Aqueles que estão divididos numa guerra podem se unir por uma causa
—O que ela está fazendo aqui? — Foi a primeira coisa que ouvi quando sai do quarto de Veegan pela manhã, encontrando-a já na mesa junto do que defini ser Verg, seu filho, que pulou da mesa e me apontou uma espada. — Você invadiu minha casa?
—Sua casa? — Veegan riu, sem se dar ao trabalho de levantar. — Eu disse que temos uma convidada. Se você apontar a arma de novo para Seul, você quem vai ser convidado a se retirar da casa. — Sua voz era cortante. — Eu já falei que não quero ninguém com armas na mesa.
—Estou desarmada. — Alego, finalmente me aproximando e sentando no lugar vago ao lado de Veegan. — Mas se continuar me apontando essa espada, você voltará a dormir.
—Guarde essa espada, Verg. — Veegan falou em tom autoritário, empurrando o braço dele de maneira abrupta. — Ou vou tirá-la de você de uma vez.
—Por que você chamou essa cristã para a nossa mesa? — Ele ainda estava indignado, mas guardou a espada e voltou a se sentar.
—Eu não te devo satisfação. Quem te deu ordens para atacar uma pessoa?
—Uma cristã? Desde quando precisamos de ordem para isso? — Ele debochou.
—Você precisa, porque é um idiota que não sabe degolar uma galinha, que dirá ter uma luta decente com Seul.
Não digo nada, cruzando os dedos em frente ao rosto e baixando a cabeça, sussurrando a oração matinal sem pressa, concentrada nas palavras até o fim, fazendo o sinal da cruz em frente ao peito antes de abrir os olhos outra vez, encontrando a confusão nos rostos de ambos.
—Você estava... rezando? — Veegan estreitou os olhos, confusa.
—Cristãos estão sempre rezando. — Verg reclama.
—Estou agradecendo a Deus por esta refeição. — Justifico com paciência, começando a me servir, sentindo meu estômago torcer com fome.
—Devia agradecer minha mãe que gastou dinheiro nessa refeição.
—Eu rezei por ela. — Sorrio para ele, sem me afetar. — Você agradece sua mãe por te alimentar?
—Sim, tentando matar minha convidada. — Veegan reclamou enquanto mastigava um pedaço de pão.
—Como eu saberia que você convidaria logo ela? — Ele me olhou com desprezo, logo em seguida se voltando a mãe. — Você deve ter perdido alguma aposta depois que perdeu aquela luta.
—Se eu não ganhei foi porque você conseguiu atrapalhar tudo, para variar. Se não passasse seu tempo no meio das pernas das empregadas talvez escutasse quando digo para não arranjar brigas que não possa vencer.
—Quem disse que não posso vencer? — Seu rosto ficou vermelho. — Eu só fui pego desprevenido.
—Enquanto tentava me atacar de surpresa. — Comento em tom baixo, mas ele me encara como se tivesse levado um tapa enquanto Veegan o encarava com raiva.
—Mas eu devo estar criando um idiota se você sequer é capaz de criar uma armadilha antes de atacar como um animal. — Ela falou rispidamente. — Cancelarei o que tenho para fazer hoje e vou te ensinar a abordar seus inimigos.
—Eu não serei cobaia, já aviso. — Sorrio para ela antes de voltar a comer, percebendo o clima se intensificar, mas o garoto não revidou mais nada, o que agradeci, afinal ela sabia colocar ordem na cria. — Encontrarei Vonü. Tem algum recado?
—Não. Mas sinta-se à vontade para voltar quando tiver terminado.
—Você quer que eu continue aqui?
—Por que não? — Ela segurou minha mão sobre a mesa. — Sinta-se em casa.
Não via porque recusar, por isso deixei minha bolsa em sua casa e fui à procura de Vonü, sem ter certeza onde a encontraria. Não foi nada difícil. Ela estava voando sobre o vilarejo, sem parecer atenta que eu a observava. Subi num telhado enquanto levitava, então fechei uma mão em punho e me concentrei, esperando até que ela fizesse a curva para voltar a abrir, sentindo a energia crepitar em meu braço. Meu espectro apareceu diante dela, no alto, e ela desviou de maneira abrupta por reflexo, ainda que não tenha conseguido desviar de Raio Lacerante, que fez um corte superficial em cima de suas costelas. Meu espectro avançou, mas Vonü desapareceu antes que pudesse acertá-la. Procurei pelo céu, mas fui derrubada com um golpe atrás do joelho, girando enquanto caia, vendo-a se projetar acima de mim e me imobilizar os braços com suas pernas. As asas fizeram sombra, seu corpo estava úmido da garoa que caia lentamente, os cabelos cor de cobre estavam desgrenhados, fazendo com que ela ficasse com um ar selvagem.
