A arte de unir e perseverar
—O que vamos fazer? — Alinü me questionou no dia seguinte, sentada sobre a nossa mesa de refeições, o que me fez olhá-la com desaprovação.
—Suas visões são melhores que as minhas, diga-me você.
—Eu gosto daqui. Por que você não tira a maldição e faz logo o que ela quer?
—Você me vê fazendo isso? — Estreito os olhos para ela, que suspira, baixando a cabeça.
—Você ainda não tomou nenhuma decisão, por isso não consigo ver. Você apenas foge, e isso não dá em nada. Não resolve nossos problemas.
—Você já aprendeu o suficiente se quiser ir ou ficar. O problema fui eu quem arranjei. Não você. E você não está presa nessa situação.
—É o que você acha? Que estou com você por obrigação? Você é minha-
—Mestre. — A interrompo, ainda com os olhos concentrados nela, que volta a me olhar, irritada. — Eu sou seu mestre. Sua mentora. Nada além disso.
Uma de nossos serviçais entrou e gesticulou para que Alinü saísse da mesa, só então outras duas entraram, servindo nosso desjejum. Todos os serviçais eram surdos, não precisava me preocupar que escutassem assuntos confidenciais. Nos sentamos junto a mesa, começando a nos servir num silêncio desconfortável, porque era visível que ela estava irritada.
—Você pode falar isso o quanto quiser, mas ninguém cuidou de mim como você. — Ela falou após um tempo, sem estabelecer contato visual. — E não é algo que um mestre faça.
—Eu sei como você se sente. Mas não seria justo que você me chamasse de qualquer outra coisa, e você sabe o motivo. — Suspiro, esticando a mão sobre a mesa e segurando a dela. — E é por isso que não posso repetir o que me submeti a fazer naquela mulher, ou em qualquer outra pessoa.
—Mas você precisa fazer alguma coisa. Ela não vai desistir. E vai acabar morrendo de uma forma ou de outra.
Nisso ela tinha razão. Seul já havia me achado, e estava claro que não iria desistir, não depois de já ter passado uma década. Agora... só restava descobrir o que deveria ser feito.
—Eu também estou cansada de fugir. — Admito, massageando a ponte do meu nariz. — Você gosta desse lugar?
—Não exatamente o lugar. Todas as cidades que passamos são diferentes, mas tem uma coisa em comum. Uma chance de construirmos um lar. Então não importa se for aqui ou em outro lugar, mas eu quero que você resolva isso para que fiquemos em paz. — Falou com sinceridade. — Ainda que eu ache que tenhamos ficado tempo a mais aqui por causa de Hiver. — Não respondi a sua provocação, mas ela sorriu, sem desistir. — Você ainda não me disse o que aconteceu ontem depois que levei Seul embora.
—Eu vim para casa.
—E Hiver não desconfiou de nada?
—Você se preocupa demais com Hiver.
—Ela gosta de você. Então sim, eu me preocupo.
—Não da forma que você pensa.
É a minha vez de revirar os olhos, mas ela continuou sorrindo vitoriosa. Não me importei. Naquele dia me ocupei em anotar os reparos que aquela casa precisava. Confesso que tinha herdado uma herança do meu mestre, além das pequenas fortunas que me foram dadas em busca de paz, ou aquelas que os guerreiros carregavam consigo para lutar comigo. Dinheiro ainda não tinha se tornado um problema. Se fôssemos fazer uma vida ali, aquela casa precisaria passar por reformas. E não era uma casa pequena, pelo contrário, eu gostava do espaço e de esbanjar a graciosidade da mobília. Não viveria numa miséria de ambiente quando podia ter mais, ainda que soubesse que em algum momento teria que procurar uma forma de continuar ganhando dinheiro.
Era uma mansão, com vários quartos e banheiros, com luxo na medida do possível, porque precisava de reparos. Não era um imóvel recente, era antigo, e conservava boa parte da história daquele lugar. O quarto que mais gostava era um escritório na parte inferior, que possuía três estátuas em sequência no centro, seguindo uma coreografia. A primeira, mais atrás, parecia escorregar graciosamente, com a perna esquerda ainda esticada para trás enquanto a direita sustentava seu corpo, o tronco dobrado delicadamente, os braços seguindo o movimento para baixo, os olhos seguindo o simples gesto.
A outra estátua, logo a frente, continuava a escorregar, os braços em frente ao peito, virados para cima, outra vez os olhos acompanhando o gesto. E a última, mais a frente, mais separada das demais, tinha os braços mais erguidos, os olhos ligeiramente mais acima do gesto, como se visse algo a mais. Estava ereta, em perfeita postura, um seio a mostra e o outro coberto pelo que parecia um sutil vestido, cabelos soltos nas costas, longos. Ela parecia venerar alguma coisa.
