero que não tenham devorado tudo. Trouxe mais uma pessoa para o jantar.
--Hmmm? Ah Thomas, não estou em condições e nem com disposição para gente estranha.
Paloma e Madia trocaram um olhar rapidamente, mas Joy percebeu algo estranho. Ainda tentando entender aquele instante, sentiu duas mãos sobre os ombros.
--E quem disse que seria alguém estranho? - Thomas provocou.
Por essa altura, o coração de Joy já batia dentro da cabeça. Segundos. Fragmento de tempo. Virou-se. Num segundo estava de pé e olhava para Elena. Ela também molhada e sorrindo.
Joy ficou estática. Não sabia se gritava ou ria. Não sabia se abraçava o irmão ou Elena. Não sabia se tudo não passava de um sonho.
--Joy, a tua amiga precisa tirar esse casaco...seja muito bem-vinda, Elena.
--Mãe?
Madia sorriu enquanto ajudava Elena a tirar o casaco molhado. Joy tremia da cabeça aos pés. Olhou para o irmão que abraçado à namorada, parecia se divertir com o momento.
--Elena...estás mesmo aqui? - Finalmente conseguiu falar.
--Cinco dias não foram difíceis de conseguir. - Sorriu.
Joy pulou nela e foi abraçada na mesma intensidade.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Carmen
Em: 03/06/2021
Nadine, fiquei muito feliz por não ter recebido minha crítica como algo negativo.
Sentindo um pouco de falta da tal emoção Nadine, como você bem nomeou (já que realmente só consigo me conectar assim às suas histórias), e sabendo que estava próxima do fim, decidi recomeçar a leitura e aí veio a vida e atropelou um pouco os dias e portanto, estou dois capítulos atrasados. Mas ainda assim resolvi vir aqui dizer que com toda a certeza estarei aqui te acompanhando sempre, nessa e em todas as outras histórias que peço muito que consiga escrever e de preferência, com as mãos sem dores.
PS: A parte boa é que tenho dois capítulos inéditos para ler. A parte triste é que já está acabando! E saiba que, mesmo você não estando no seu melhor, ainda é excelente!
Espero que esteja bem!
Um abraço querida!
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário. Quem nao quer ser criticado nao se lança na vida e eu adoro criticas pois me estimulam a melhorar. Como disse, nao havendo falta de respeito, tudo vale.
Bjs
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Vania silva
Em: 02/06/2021
Boa noite . Maravilhosa. Esplêndida. Ansiosa pelos próximos capítulos. Espero que estejas melhor da tendinite e das sequelas do covid. Adoro suas historias e por falar nelas notei que algumas nao estao mais no site o q ouve?
Resposta do autor:
Muito obrigada. Estou melhor sim da tendinite mas sem poder exagerar...dificil para essa pessoa. Sequelas da covid tenho sempre, mas dizem que faz parte. Algumas histórias estão em concurso literário e outras vão para a Amazon, por isso sairam do Lettera.
Bjs
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Mille
Em: 02/06/2021
Oi Nadine
Que ligação essas duas tem.
E que bom a Elena ir ficar com ela em Londres, e com ajuda do cunhadinho.
Troia vai conhecer a sogra, será que a Joy apresenta ela como namorada???
Bjus e até o próximo
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário.
Bjs
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Marta Andrade dos Santos
Em: 31/05/2021
Que felicidade no momento tão triste.
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário.
Bjs
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Lea
Em: 31/05/2021
Não consigo nem descrever qual parte do capítulo foi a melhor!
Joy surtando e a Elena não fugindo, não tem como negar mais que é amor, conexão de almas!
O reaprendizado de Joy em demonstrar o amor e carinho que sente pela mãe foi especial!
Esse final foi perfeito,Thomas e Elena "cúmplices"! A felicidade de ambas!
AMANDO DEMAIS ESSA ESTÓRIA!!
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário.
Bjs
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brunafinzicontini
Em: 30/05/2021
Maravilhoso! É lindo ver o encontro de almas se fortalecendo a cada instante. A princípio, a reação de Joy à notícia da morte do pai causou-me certo espanto, mas depois as coisas se iluminaram. Vou tomar emprestados alguns trechos que achei lindos para fazer meu comentário.
Foi muito bom ver a inglesa perceber o seu “sentimento intenso por Elena”, notar que “ela era essencial, seu lugar preferido, de paz, força, esperança... Elena era luz, sonhos bons e coragem para realizá-los. Seu abraço era o colo perfeito. Seu cuidado era de amor...”
Por sua vez, Elena também está sendo guiada por um sentimento especial:
“...ao contrário de qualquer outro momento da sua vida, estava disposta a correr riscos. Valia a pena. A sua felicidade valia muito a pena.”
A manifestação de Joy ao telefone, então, falando com sua grega, foi algo muito doce:
“Saudade da minha vida contigo, saudade da tua alegria, das tuas patetices, da forma como me acalmas e me impulsionas. Eu sinto falta do teu olhar, sobre mim, sobre o meu trabalho, sobre a vida. É, estou carente.”
Enfim, querida Nadine, mais uma vez você arrasou! Sensacional desfecho para nosso domingo. Obrigada!
Beijos e feliz semana para você!
Bruna
Throw me a line dos Haevn - lindo!
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário.
Haevn é um balsamo para os meus sentidos ;)
Bjs
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preguicella
Em: 30/05/2021
Avisei que apesar de talvez ter pensado mil vezes, não sei se chegou a tanto, Elena foi ao encontro de Joy!
Vamos ver o que vem desse reencontro.
Bjão
Resposta do autor:
Atrasada, mas valendo rsrsrs. Obrigada pelo comentário.
Bjs
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