O tempo é aliado do bom planejamento
Hiver me acordou com sutis toques no rosto, descendo pelo meu pescoço, o que me fez rir. Com a percepção de que estava acordada, ela continuou descendo pelo meu corpo, separando minhas pernas. Olho para ela, sorrindo para a sua animação matinal, em resposta ela segurou minha mão e a colocou sobre sua cabeça, meus dedos envolvendo quase que por instinto entre seus cabelos, guiando-a para o ponto onde a queria. Ela não hesitou, sua língua produzindo círculos e seus lábios fazendo o trabalho principal, oferecendo-me prazer sem cessar até o fim.
Ficamos um tempo deitadas em silêncio, ouvindo a movimentação das pessoas lá fora. Já havia passado dois meses em Tamber, e os ventos do inverno começavam a fazer meus pelos eriçarem pela manhã. Não imaginava que passaria tanto tempo num lugar desses, que acataria a uma guerra, mas sabia no fundo que era o que tinha que fazer. Seria desonrada se deixasse meus irmãos lutarem sozinhos. E talvez fosse o certo a fazer.
Duas batidas fortes na porta, uma pausa e outras três batidas me fizeram levantar da cama. Eram Vigur e Vaanë. Duas batidas para sinalizarem os dois primeiros filhos, e outras três batidas, para sinalizar os demais, era um código em nossa família quando éramos pequenos. Despedi-me de Hiver e os segui para a rua, criticando os dois grossos casacos de pele que estavam sobre seus ombros quando o inverno ainda não tinha chego.
Aqueles dois eram idênticos. Pelo menos não eram idiotas em tentar se parecer, e se diferenciavam o suficiente para eu distingui-los. Vigur era mais alto que Vaanë, ambos tinham os cabelos de cobre, mas Vigur o raspou nas laterais e atrás, deixando um tufo ridículo no topo, além de não deixar a barba crescer. Vaanë tinha os cabelos compridos presos num rabo frouxo, assim como a sua barba, presa com um anel de prata. Ambos tinham olhos verdes, como eu.
—Se você tiver um filho, ele vai nascer pelo meio de suas pernas ou será um ovo? — Vaanë questionou, e Vigur riu da piada.
—Se fosse seu filho nasceria pelo cu de tanto que você fala merd*. — Retruco, mas acabo rindo junto deles.
—É por isso que colocamos os filhos no meio das pernas das mulheres. Para não ter erro. — Vigur falou como se aquilo tivesse lógica. Eram dois idiotas. — Os cristãos colocam na bunda e nascem bastardos.
—Veegan está testando a teoria. — Vaanë apontou para uma taverna, onde Veegan bebia com o filho e outro homem que se parecia com ele. — Aquela bastarda deve estar escondida no armário agora que Ehfae voltou.
—Do que estão falando? — Pergunto sem entender, passando por Veegan e indo para o fundo, numa mesa mais afastada.
—Ehfae é pai de Verg. Ele nunca deixaria que a mãe do seu filho dormisse com uma bastarda. — Vigur explicou enquanto Vaanë nos pedia cerveja e comida.
—Seul? — Arqueio as sobrancelhas. — Ela não é uma bastarda. Da mesma forma que ela tem tentado manter o respeito pelo nosso povo, vocês deviam manter por ela. E ela continua debaixo do teto de Veegan.
—Esqueci que ela era a sua protegida também. — Vaanë arqueou as sobrancelhas quando estreito os olhos, deixando claro minha contrariedade sobre o assunto. — E Ehfae não sabe sobre Seul estar dormindo debaixo do teto de Veegan.
—E deveria?
Eles riram e eu continuei sem entender. Eventualmente a comida chegou e nos ocupamos em comer enquanto falávamos sobre qualquer coisa para ocupar o tempo. Eu terminei primeiro e fui para a rua enquanto os dois iam cagar, e Veegan estava lá, parecendo que me esperava.
—Bom te ver. — Ela falou de maneira amistosa e ofereceu a mão.
—Você precisa de algo? — Aperto sua mão, encarando seus olhos.
—Direto ao ponto. — Ela riu, descontraída. — Tem algo que quero saber de você.
—Pergunte.
—Por que Seul é sua aprendiz?
—Não deveria perguntar isso a ela? — Estreito os olhos, cruzando os braços e estranhando a questão. — Afinal... ela está morando com você, não é?
