As mudanças podem solidificar antigos conflitos
O sol se pôs e nasceu duas vezes, mas Seul não acordou. Seu corpo estava mudando, algumas escamas nasciam nos seus braços, as pontas dos chifres aparecendo no topo de sua cabeça, e o esqueleto de asas em suas costas começavam a se formar. A maldição estava sendo quebrada, eu tinha certeza disso, ou ela estaria enfraquecendo ao invés de estar se fortalecendo. Ela só precisa de tempo, era o que me dizia todos os dias.
Veegan acabou me encontrando enquanto eu assava um coelho do lado de fora da casa, mantendo o lugar uma ilusão, de forma que ela só deve ter me achado por causa da luz do fogo. Era noite, e ela aparentava puro cansaço e exaustão.
—Finalmente te achei. — Ela estreitou os olhos na minha direção, então olhou através de mim, como se procurasse algo.
—Boa noite para você também.
—Desculpa, mas você também podia ter me dado notícias. Fiquei preocupada.
—Eu entendo. Como estão as coisas em Tamber? Eu queria ter voltado lá, mas tenho que tomar conta de Seul.
—Sua filha não perdeu tempo em cobrar nosso acordo. Tive que nomeá-la general e agora ela tem sido minha sombra. Sequer consigo dormir à noite com aquela criatura no meu pescoço.
—Eu vou te ajudar com ela. Não deixarei que ela faça nada com você. Eu sei que ela não tentará fazer nada por baixo dos panos quando se trata de reputação e honra.
—Eu não confio nela.
—E não deveria mesmo. Mas você tem minha palavra. Não deixarei que ela assuma no seu lugar.
—Não é algo que você possa prometer. Mas agradeço a ajuda. — Então ela suspirou, desconfortável, e eu gesticulei para que sentasse. — Cheguei a achar que tinha desistido de ir à guerra.
—Não. É nosso dever retomar aquela ilha. Depois disso eu quero paz. — Giro o coelho para assar do outro lado, entregando água para ela. — Seul está bem. — Respondo à pergunta óbvia nos seus olhos.
—E onde ela está?
—Lá dentro. — Gesticulo a casa, permitindo que ela visse o edifício, surpresa atravessando seu rosto por um momento. — Ainda está se adaptando.
—Eu quero ver com os meus próprios olhos se você não a machucou. — Ela levantou, marchando em direção a casa, mas eu seguro seu braço e me levanto para encarar seus olhos. — Você não pode me impedir.
—Posso e vou. Seul precisa descansar e precisa de paz.
—Então é ela quem decide se vai receber visitas.
—Quando ela está indisposta, eu tenho a liberdade de decidir isso.
—Quem você acha que é para impedi-la de receber visitas?
—Minha esposa. — Seul estava na porta, olhando entre nós com um sorriso de lado. — E minha esposa tem a liberdade que precisar.
Ela estava de pé, afinal. Sorrio, soltando Veegan e me aproximando dela, abraçando-a por um momento e beijando sua testa em saudação. Finalmente parecia que estava bem-disposta, com um sorriso brincando nos seus lábios enquanto me olhava, mas apesar da cor pálida no seu rosto, julguei que tinha se recuperado definitivamente da maldição.
—Como se sente? — Pergunto em expectativa.
—Com fome. — Ela riu, eu acabei sorrindo. — Por quanto tempo estive dormindo?
—Alguns dias, não se preocupe. Era esperado.
—Vocês casaram? — Veegan ainda estava paralisada no lugar. — Vocês não podem estar falando sério. Você não pode ter se tornado cristã, Vonü.
—Não me tornei cristã, irmã. — Afirmo, virando para olhá-la.
—E eu não sigo Graah. — Seul falou em tom humorado. — Mas estamos casadas mesmo assim. Se estou viva, é porque Deus concordou com essa união.
—Então vocês tinham um caso esse tempo todo. — Veegan nos acusou, deixando claro que se sentia traída.
—Não. — Seu sorriso desapareceu e ela se tornou mais séria que nunca. — Eu nunca menti para você. Mas você sempre soube que eu faria o ritual com Vonü.
—Não esse tipo de ritual. — Ela torceu o nariz. — Você nunca demonstrou nada em relação a Vonü.