—Você não se cansa. — Constatou, ainda que eu percebesse que tivesse uma expressão distante. — Onde você esteve?
—Estava me procurando?
Pressionei os dedos em suas pernas e deixei que uma carga de energia passasse para a sua pele, vendo seus olhos ficarem momentaneamente brancos, como se fosse desmaiar, e usei o momento para tirá-la de cima de mim. Ela não se deixou vencer facilmente, agarrou meu pescoço e socou meu rosto com força, de repente batendo as asas e me levando junto ainda me segurando pelo pescoço. Sufoquei sem ar, sentindo meus pés balançarem inutilmente no ar.
—Você não estava na taverna. — Ela falou com os olhos estreitos, como se me acusasse de algo.
—Então você me procurou. — Falo num fiapo de voz, e ela aperta mais meu pescoço.
Decidindo que ela não amenizaria o combate, prendo minhas pernas em sua cintura e consequentemente nossos corpos se juntam. Aproveitei a sutil chuva, fazendo a energia fluir por todo meu corpo, eletrocutando Vonü de maneira mais intensa. Seu aperto diminuiu e seus olhos voltaram a ficar brancos, ela não me soltou, mas começamos a perder altitude rapidamente. Quando achei que tinha ganhado, seus olhos voltam a ficar vermelhos e ela me joga violentamente com as costas contra o telhado de uma casa, quebrando-o, o impacto contra algum móvel me fazendo gem*r de dor. A casa estava vazia, mas agora deixou de possuir uma mesa, semelhante a que Veegan tinha, e havia um buraco no teto. Vonü voltou a aparecer, agarrando-me os cabelos e me girando como se eu fosse uma boneca de palha, lançando-me contra a porta e também a quebrando. Ela não queria me dar tempo sequer para me curar. O que havia com ela hoje?
Cuspi sangue no chão enquanto sentia dores na cabeça e nas costas. Talvez tivesse quebrado uma costela, e com esforço me levantei, respirando com dificuldade. Vonü parou a minha frente, eu conjurei Raio Lacerante por reflexo, movendo o braço para tentar golpeá-la, mas gemi de dor e voltei a cair no chão, cuspindo mais sangue. Definitivamente tinha quebrado uma costela.
Vonü me virou silenciosamente e pressionou as mãos sobre minhas costelas, o alivio me atingindo alguns segundos depois. Tínhamos atraído atenção, dois grandes grupos estavam nas duas extremidades do beco que estávamos, e comemoraram a vitória de Vonü, ainda que ela os tenha ignorado, ajudando-me a levantar.
—Você não deveria hesitar quando está quase morrendo, Seul. — Ela comentou com voz pesada.
—Eu não hesitei. — Digo na defensiva.
—Você podia ter evitado os danos se me atacasse da mesma forma que te ataquei. Então sim, você hesitou.
—Você queria que eu tentasse te matar? — A pergunta me surpreendia por eu simplesmente não querer mais matá-la.
—Eu quero que você não tenha medo de me atacar com a mesma intensidade que eu depositar em você, Seul. — Ela suspirou, olhando para os lados, quando finalmente sua espécie tinha desistido de comemorar e ido embora. — Eu vi você ontem, durante a batalha.
—Você me mandou te assistir.
—Quando eu estava no chão, você... — Ela hesitou, voltando a me olhar, parecendo procurar por alguma resposta.
—Eu fui atacada antes que pudesse fazer algo.
Ela moveu a cabeça, parecendo ouvir o que queria, ainda que eu não entendesse o que era. Entrei de volta na casa passando por cima dos escombros, abaixando-me ao lado da mesa aos pedaços e conjurando um feitiço, os pedaços começando a levitar e encontrar seu próprio lugar, montando no que tinha sido a mesa. Repeti o processo no teto e fui até a parede, finalizando finalmente, prestando uma oração para pedir perdão pelos danos que causei.