—Ela disse que ganhou uma luta. — Ela ignorou minha pergunta. — Mas não disse com quem. E suspeito que você tenha dado essa tarefa com a esperança de que ela morresse. Eu nunca acreditaria que alguém de nossa família ensinaria algo para uma cristã.
—Até certo ponto você está certa. Quis que Seul morresse nessa luta, mas não porque ela é cristã. Mas porque eu sabia que se ela ganhasse eu teria que abrir mão de algo muito maior que meu orgulho.
—E o que seria isso?
—Minha filha.
—O que? — Ela se espantou. — Você teve uma filha?
—Foi o preço que paguei por essa forma que você vê.
—Você deixou que Seul matasse sua filha?
—Eu fiz um trato com Seul. Minha filha ficaria viva, e ela teria o que quisesse.
—E ela quer seu poder. — Constatou, e vagarosamente concordo, porque apesar de tudo era o que Seul queria — Você não pode dar isso a ela.
—Posso. Mas não é tão simples. Ela escolheu ser treinada. Ela sabe o que é necessário acontecer para ter poder.
—O que? Algum ritual?
—Você reconhece minha forma atual, Veegan. Eu sei que sim. Então você sabe a resposta. Ou não estaria aqui me fazendo essas perguntas.
Seu rosto se torceu com nojo, como se tivesse ch*pado limão, então me atacou, invadindo meu espaço pessoal e pressionando a ponta de sua espada na minha barriga. Então foi assim que eu soube que minha irmã mais velha, Veegan Del Thronttier, líder do exército graahkiniano, estava amando Seul Wittebi, uma cristã que era minha discípula. Talvez ela tenha visto o que pensei, porque pressionou mais firme a lâmina no meu abdômen, arrancando sangue e causando incômodo.
—Você não fará nada com ela, Vonü. Você não dará nenhum poder a ela. Você não... Você não tem o direito. — Falou entredentes, deixando a raiva transparecer.
—Você ainda é minha irmã apesar de eu ter mais poder agora, Veegan. Meu sangue é graahkiniano. O de Seul vai continuar sendo de magos. — Digo com paciência. O que estava querendo dizer com isso, era que se Seul se submetesse a mim, ela continuaria sendo cristã e mago. E sobretudo, eu não lutaria com alguém que tinha meu sangue por causa de uma amante. — No fim, não sou eu quem decido, Veegan. — Ergo minha mão direita e mostro a cicatriz na palma. — Ela quis isso.
—Se você não decidisse isso, você mesma já a teria matado.
—Eu honro minha palavra, ao contrário de muitos aqui. E prometi ao pai dela que não a deixaria morrer. Estamos ligadas para sempre Veegan. Não é algo que você possa alterar. O destino está traçado.
Se ela tentaria me matar mesmo assim eu não fiquei sabendo, Vaanë e Vigur acabaram de cagar e a empurraram para longe, gritando sobre sermos uma família e que não deveríamos lutar entre nós e que haveria cristãos para matarmos em breve. Havíamos atraído atenção, claro, mas Veegan decidiu que não era bom para a sua reputação e foi embora. Segui meus irmãos automaticamente, sabia que eles falavam comigo, mas não conseguia prestar atenção.
Que ironia do destino, era só o que ecoava em minha cabeça, tornar alguém como Veegan submissa e cega aos sentimentos por uma humana. Veegan era autoritária e mimada. Todos os primeiros filhos eram assim quando se nascem numa família importante e influente. Mas Veegan era a primogênita, então era natural que ela fosse privilegiada pela família, porque assumiria as principais posses e a liderança da família no tempo certo. Teria seu exército e comandaria os graahkinianos se a família Vondelür respeitasse o tratado e compartilhasse a liderança a cada meio século, o tempo necessário para uma geração. O natural era Veegan ficar com alguém da família Vondelür naquela época. Mas claro que ela tinha que querer ficar com Seul.
Visões tentaram invadir minha cabeça, e até certo ponto conseguiram. Eu via Alinü num lago de sangue, e Seul sobrevoava o lago com asas que possuíam plumas brancas. Tentei afastar a imagem, mas ainda vi Hiver fincar Raio Lacerante na barriga de Veegan. Eu sabia que deveria interpretar o que via se quisesse entender o que estava sendo alertada, mas fazia muito tempo que não interpretava minhas visões.