—E deveria? — Ela me olhou, segurou minha mão e acariciou meus dedos. — Eu só deixei que acontecesse. Sabia que deveria estar aberta quando fizéssemos o ritual, mas não planejei nada.
—Estou vendo o quanto ficou aberta a Vonü.
—Retire o que disse. — Falo com raiva. Seul sequer deveria prestar esclarecimento para ela. — Retire as drogas de suas palavras, Veegan.
—Ou o que?
—Está tudo bem. — Seul voltou ao tom apaziguador que sempre usava. — Tudo bem se estiver magoada, Veegan. Eu sabia de seus sentimentos e devia ter encerrado isso antes, peço desculpa.
—Não é sua culpa. — Veegan baixou o tom, parecendo mais calma diante da sinceridade de Seul. — Espero que esteja realizada agora que conseguiu o que queria.
—Eu consegui mais do que queria. — Sua mão apertou a minha.
—Ótimo. De qualquer forma, vim falar com você em particular.
—Está bem, entre. — Ela saiu de frente a porta e esperou que Veegan entrasse antes de me olhar, abraçando meu pescoço e beijando meus lábios de maneira intensa. Seguro seu rosto em mãos, retribuindo a sua investida, sentindo seu corpo mais quente como jamais antes. — Deu certo. — Ela sussurrou, seus dedos deslizando pelo meu lábio inferior. — Agora somos iguais.
—Você ainda tem que se desenvolver. — Relembro, acariciando seu rosto. — Mas sim, teremos a mesma forma.
—Obrigada por cumprir com sua palavra. Mas agora não vou te deixar livre.
—Então sou eu quem agradeço.
Ela sorriu e selou meus lábios antes de entrar na casa atrás de Veegan. O que minha irmã poderia querer falar com ela agora? Decidi não interferir e busquei pelo outro coelho que tinha caçado, e começo a assar junto do outro. Seul precisaria treinar com mais intensidade agora que seu corpo aguentaria maiores períodos de treino e maior impacto. Ela não estava pronta ainda para receber meus poderes, mas ainda assim resistiu, então de certa forma deveria estar pronta para intensificarmos os ensinamentos.
Eu não sabia o que tanto havia para ser falado, mas elas levaram o tempo suficiente para eu assar o segundo coelho. Veegan parou a minha frente, soltando um longo suspiro.
—Partiremos amanhã de manhã, antes do nascer do sol. Espero você na minha linha de frente.
—Estarei lá. — Digo somente, e ela vai embora. Seul senta ao meu lado com uma expressão pensativa, distante, envolvendo o braço no meu e deitando a cabeça no meu ombro. — Ela não te convenceu a casar com ela, não é? — Ela riu baixinho, beijando a pele no meu ombro. — Com fome?
—Muita.
Servi um pedaço da carne para ela, e nós comemos em silêncio, aproveitando a brisa da noite fria, pela primeira vez Seul não reclamava do frio, e nem tremia. Não insisti em descobrir sobre o que falavam, sabia que se fosse importante ela me diria em algum momento.
—Vonü?
—O que?
—Você engravidou durante o ritual, certo?
—Sim. Por que?
—Você acha que há alguma chance disso se repetir agora? Comigo?
—Nosso sangue foi misturado. — Digo lentamente, pensando no assunto. Talvez houvesse uma porcentagem considerável, mas nunca tinha considerado a possibilidade de isso voltar a acontecer. — Não era comum na cultura dos voulcans duas mulheres ficarem juntas nesse sentido, então não há relatos disso ter acontecido.
—Você gostaria?
—Eu não sei. Nunca pensei em ter outro filho depois que Alinü nasceu. — Como eu poderia? Sequer desejei tê-la para começar. — Seria perigoso termos um filho se formando agora, nas vésperas da guerra.
—Eu sei. Ainda temos que nos preocupar com Alinü. — Ela suspirou profundamente, então me olhou com determinação. — Não podemos deixar que Alinü lute com Veegan.
—Eu sei. Seria uma luta injusta. Mas ainda não sei como farei isso.
—Seria ainda mais injusto porque Veegan está grávida.
—O que? De novo?
—Sim. Ela disse que não foi proposital, mas acabou descobrindo esses dias. — Seu olhar se tornou melancólico. — Tem um mês e algumas semanas, talvez dois meses.