—Sua consciência iria pesar se não consertasse? — Ao contrário do que eu pensei, não havia humor na pergunta, e sim seriedade.
—Eles já não têm muito. Não quero destruir esse pouco.
Ela sorriu, pousando uma mão em meu ombro e me fazendo segui-la. Saímos do beco e seguimos algumas ruas estreitas até eu notar que saímos do vilarejo. Não questionei nada, sequer reclamei quando a chuva engrossou e encharcou minhas roupas, o silêncio era confortável e eu ainda estava me recuperando dos danos de nosso pequeno confronto.
—Eu não me importo onde durma, Seul. — Ela pareceu voltar ao assunto inicial. — Mas eu aceitei me tornar seu mestre. E isso acarreta em te manter viva. Mesmo que não tivesse feito a promessa ao seu pai, eu faria o mesmo. — Uma pausa. Sua mão pressionou mais firme no meu ombro. — Estamos num lugar cheio de amaldiçoados. Guerreiros prontos para a guerra. E você é a farpa perfeita para desencadear uma batalha, então você estaria morta.
—Porque sou cristã.
—Porque os cristãos nos tornaram amaldiçoados. — Ela me corrigiu com paciência. — Graahkinianos não costumam caçar cristãos para lutar. Mas farão isso se sentirem que estão ameaçados.
—Como animais em extinção. — Comento, relembrando a discussão com Veegan na noite anterior.
—Sim. Por isso eu vou pedir que me deixe saber onde você está. Se algo acontecer para irritá-los, vão atacar antes de você ter a chance de se explicar. E você ainda não está preparada para isso.
Vonü estava querendo me proteger. Ouvir essas coisas dela era surpreendente. Eu sabia que ela levava a sua palavra a sério, mas não imaginava que se sentia responsável por mim. Dessa forma, não vi porque não ceder ao seu pedido genuíno, não era como se fosse tentar arranjar confusão nesse lugar.
—Estou hospedada na casa de sua irmã. Veegan. Ela fez questão, depois do que o filho dela fez.
—Ah, eu devia ter imaginado. — Seu aperto se afrouxou em meu ombro e ela retirou a mão. — Você é gentil demais para recusar os pedidos, Seul.
—Eu só quis que ela tivesse a chance de não se sentir culpada. — Cruzo os braços, desconfortável com o elogio vindo de Vonü. — E eu também não dormiria em paz sabendo que estava no meio de desconhecidos.
—Então você conhece Veegan.
—Um pouco. Mas não acho que ela faria alguma coisa.
—Ela é a atual líder nomeada dos graahkinianos. Ela tem que manter a postura conciliadora ou não vai conseguir manter o exército inteiro para a batalha. É sensato te manter debaixo do teto dela.
Fiquei em silêncio e Vonü me olhou, analisando minha expressão, então ofereceu um pequeno sorriso, olhando para frente outra vez.
—Eu não conheço Veegan como conheci meus outros irmãos. Ela pode te manter lá por vários motivos. Mas não crie muitas expectativas.
—Quantos irmãos você tem? — Aquilo me atiçou a curiosidade.
—Além de Vegan, mais três legítimos.
—Eles estão aqui também?
—Sim. São os comandantes abaixo de Veegan. Você vai acabar encontrando-os nos próximos dias.
—E você os conheceu a mais tempo do que Veegan?
—Sim. Veegan é a primogênita. Eu sou a segunda filha. Vigurd e Vaanë são gêmeos e eu convivi mais com eles. Ajudei a cuidar deles quando nasceram. E há Volinüs. — Ela me olhou com um sorriso melancólico. — Te aconselho a não irritar essa.
—Todos Del Thronttier tem fixação por nomes que começam por V? Tem algum significado?
—É uma tradição mais antiga que o tempo em minha família. V é um símbolo de força para os Graahkinianos, e não somente uma letra.
—Curioso. E o que o seu nome significa?
—Meu nome? — Ela riu, como se estivesse surpresa com a pergunta, as vezes era difícil ler suas expressões, endurecidas em sua forma de voulcan. — Força da maré, eu acho. Não tem uma tradução direta.
—Faz sentido. Você é forte e imprevisível como o mar.