Vi Seul num estábulo perto das margens da cidade, mas quando me aproximei ela desapareceu. Ela não tinha essa habilidade. Mas seu espectro tinha. Era como desvendar o significado de outra visão. Se ela estava usando seu espectro, queria me atrair para algum lugar. Então ela devia querer treinar e me atacar de surpresa, como se fosse alguma novidade.
Eu me despedi dos meus irmãos, e levantei voo para além da cidade, procurando por algum sinal de Seul. Dessa vez ela tinha se afastado mais que o habitual, eu só via as margens de Tamber quando a encontrei sentada debaixo de uma árvore, algo peculiar. Não havia mais nada ao redor, e eu não me lembrava de haver uma árvore tão grande quando viemos para o vilarejo. Estávamos nas vésperas do inverno, e a árvore possuía as folhas mais verdes. Pousei a sua frente, avançando e a fazendo levantar pelo colarinho de sua camisa, pressionando seu corpo contra a madeira. Ela riu, movendo os braços para abraçar meu pescoço.
—Você acabou de presenciar a maior ilusão que eu já fiz. — Ela falou orgulhosa de si mesma, sem se incomodar pela forma que a abordei. — A árvore não existe. E quem olhar em nossa direção nos verá treinando como sempre fazemos diariamente.
—Se não vamos treinar de verdade, por que me atraiu aqui, Seul? E por que o disfarce? E por que está me abraçando?
—Preciso manter contato se quiser manter você na ilusão.
—E por que criou uma ilusão?
—Preciso saber de algo, e não quero que ninguém desconfie que estou te perguntando isso. — Então ela ficou séria e me analisou por alguns instantes, movendo as mãos até meus ombros. — Você quer ir para a guerra, Vonü?
—Sim, você sabe disso. — Digo impaciente, afastando suas mãos, mas ela as segura e entrelaça os dedos nos meus.
—Estou falando sério, Vonü. Você não é como os outros. Você não está com fome de matar outras pessoas como os outros estão. Então me responda. Quer mesmo ir a essa guerra?
Suspiro, olhando de maneira mais dura em seus olhos, mas ela não se deixava afetar. Ela já não se intimidava como antigamente. Ela sequer me temia. O brilho em seus olhos revelava que ela tinha algum plano em mente, e eu o reconhecia daquele dia nem tão distante, quando fizemos um trato em minha residência em Marheeve.
—Não quero lutar tanto quanto você, Seul. — Admito em derrota, ela somente me escuta. — Eu sei que meu povo merece aquela cidade, mas não me anima ter que matar para isso.
—Você é gentil, Vonü. Você tem todo esse poder, mas nunca o usaria para dominar. — Ela falava com uma certeza que me assustava. Seul realmente estava tentando me conhecer? — Eu ainda não encontrei uma forma de impedir a guerra, mas posso ajudar a impedir um massacre.
—De que forma?
—Preciso voltar a Marheeve.
—Voltamos há um mês.
—Um mês e 8 dias. Preciso voltar amanhã.
—Sozinha? Por que?
—Você vai comigo. E mais ninguém. — Então ela não queria que Hiver fosse.
—O que você tem para fazer lá, Seul?
—Confie em mim por cinco minutos, Vonü. Preciso que avise que iremos até Marheeve amanhã. Eu consigo os cavalos.
—Você não vai me dizer o que está planejando e quer que eu siga suas ordens?
—Eu sabia que você entenderia. Partiremos antes do nascer do sol. — Ela sorriu e soltou minhas mãos, a árvore desaparecendo no mesmo instante.
Então de repente eu estava seguindo as ordens de Seul Wittebi. Eu não queria interpretar a visão que tive, mas tinha a sensação de que os planos dela tinham ligação com isso.
Isso não impediu Hiver de desconfiar do que faria quando disse que ela não voltaria comigo, e que eu viajaria sozinha com Seul.
—Será uma viagem rápida, não há necessidade de você se aventurar com o tempo instável. — Beijo seus lábios para acalmá-la, segurando seu rosto em mãos, seus olhos desconfiados cedendo aos meus toques. — Fique aqui, se mantenha aquecida, e eu voltarei antes do inverno. — Era o que eu esperava.