O que mais me atraia nessas estátuas, era que eu podia visualizar a cena de ambos os sentidos, e ainda encontrar conexão entre os movimentos. Era como se fosse pessoas ali, interpretando uma cena.
—Imaginei que você fosse estar aqui. — Minha atenção foi tirada das estátuas para Hiver, que estava parada na entrada, braços cruzados e um sorriso de lado. — Sempre entretida.
—Você é meu entretenimento preferido. Venha aqui. — Deslizo a mão pelo estofado, gesticulando para que se sentasse. Ela veio, depositando um beijo em minha bochecha, olhando na direção das estátuas.
—Foi um estrangeiro que construiu essas estátuas, séculos atrás. — Falou devagar. — Ivoc Criveth. Era um escultor e pintor famoso na época. Era mago, mas nunca foi visto usando suas habilidades. Não para criar. Nunca se soube nada sobre sua vida. Suas obras estão armazenadas numa galeria aqui perto da cidade, onde ele viveu. Mas ninguém soube de onde ele veio. Então quando morreu, suas cinzas foram jogadas ao vento, talvez assim ele voltasse para seu país de origem.
—Por que está me falando sobre ele?
—Ivoc Criveth era um sobrevivente das Ilhas dos Tieres. Ele disse ser mago, mas era um demônio, e por isso ninguém nunca o viu usar suas habilidades. — Isso me fez olhá-la, um tanto cética, um tanto surpresa. — Você reparou no espelho em frente as estátuas?
—Sim, o que tem?
—Vá até a frente das estátuas.
Hesitei, mas claro que a curiosidade falava mais alto. Levantei e caminhei até o ponto indicado, suspirando, sem perceber nada de incomum em algo que já tinha feito diversas vezes, com Hiver presente, inclusive. Eu a olhei, ela tinha um sorriso bobo no canto dos lábios.
—Você precisa refazer essa posição. Há um feitiço nessas estátuas.
—Que faz o que?
—Faça os movimentos, e você vai descobrir.
—Não.
—Está bem. Então você nunca vai descobrir, covarde.
—Por que você não faz uma demonstração, senhorita?
Ela aceitou o desafio, se posicionou ao lado das obras e respirou fundo, executando os movimentos com a mesma graciosidade que as estátuas demonstravam. Então gesticulou para que eu fizesse o mesmo, e mesmo que relutante, eu o fiz, ainda que sem a mesma suavidade de Hiver, e terminei com a mesma postura de reverência. Quando olhei para cima, vi meu reflexo no espelho ao qual Hiver tinha mencionado, e não vi aspecto humano, vi chifres, asas e escamas. Hiver parou atrás de mim, pousando o queixo no meu ombro, segurando minhas mãos e as colocando nas laterais do corpo. Eu a encarei pelo reflexo, e havia um sorriso divertido nos seus lábios.
—É uma obra destinada a reconhecer seus semelhantes. Ivoc morreu sozinho, mas tinha a esperança de que sua espécie o reconheceria pelo que tentou fazer aqui. Trazer uma parte dos demônios que ninguém conhecia. — Ela sorriu e pressionou os lábios atrás de meu ombro.
Hiver também estava diferente no reflexo. Sua pele escura adquiria as marcas características dos demônios, com runas de nossa língua natal fazendo o contorno das suas bochechas e marcando sua testa. As marcas não tinham a mesma intensidade como eu esperaria que tivessem, como eu sabia que já tive, mas os olhos eram vermelhos e intensos, brilhando como luzes. Eu acabei rindo da situação.
—Você sempre soube, não é? — Indago, virando-me em sua direção e encontrando olhos castanhos a me encarar de volta. — Foi o último cômodo que me mostrou antes de vender a casa para mim.
—Sim. Mas julguei que você tivesse seus próprios motivos para esconder isso. Então... eu esperei. Acabei encontrando um belo par de asas, afinal de contas.
—Você é descendente de demônios?
—Sim, mas a linhagem foi enfraquecendo conforme os descendentes de minha família foram se envolvendo com humanos. Somos uma raça orgulhosa, afinal de contas. As gerações não conseguiram mudar isso.
—Você tem uma família grande. Seus ancestrais viveram nas Ilhas Tieres?
—Não, eles faziam comércio, estavam sempre viajando. Mas confesso que faz sentido seu desejo por querer morar nessa casa. Seu sangue é puro. Assim como o de Ivoc.
—Como você sabe tanto sobre ele?
—Grande parte do patrimônio de minha família pertenceu a outros demônios. Então nós sempre sabemos reconhecê-los. Ivoc era um grande amigo de nossa família.