—Na época em que fomos a Montes Gelados.
—Sim. No fim você tinha razão. Imagina se eu tivesse dado qualquer esperança a ela? Nosso destino estava ligado. — Isso me faria sorrir se ela não continuasse com a expressão de melancolia. — Eu nunca teria lugar na vida dela. E nunca seria capaz de abrir mão de você.
—Quão egoísta, Seul Wittebi. Querendo duas mulheres te servindo. — Eu estava brincando, mas havia um ar envergonhado quando ela recebeu essas palavras.
—Não sou uma boa cristã, eu sei. — Admitiu, eu somente sorrio, sem ousar julgá-la. — Mas agora sou uma mulher casada.
—Sim, você é.
—E você é o que quero. — Ela finalmente sorriu. — Então... Depois da guerra, Veegan vai te tornar líder do exército e dos graahkinianos. Alinü é jovem e ninguém a conhece. Mas você conhece os costumes e é segunda filha dos Del Thronttier.
—Eu nunca disse que queria a liderança. — Estreito os olhos, mas ela manteve o clima sutil como se falássemos do tempo e não da responsabilidade de liderar uma espécie que beirou a extinção.
—Não é para sempre. Vai ser provisório. Apenas durante o período delicado da gravidez. Então ela lutará com Alinü. Ela não abre mão disso.
—E você acha que Alinü vai esperar sentada a gravidez de Veegan findar me vendo na liderança?
—Alinü não te atacaria.
—Ela já atacou, mesmo que indiretamente, ao te amaldiçoar.
—Ela não pode fazer nada comigo agora, não precisa se preocupar.
—Você ainda não está pronta.
—Mas você vai estar. Quando assumir a liderança.
Suspiro, pensando no assunto. Assumir a liderança? Veegan devia estar desesperada se pensava que me passar a liderança resolveria seus problemas. Logo para mim, a irmã mais afastada, que não foi criada junto da família. Seul beijou meus lábios e voltou a comer, deixando claro que eu não precisava ter uma resposta agora.
Ficou decidido que Seul se passaria por doente durante a viagem, uma vez que não poderíamos disfarçar sua aparência no estágio inicial da transformação. Ela ficou coberta na carroça junto aos cavalos que ficaram mais atrás, carregando as armas e armaduras, além da comida. Veegan liderou ao lado de Alinü e meus irmãos, eu fiquei atrás, junto a Seul, certificando-me que ocorreria nenhum incidente, caso Alinü resolvesse terminar o que começou.
—A burca caiu bem em você, esposa. — Seul me provocou, suas unhas deslizando entre os cabelos, onde os chifres deviam incomodar.
—Se soubesse que bastasse isso para não vestir nada por baixo, teria colocado antes. — Pisco em sua direção de maneira sugestiva, ela acabou corando. — Como está se sentindo?
—Você não comentou que essas coisas incomodam tanto. — Ela apontou a própria cabeça, então ergueu as mangas para gesticular as poucas escamas que nasciam em sua pele. — Não há nada para amenizar o incômodo?
—Não. Você vai ter que se acostumar, então nem vai perceber.
Ela suspirou, remexendo-se desconfortável quando a carroça passou por uma sequência de buracos, fazendo-me uma careta para protestar. Ela queria o próprio cavalo, mas eu tinha que negar isso. O ruim de estar tão atrás, era cheirar as merd*s dos cavalos mais à frente, mais uma coisa para incomodar Seul, afinal.
Aquelas roupas eram desconfortáveis, pinicavam a pele e não esquentavam nada, nem mesmo o casaco de pele sobre meus ombros amenizavam o ar gelado que batia de maneira agressiva a cada quilômetro que avançávamos para o norte. Ninguém tinha nos parado para fazer perguntas, apenas encontramos outros cristãos que fizeram orações ou somente passaram reto. Até então tudo seguia de acordo com o plano. Aparentemente o frio afastou curiosos.
Foi assim que nossa procissão chegou inteira e sem conflitos em Montes Gelados, e tão logo Seul e eu falamos com o líder outra vez, todos foram abrigados do frio da melhor maneira diante do pequeno vilarejo, amontoados nas casas em busca de se esquentarem. Seul e eu fomos convidadas outra vez a ficar no salão principal junto de Veegan, que era a líder do exército.