Juntei mais alimentos do que o necessário para um dia de viagem, não deixei que Hiver notasse. Naquela noite não dormi, porque a visão ainda atormentava meus pensamentos, e cada vez mais que tentava esquecer, a cena repetia em minha cabeça uma vez atrás da outra. O que Graah queria que eu soubesse?
No dia seguinte, Seul me esperava na saída de Tamber, com dois cavalos, já montada no próprio. Ainda estava escuro. Não falei nada quando montei, então começamos a trotar sem pressa pela estrada em direção a Marheeve.
—Se estivesse em Tamber, daria para nos ver? — Ela quebrou o silêncio depois de quase uma hora que começamos a viagem.
—Se estivesse voando, sim. A estrada é bastante aberta.
Ela me olhou e sorriu, aproximando o cavalo do meu, simplesmente saltando para a minha sela, enquanto seu espectro se projetava acima do outro cavalo. Sem avisos, ela assumiu os arreios e guiou meu cavalo a leste, batendo na barriga do animal e o fazendo correr.
—Para onde está indo com pressa, Seul? — Pergunto em seu ouvido, apoiando as mãos em sua cintura para não perder o equilíbrio.
—Temos que nos afastar do outro cavalo depressa, é claro. Alinü precisa pensar que nos separamos e eu estou sozinha. — Ela gritou contra o vento.
—Alinü está em Tamber? — Aquilo me chocou. Sequer considerei a hipótese.
—Sim. Eu a vi quando voltamos de Marheeve. Então soube que havia algo sendo tramado. E eu não vou ficar esperando acontecer quando é meu pescoço que está correndo perigo.
—Você vai me explicar o que está acontecendo, Seul? — Agora estava com raiva, porque Seul tinha me escondido fatos por tempo demais. — Se não fizer isso agora eu juro que-
—Desculpa, Vonü. Eu queria ter certeza. E também não queria te trazer mais problemas, ainda mais quando envolvem sua filha.
—Você só me traz problemas, Seul. — Digo rispidamente.
E isso era verdade. Desde que apareceu em minha vida, tive que abrir mão de meu castelo, de minha reputação, minha filha, e agora era motivo de conflitos com Veegan. Ela ficou em silêncio, talvez a tivesse magoado, e isso ficou evidente a cada momento que o dia clareou e a chuva caiu. Eventualmente ela parou, já no meio da tarde, encontrando abrigo numa cabana abandonada, caindo aos pedaços, mas ela a consertou e construiu um pequeno abrigo para o cavalo e o alimentou, tudo em silêncio, sem me dirigir sequer um olhar. Comi num canto, vendo-a quieta do outro lado da cabana, desconfortável.
Quando a chuva passou e nossas roupas estavam secas, ela subiu sozinha no cavalo e gesticulou para me impedir de subir também, para a minha confusão. Ela somente me olhou, em silêncio por um longo momento.
—Dê sua mão. — Reviro os olhos, mas estico a mão direita para ela. — Eu te liberto do seu juramento, Vonü Del Trhonttier. — Ela cortou minha mão com Raio Lacerante, formando um “x” na cicatriz anterior, o sangue se sucedendo a minha dor que ela logo tratou de cicatrizar. — Você não me deve mais nada agora. Pode fazer o que quiser da vida.
—Você não pode estar levando isso a sério. — Digo incrédula. — Não depois de tudo. Você não desistiria tão fácil de possuir meus poderes.
—Eu não desisti de obter poder. Eu desisti de tentar manter uma boa relação com você. Estou cansada de sua rudeza. Estou exausta de suas desconfianças, de sua incapacidade de superar o passado. — Falou rapidamente, mas não havia raiva, ela parecia estranhamente conformada com o que dizia, como se já tivesse dito essas palavras. — Eu entendi que você nunca vai me perdoar. Também entendi que você nunca vai deixar de ter nojo de mim. Então não vou insistir. Eu tenho minha dignidade, e nem mesmo seu poder é capaz de destruir isso. Então é isso. Adeus.
—Seul, espere! — Gritei quando ela me virou as costas, mas não parou o cavalo. — Você vai morrer sozinha! Não seja idiota. Alinü irá atrás de você se souber que não estou com você.
Ela me ignorou e partiu, instigando o cavalo a ir mais rápido. Eu não acreditava no que estava acontecendo. Seul Wittebi tinha desistido dos meus poderes? Tinha desistido da maior ambição da sua vida nos últimos anos? Não, claro que não. Ela não era tão inconsequente a esse ponto. Ela devia ter algum plano em mente.