Isso a fez sorrir o mais próximo que defini ser de alegria. Então nós treinamos até o sol se pôr, até meu corpo protestar de dor e exaustão, mas estava satisfeita, porque me sentia fortalecida. Vonü me ensinou a manter o inimigo distante com novos feitiços de longa distância, e eu consegui mantê-la afastada durante um combate por alguns minutos. Era um progresso.
Voltei para a casa de Veegan, mas nem ela, nem Verg estavam lá. Eu me lavei e troquei de roupas, lavando as que usava. Os serviçais já tinham preparado o jantar, e eu sequer tive paciência para esperar que voltassem para começar a comer, estava faminta e cansada. Tão logo deitei na cama eu adormeci, ainda que não tenha sido por muito tempo. Acordei com alguém no quarto, mas depois de iluminar o cômodo, visualizei a figura de Veegan no armário, guardando a armadura, e ela se assustou ao ter luz apontada para ela. Virou-se para mim e sorriu, aliviada, deixando a armadura de lado e vindo até a cama, sentando ao meu lado.
—Você dorme cedo. — Falou em tom baixo. — Desculpa te acordar.
—Você chegou tarde.
—É um trabalho cansativo comandar um exército. E Verg utiliza o tempo para trazer uma puta para casa. — Ela ergueu um dedo, fizemos uma pausa, então ouvimos o gemido da mulher no outro cômodo, e nós duas rimos. — Onde foi que eu errei?
—Durma aqui. A cama também é sua afinal.
—Está me convidando para compartilhar a cama e está sóbria?
—Que tipo de pessoa acha que sou em te expulsar da sua cama?
Ela riu, mas aceitou o convite, deitando ao meu lado e envolvendo os braços ao meu redor. Deitei em seu ombro, recebendo suas caricias em meus cabelos, um remédio quase instantâneo para dormir. Quase.
—Veegan?
—O que?
—Você vai marchar para Tieres?
—Sim. Eu vou. É meu dever devolver a terra de meus ancestrais para o meu povo. — Ela respirou fundo. — Por que?
—E o que fará lá?
—Matarei quem resistir. Expulsarei quem sobrar. Então beberei cerveja na beira do Mar Vaemerf.
—E você tem notícia de como o povo do mar está em Tieres?
—Eles estão escondidos atrás das muralhas.
—A notícia do seu exército deve ter chego lá.
—Eu não duvido. Mas por que essas perguntas? Você tem alguma informação? Ouviu alguma coisa?
—Talvez. Mas eu teria que voltar para Marheeve e checar algumas coisas. — E ainda pensaria se deveria alertar sobre o domínio do povo do mar ter aumentado.
—Não devo partir até a primavera, então você tem tempo de sobra para ir e voltar.
—Vocês vão ficar aqui durante o inverno?
—Sim. Ainda estou esperando mais graahkinianos chegarem. — Ela ergueu o meu rosto e tirou os cabelos de minha testa, talvez me enxergando no escuro. — Você sabe de alguma coisa, não é mesmo?
—Eu preciso confirmar. — Repito.
—Mas sabe. E sabemos que o povo do mar é cristão. — Ela suspirou, e eu não digo nada, porque ela tinha seguido meu raciocínio. — Não estou te pedindo para participar nessa guerra, Seul.
—Então está me pedindo para te deixar morrer.
—Não é algo que precisa se preocupar se eu ganhar essa guerra, Seul.
E não ganharia se eu não tivesse um plano e o compartilhasse com ela. Mas primeiro eu tinha que descobrir se queria que ela ganhasse ou não, e para isso eu teria que saber se Vonü lutaria essa batalha ao lado dos irmãos.
Fim do capítulo
Vonü --> o ü é mais fechado, assim como Alinü.
Seul Wittebi --> o W tem som de V, e Seul é dito mais rápido, como quando falamos "seu" mesmo, com o "u" mais fechado.
Marheeve --> o "ee" tem som de i mesmo, mas se lê mar-ive.
Hiver --> h com som de r mesmo
Graah --> como tem h no final, tem o som mais aberto.
Voulcan --> na história dos voulcans, o som é mais diferente, o V tem som de F, fica foucan para pronunciar.
Ehfae --> êfaê, basicamente.
O que essa Seul tá querendo aprontar agora, hm? hahahah
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Comentar este capítulo:
Marta Andrade dos Santos
Em: 08/05/2021
Espectativas!
Resposta do autor:
ahahah que bom! Vamos ver o que acontece agora!
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