—Vamos esperar até o natal para atacar. — Veegan anunciou numa reunião privada entre os irmãos na segunda noite que estávamos ali. — Nos passaremos pelos padres oficiais da realeza e entraremos na cidade sem criar alarde até ser tarde demais.
—Eles não comemoram o natal. — Seul relembrou. — Eles se passam por cristãos em frente ao rei, mas não seguem a bíblia.
—Eles pensarão que somos enviados do rei, então não podem recusar nossa entrada.
—Não sei se não desconfiariam de tantos de uma vez entrando na cidade.
—Não iremos todos. Cinquenta de nós entrará durante o dia. E no meio da noite abrirá os portões para o restante entrar.
—Eles podem desconfiar desses cinquentas e serão menos cinquenta no exército. — Vigur pontuou carrancudo.
—Não estaremos armados. Não há motivos para eles tentarem nos atacar até que vocês entrem.
—Então há ainda menos motivos para conseguirem abrir esses portões.
—E não conseguiremos atravessar os portões ou sitiar a cidade durante um tempo tão ruim.
Isso era verdade. Nevava forte desde que chegamos, e a neve começava a se acumular na estrada. Nesse ritmo, quem passaria fome éramos nós. Veegan estava certa em agir logo e arriscar um ataque surpresa no meio da noite, mas estava se arriscando demais.
—Leve metade dos magos. Eles saberão agir melhor como padres do que seguidores de Graah que nunca entraram numa igreja. — Sugiro, olhando para Veegan. — Assim haverá menos chances de desconfiarem da sua história.
—Ou é a chance perfeita para eles alertarem dos nossos planos. — Volinüs pontuou. — Ainda mais se Veegan estiver lá. Se já não estiverem esperando por nós.
—Eu sobrevoei o lugar quando chegamos. Não há movimento além do esperado em Tieres. — Afirmo em tom ameno. — Se tentarmos invadir pelo método tradicional, podemos perder muito mais que cinquenta naqueles muros.
—Se tiverem outra estratégia, podem falar. — Veegan falou, olhando entre Volinüs e Vigur, mas eles não disseram nada. — Continue, Vonü.
—Eles podem bancar os padres desabrigados em Tieres, nessa tempestade será fácil conseguirem abrigo por uma noite lá, o povo do mar sendo cristão ou não. — Volto a falar, olhando para ela do outro lado da fogueira central. — Eles terão o trabalho de convencer que são da igreja.
—Eu poderia sugerir que os jovens fizessem parte desse grupo, como Verg. — Seul falou, eu a olhei, todos a olhamos, porque era uma ideia idiota, mas o filho de Veegan pareceu estupidamente interessado.
—Enlouqueceu, Seul? — Veegan ecoou o pensamento de todos. — Os jovens nunca estiveram numa guerra. Seriam presas fáceis.
—Exatamente por isso. — Seul sorriu, levantando-se e contornando a lareira até onde eles estavam. — Padres sempre estão com os aprendizes que se tornarão padres. O povo do mar já deve estar desconfiado por causa das lutas recentes. Mas se verem jovens e velhos, nunca vão pensar que tem um exército esperando para invadir aqueles portões.
—E deixar nossa vitória para entrar em Tieres nas mãos de crianças inexperientes? — Vigur falou com ironia. — Você quer matar nosso futuro, cristã?
—Estou tentando ajudar vocês a mantê-los. — Falou na defensiva, então se voltou a Veegan. — Eu nunca colocaria a vida de seu filho em risco. Vonü fará parte do grupo. Ela pode caminhar sem que a vejam de noite, fazer ilusões para que ninguém a veja abrir o portão.
—Isso poderia ajudar para conseguirmos mais tempo de entrar sem criar alarde antes que seja tarde demais. — Vaanë concordou, coçando sua longa barba, então me olhou. — Você consegue manter a ilusão de que o portão está fechado por quanto tempo?
—O suficiente, se vocês se apressarem. — Falo num sorriso de lado. — Seria complicado manter por muito tempo com tanta gente envolvida.
—Vai dar certo. — Verg falou pela primeira vez. — Eles estarão dormindo de bêbados na comemoração que fazem aos seus deuses. Não vão perceber o ataque até que seja tarde.