Eu podia simplesmente não me importar e deixar que ela seguisse o caminho que quisesse. Estaria livre da obrigação de mantê-la viva e de conviver com a constante lembrança de que ela estava perto de mim por causa do meu poder. Mas por que eu não conseguia simplesmente vê-la seguir sozinha o caminho que escolheu? Não parecia certo. Não me deixava aliviada.
Gritei em frustração, mas agora sabia que meu caminho seguia ao lado de Seul, gostando ou não do fato. Eu não sabia o que era, mas havia algo que me dizia para ir atrás dela, e assim o fiz. Abri minhas asas e a segui. Pousei ainda com o cavalo em movimento, sentando atrás dela, prendendo os dedos em sua barriga quando ela tentou me acertar com o cotovelo, mantendo meu corpo colado em suas costas.
—Pode parecer que estou aqui por obrigação, mas não é verdade. Não mais. — Digo no seu ouvido. — Estou tão presa a você quanto você está a mim. Então é melhor lidarmos com isso.
—Agora você chegou a essa brilhante solução? — Perguntou com raiva, mas pelo menos parou de tentar me acertar. — Você é ridícula, Vonü.
—Você vai me contar agora para onde estamos indo?
—Para as montanhas, conseguir aliados, e talvez ter uma visão privilegiada de Tieres.
Então eu soube o plano arriscado de Seul de conseguir aliança dos magos que viviam nas montanhas perto das Ilhas Tieres, que estavam sendo atacados pelo povo do mar. Estava surpresa por ela possuir tantas informações e ter guardado para si, mas julguei que ela tivesse seus próprios motivos.
—O que acha que Alinü está planejando? — Pergunto, ainda que pudesse imaginar a resposta.
—Uma forma de me matar que devolva um mínimo de dignidade a ela. Mas eu vou dar um pouco de trabalho a ela.
—E Veegan sabe que você está indo para o norte e não para Marheeve?
—Você acha que ela me escutaria se dissesse que magos são possíveis aliados na sua guerra? — Perguntou com ironia.
—Você ficaria surpresa. Veegan te escutaria mais que a mim.
—É alguma piada? Ela nunca me escuta quando sugiro as coisas para ela. Eu diria sobre os magos, mas ela nunca aceita comentários sobre como ela lida com o exército. Se eu não apresentar qualquer prova, ela sequer deixará que eu fale até o fim. — Havia frustração em sua voz, e eu a senti suspirar. — Vocês são orgulhosos demais.
—A única dica que eu daria a você é deixar de morar com ela.
—Por que eu faria isso?
—Porque ela vai tentar te impedir de ter mais poder que ela.
—E o que isso tem a... Ah. Não me entenda mal. — Ela riu, parecendo sem graça de repente. — Eu não mantenho nenhuma relação com Veegan. Ela somente me abriga por conveniência, como você mesma disse.
—Dormir com uma amaldiçoada é pecado, Seul? — Eu a provoco.
—Não. Mas enganá-la seria errado de minha parte.
—Então eu repito. Deixe de morar com ela, Seul. O efeito é o mesmo.
Ela voltou a suspirar e ficar em silêncio. A noite não demoraria a chegar e ela diminuiu a velocidade, a brisa suave fazendo seus cabelos loiros voarem sobre meu ombro, seu cheiro de suor e perfume inundando minhas narinas. Era doce, agradável. Ela recostou o corpo no meu, relaxando, as mãos se afrouxando nos estribos, permitindo que eu guiasse o cavalo. Devia estar exausta. Ela tinha me dito que utilizou mais ilusões para simular que estávamos separadas, o que achei exagero, mas também impressionante, porque ela tinha melhorado consideravelmente suas habilidades de ilusões, conseguindo mantê-las mesmo à distância.
—Por que vocês estavam discutindo ontem? — Ela perguntou depois de um tempo. — Eu vi a confusão, mas não entendi o motivo.
—Você conseguiu uma amante ciumenta. — Digo em tom bom humorado para que ela não encontrasse nenhuma pista sobre a gravidade do ocorrido.
—Não somos amantes. — Ela falou com paciência. — Ela sabe sobre o ritual?
—Ela conheceu os voulcans, então acho que ela já sabia disso antes.