—Você tem muitos amigos. Estou feliz que eu seja um deles. E estou contente por compartilharmos a mesma origem. Tenho a impressão de que gostarei de conhecer sua família.
—Você já conheceu a melhor parte, eu garanto. — Ela sorriu, fazendo-me rir.
—Nem um pouco modesta, Srta. Tuhnden.
—Oh, querida, a vida não me fez nesse corpo para ser modesta.
—É o que eu gosto de ouvir.
Então ouvi uma comoção no corredor, vários passos, então ninguém menos que Seul Wittebi entrou no cômodo, com o mesmo estado comprometido que a encontrei ontem, ainda que não estivesse sangrando, era visível o sangue seco em seus trajes. Meus serviçais produziam sons incompreensíveis para a sua presença que claramente não foi permitida, mas se calaram quando ergui a mão, e foram embora no gesto seguinte. Seul me ofereceu um sorriso com dentes sujos, sem menção de se aproximar, o que me faz suspirar, impaciente.
—Desculpe atrapalhar sua reunião, mas acredito que temos assuntos inacabados.
—Sua insistência é contraindicada para a sua saúde, Srta. Wittebi. Como vamos conversar se você sequer consegue se manter em pé a minha frente?
—Retire a maldição e nós conversamos.
—Bem, desculpe a minha indelicadeza. Essa é minha amiga, Hiver Tuhnden. — Toco o ombro de Hiver, que faz um simples gesto para cumprimentá-la. — E você está invadindo minha propriedade, Seul Wittebi.
—O que você quer afinal? — Hiver questionou, andando pelo espaço que me separava de Seul. — Temos todo o direito de acabar com a sua vida por invadir uma propriedade.
—Poderiam. Mas esse demônio gosta de manter a palavra, ou não teria me amaldiçoado, para começar. Ela não vai me matar. E garanto que não te deixaria fazer o mesmo. Então o que você vai fazer, Vonü Del Trhonttier? Vai continuar fugindo como uma covarde?
—Eu posso tirar a maldição, mas isso não te garante o que você tanto quer. — Falo com paciência, ainda parada no lugar.
—Retire a maldição e vamos continuar a luta de onde paramos. Sem truques. Sem maldições. Sem interrupções. Quando eu ganhar, você me dará seus poderes e aceitará sua derrota.
—Dar seus poderes? — Hiver me encarou com olhos estreitos, incrédula do que ouvia. — Esse é seu trato com ela?
—Eu não tenho qualquer trato com ela. Meu único acordo foi com o pai dela sobre mantê-la viva, mas como pode ver, uma oferta desperdiçada. — Olho para Seul, aproximando-me dela e vendo sua expressão torcer em dor. — Será que você ainda não entendeu que nenhuma de nós ganha alguma coisa nessa luta? Nenhum poder é dado, criatura estúpida. — Continuo me aproximando, vendo-a cair de joelhos, cuspindo sangue no meu tapete. Paro a sua frente e a ergo pelo pescoço, prendendo-a contra a estante de livros, encarando seus olhos azuis quase sem vida. — Mesmo que você ganhe a luta, você não ganha os meus poderes. Você só tem meus poderes se você perder.
—Perder? — Indagou entredentes, sangue escorrendo pelas laterais da sua boca. — Como eu ganho perdendo?
—Você recebe uma essência para reconstruir os pedaços que sobrar.
—Melhor que nada. — Falou num último resquício de desafio.
—Que seja.
Cravei os dentes sobre a marca da maldição, ela gritou em agonia conforme meus dentes penetravam em sua carne, sangue adentrando em minha boca. Então corto músculos e nervos conforme deslizava os dentes para baixo, rompendo o símbolo, rompendo a maldição. Dessa vez seus dedos somente pressionaram nas minhas costas, sem força para apresentar resistência, e logo depois que terminei, seus olhos fecharam, seu corpo teria caído se eu não a tivesse segurado. Criatura estúpida. Passei o braço abaixo dos seus joelhos e suportei seu peso contra meu corpo.
—Venha comigo — digo a Hiver, sem me virar —, vou fazer essa idiota continuar respirando.
—Você vai mesmo ajudá-la? Ela quer lutar com você!
Ainda assim ela me seguiu, andando pelo corredor em silêncio. Por que eu ajudaria Seul Wittbi? Eu não queria lutar com ela outra vez, mas que escolha eu tinha se o destino a tinha colocado a minha frente outra vez? Não podia ignorar os sinais agora.
Fim do capítulo
Olá leitores :D espero que tenha vivas almas entre nós por aqui.
Espero que estejam gostando da dinâmica, há muito pelo que vir.
Só passando para lembrar que atualizo toda terça e sábado :D
Qual será o destino de Vönu?
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