—Quer atacar pessoas desarmadas? — Veegan o encarou, eu sabia que era um teste.
—Por que não? Você disse que eles utilizaram o mar para atacar! — Falou na defensiva. — Se eles estão conquistando outras cidades, não merecem qualquer misericórdia.
—Então está disposto a matar qualquer pessoa que ver pela frente.
—Claro, se for necessário.
—Está bem. Você irá liderar o grupo para Tieres amanhã à noite, faça o que for necessário.
—Estamos perdidos. — Vigur falou com humor, fazendo os demais rirem.
—Estarei honrado, mãe. — Verg sorriu, olhando para ela.
Veegan estava se retirando da linha de frente, e com isso dando ao filho a chance de adquirir alguma reputação. No fim da reunião, depois que Veegan falou com os magos, ela me fez esperar até que ninguém estivesse por perto, e manteve o tom baixo mesmo assim.
—Seul te contou? — Ela perguntou, estreitando os olhos, eu ergo as sobrancelhas, fingindo desentendimento. — Sobre a gravidez.
—Sim.
—Então? Você está de acordo?
—Sobre seu novo bebê? Por que seria contra?
—Não se faça de idiota, Vonü, não temos tempo para isso. Você aceita ser líder em Tieres enquanto estou grávida?
—E depois o que? Te devolvo e seu bebê é criado por idiotas?
—Vigur o criará junto aos seus filhos.
—Enquanto você morre ao lutar com minha filha e seus filhos ficam sem legado?
—Meus filhos terão o dever de derrotar os filhos dela.
—Então viveremos em guerra.
—Então o que sugere, Vonü? Eu dei minha palavra pela vida de sua esposa.
—Alinü não mataria Seul. Ela sabia que ganharia mais se somente ameaçasse. Há uma forma de evitar essa luta.
—E quebrar minha palavra?
—Jure seu filho a Alinü.
—Verg? Está propondo uma aliança entre família, Vonü?
—Não. — Olho sua barriga, mas ela se afasta no mesmo instante, chocada com a minha sugestão. — É seu segundo filho. Você continuaria na liderança por mais tempo. Ela criaria seu filho e talvez esqueça a obsessão pelo poder.
—Sequer ouse em repetir isso, Vonü. Se você não foi capaz de criar sua filha dentro dos nossos costumes, não tente corromper meu filho que sequer nasceu. — Ela decidiu me atacar, e acertou onde queria.
—Então arranje outra pessoa para assumir seu lugar. Depois da guerra vou embora.
—Então o que? Vai fugir do seu povo para sempre, Vonü? Vai se aliar a aqueles que tentaram nos exterminar?
—Não, Veegan. Só estou cansada de ser lembrada diariamente que não segui os nossos costumes, que não faço parte das decisões que realmente importam aqui. Então se você quer ser um mártir, que seja. Se não tem o desejo de ver seu filho crescer, que seja.
—E o que adiantou ver sua filha crescer?
Isso me enraiveceu, eu a segurei pelo colarinho da camisa e a balancei como uma boneca de palha, incapaz de me conter. Tão fácil para ela me julgar.
—Você teve que criar uma criança que nasceu da violência no seu corpo, Veegan? — Pergunto com raiva. — Alguém te violentou tão profundamente, que você teve que criar o resultado disso? Então não venha me julgar, Veegan. Eu não escolhi ter um filho.
—É por isso que você me odeia, não é? — Era a voz de Alinü, e por isso soltei Veegan, virando-me abruptamente e a encontrando logo ali, a expressão tomada em surpresa. — Eu nasci do ritual, e por isso você nunca me viu como filha.
—Há quanto tempo você está aqui? — Veegan a questionou, mas Alinü não desviou o olhar do meu. Não era para ela saber disso. Não dessa forma.
—Me responda!
—Vamos dar uma volta. — Consigo dizer, sentindo minha boca seca e as palavras saindo lentas e mecânicas. — Então eu te respondo.
Somente olho para Veegan antes de sair do salão, colocando o casaco sobre os meus ombros enquanto cruzava os braços, desconfortável na tempestade de neve. Alinü me seguiu, e ficamos em silêncio enquanto andávamos pelas casas pequenas do vilarejo, as ruas desertas e cobertas de neve que quase tinham apagado por completo as pegadas dos cavalos de mais cedo. Alinü se manteve na forma humana, mas de forma teimosa não utilizou qualquer casaco sobre os ombros.