—Sinto muito sobre isso. Quando voltarmos eu deixarei as coisas claras para ela. Espero não ter lhe causado problemas. Veegan consegue ser uma verdadeira idiota.
—Não se preocupe.
—Você pareceu verdadeiramente incomodada depois desse confronto.
—Veegan é minha irmã.
—E eu não deveria criar conflitos nessa relação. Então seguirei seu conselho e deixarei de morar na casa dela. — Ela suspirou, deitando a cabeça no meu ombro, a testa se apoiando no meu maxilar.
—Então acharei um lugar melhor para você. — Digo num tom mais baixo, sentindo seu corpo se apoiar no meu por completo, seus olhos fechados. — Vou encontrar um lugar para passarmos a noite.
Mas ela já tinha dormido. Quando a noite caiu, tive que improvisar um abrigo, utilizando ilusões para termos um teto em caso de a chuva retornar. Seul não acordou em momento nenhum, nem mesmo quando a tirei do cavalo e a levei para uma das camas que produzi. Não era o melhor local, mas julguei que fosse melhor que as camas que haviam em Tamber.
Havia sido um dia exaustivo. Seul tinha me dispensado de minhas obrigações e eu fui atrás dela mesmo assim. O que mais me incomodava era a visão. Alinü estava em Tamber, queria se vingar de Seul, e o rio de sangue que tinha visto poderia significar a morte de alguém. Talvez de Seul, seria a resposta mais óbvia. Mas por que Seul estava sobrevoando o rio com asas de plumas? Significaria que passaremos pelo ritual? Seul obteria poder? Mas a forma que possuía na visão não coincidia com a forma de um voulcan. E por que Hiver estaria tentando matar Veegan? Talvez não fosse exatamente uma tentativa, talvez fosse uma investida.
—Vonü?
Eu nunca vi Hiver lutar, e sequer considerava que ela fosse uma oponente. Veegan nunca perderia tão fácil.
—Vonü...
Se Alinü tinha tentado matar Seul, e Hiver lutava contra Veegan...
—Vonü! Acorde!
Seul estava em cima de mim, balançando meu rosto. Eu tinha dormido? Não, estava imersa na visão. Seul me olhava com preocupação, seus dedos agora fazendo círculos quase que imperceptivelmente nas laterais do meu rosto. Respiro fundo, olhando em seus olhos azuis, subindo minhas próprias mãos em seu rosto, procurando pelas palavras certas.
—Você estava tendo um pesadelo? — Ela perguntou, a voz baixa, como se temesse quebrar o silêncio.
—De certa forma. — Admito, deslizando os olhos pelo seu corpo. — Mas ainda não consigo definir o significado.
—Sempre costuma ter algo relacionado com nossos medos.
—Talvez.
—E do que você tem medo?
Não respondi. Quando percebi, ela tirava os trajes, ficando nua acima de mim. Eu já tinha visto Seul nua antes, e dessa vez algo não parecia certo. As linhas de seu corpo continuavam as mesmas. Os seios redondos, pequenos, com aureolas rosadas. O abdômen magro e frágil, praticamente com aspecto doente, com as costelas marcadas. As coxas eram finas e as pernas compridas, dobradas na minha cintura. Até então era como me lembrava dela, antes dos treinamentos.
Então ela se inclinou e me beijou. Foi um mero roçar de lábios até eu sentir algo escorrer pela minha barriga. Olhei para baixo. Havia sangue, e não era o meu. Seul tinha um corte no ventre, e a hemorragia nos colocava numa poça de sangue. Havia uma adaga em minha mão, fincada nela. Seus olhos estavam arregalados quando a olhei, sangue escorrendo pelos cantos dos seus lábios. Seul estava morrendo nos meus braços.
Fim do capítulo
Vonü --> o ü é mais fechado, assim como Alinü.
Seul Wittebi --> o W tem som de V, e Seul é dito mais rápido, como quando falamos "seu" mesmo, com o "u" mais fechado.
Marheeve --> o "ee" tem som de i mesmo, mas se lê mar-ive.
Hiver --> h com som de r mesmo
Graah --> como tem h no final, tem o som mais aberto.
Voulcan --> na história dos voulcans, o som é mais diferente, o V tem som de F, fica foucan para pronunciar.
Ehfae --> êfaê, basicamente.
Olha só, parece que elas estão mais próximas :) e Seul está aprontando, para variar :D
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]