—Alinü... Eu devia ter contado desde o início. Mas eu sempre soube que não conseguiria. — Digo num suspiro, movendo os dedos nos braços, sentindo um frio que vinha por dentro. — Eu não sabia os métodos do ritual, só descobri quando era tarde demais para voltar atrás.
—Você não me escolheu. — Ela falou baixo, em tom magoado, eu sequer precisava confirmar. — Por isso nunca me viu como filha. Nunca me chamou de sua. Por isso nunca me ensinou seus costumes. Nem mesmo meu nome segue a tradição.
—Eu pensei que com o tempo seria capaz de te ver como filha. Então te criei como minha aprendiz, achando que conseguiria te distanciar dos genes do seu pai.
—Mas não conseguiu, então tentou se livrar de mim depois que perdi a luta.
—E você tentou se vingar ao amaldiçoar Seul, mesmo tendo sido uma luta justa, você buscou vingança.
—Eu queria afastá-la de você, então quem sabe você me olharia diferente. Mas então você matou Hiver.
—Eu não matei. — Viro o rosto em sua direção, suspirando com sua descrença. — Ela me contou dos seus planos, então deixei que ela vivesse. Achei que ela pudesse ter procurado você depois disso.
Ela balançou a cabeça, frustrada, eu suspirei, desviando o olhar para frente, sem saber o que dizer sobre isso. Alinü realmente gostava de Hiver, mas notavelmente não era retribuída da mesma forma. Isso era horrível, depois de tudo que Alinü tinha feito, não a desejava uma vida solitária.
—Sinto muito sobre isso. Se você tivesse me dito desde do começo dos seus sentimentos por ela, eu nunca teria permitido qualquer aproximação, Ali.
—Ela ama você. Ela te queria. O que adiantaria eu contar?
—Ajudaria você a não ter rancor sobre eu ter dormido com a mulher que você ama, para começar. Mas acho que também falhei em criar uma relação de confiança com você.
—Você está errada. Eu sempre soube que podia contar com você. Mas nunca consegui te convencer do mesmo.
—Você sempre foi impulsiva, Ali, agia com as emoções. Enquanto não souber canalizar isso, vai destruir tudo antes mesmo de construir.
—Eu só queria te deixar orgulhosa.
Nós paramos de andar quando chegamos na casa que ela estava ficando, e eu a olhei nos olhos, ficando em silêncio por um longo momento. Alinü não era uma criatura terrível como o pai, mas eu sempre soube que se esforçava para me impressionar. O erro tinha sido todo meu, em não reconhecer o que estava fazendo, e agora ela tinha chegado ao extremo por culpa minha.
—Se quer me deixar orgulhosa, então desista de lutar contra Veegan. — Seguro seus ombros, sentindo meus dedos congelados. Ela estreitou os olhos para o meu pedido, mas não me afastou. — Ela é minha irmã, ela também é sua família.
—Mas a luta-
—Vai acontecer. Veegan não abriria mão disso e eu não te pediria o contrário. Mas você mesma a ouviu. Ela está grávida, ela terá que cuidar do filho que virá. Mas sua luta vai ter que esperar.
—Você não quer que eu seja líder. — A forma como ela falou fez parecer uma pergunta.
—Veegan passou anos para aprender a fazer isso. Se você sente que deve assumir o lugar dela, Ali, então você tem que aprender a ser líder. Tem que aprender os costumes.
—Você me ensinaria? Você voltaria a me considerar graahkiniana se eu aprendesse?
—Se você se esforçar, eu tenho certeza de que vai aprender a ser graahkiniana, Ali. E se tomar como compromisso, eu mudarei seu nome, e você será Del Trhonttier.
—Você fará isso? — Ela pareceu duvidar, eu acabei sorrindo, subindo as mãos para o seu rosto. — Você me reconheceria como filha?
—Sim. Farei isso.
Ela hesitou, mas acabou sorrindo e me abraçou. Eu a apertei em meus braços, acariciando seus cabelos e aspirando seu cheiro forte de colônia, fechando os olhos para aproveitar o contato. Talvez Graah estivesse me dando uma segunda chance, afinal.
Fim do capítulo
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