Nenhuma fuga é eterna
—Você gostou de alguma coisa? — Pergunto a Alinü, mas ela não responde de imediato, entretida nos colares e enfeites de cabelo embebidos em prata ou ouro. Estávamos em um dos centros de comércio numa cidade movimentada, perto do porto por onde chegavam as mercadorias. Peguei um colar de ouro, com esmeraldas, e coloquei no pescoço dela, pegando o espelho para que ela visse o reflexo. — O que acha?
—Acho que combina com meu cabelo. — Ela finalmente falou, tocando as pedras contra a pele.
—E valoriza seus olhos. — Acrescento.
—Você tem razão. Mas também quero levar um anel.
—Tudo bem. Estou decidida a te mimar hoje.
Ela escolheu um anel com inscrições antigas, de prata, com um polegar de largura, que foi facilmente ajustado para o seu dedo. Ela ainda quis comprar alguns trajes, contente em se parecer humana e se portar como tal, mesmo que não fosse. Já fazia dez anos que estávamos viajando, assumindo formas humanas para passarmos despercebidas pelas pessoas dos vilarejos que passávamos.
—Não vai comprar nada para você? — Alinü questionou, mordendo um pedaço de carne do espetinho que tínhamos parado para comer. — Já tenho mais coisas do que posso carregar quando trocarmos de cidade.
—Sim, talvez tenhamos ficado paradas por mais tempo aqui. — Suspiro, entregando o resto do meu espeto de carne para ela. — Talvez tenha ficado cansada de ficar tanto tempo sem um local fixo.
—Achei vocês! — Escuto a voz de Hiver, antes de sentir seus braços envolvendo minha cintura e seus lábios pressionando em minha nuca, fazendo-me rir antes de me virar em sua direção, retribuindo ao seu abraço. — Eu perdi toda a diversão?
—Claro que não. Acabou de começar. — Sorrio, retirando algumas mechas do seu rosto e colocando atrás de sua orelha.
—Adorei o seu colar. — Ela comentou, olhando para o colar de Alinü. — Combina com você.
—Vonü insistiu que eu comprasse esse. Ela tem uma boa visão para esse tipo de coisas. — Alinü concordou, sorrindo com pomposidade diante do elogio.
—Eu comprei algo para você. — Digo, procurando entre as compras de Alinü, até achar o xale feito a mão na cor vermelha, então coloco sobre os ombros de Hiver, que sorria maravilhada com o tecido e a renda. — O que acha? Você disse que sentia falta de algo sobre seus ombros. E o inverno está chegando...
—Eu adorei! É maravilhoso. — Ela se animou, o sorriso abrindo mais, plenamente agradecida pelo presente. Mas estava contente pela sua felicidade, já me era suficiente. — Você tem um gosto excelente. Eu agradeço imensamente.
—Combina com você, e vai te esquentar no inverno.
—Você está com fome, Hiver? — Alinü questionou, provavelmente querendo mudar o assunto. — Vonü está rejeitando essa maravilhosa carne e eu serei obrigada a comer a parte dela se você não aproveitar a chance.
—Oh, garanto que não desperdiçarei. — Hiver não se deixou desanimar, pegando o espeto e mordendo a carne com graciosidade, ecoando um som maravilhado. — É delicioso. Não está no seu agrado, Vonü?
—Não tenho fome. Mas você deve aproveitar. Alinü tem boas intuições em relação a culinária. — Sorrio para assegurá-la, gesticulando para que continuasse a comer.
Na verdade, estar no meio daquelas pessoas todas me deixava inquieta, como se fosse ser atacada a qualquer momento. Alinü havia proposto que nos mantivéssemos em cidades populosas para podermos no misturar sem atrair desconfiança, mas eu julgava que era porque ela gostasse desse ambiente movimentado.
Fomos a uma loja que vendia tortas como sobremesa, Hiver alegando que conhecia o lugar e que gostaríamos. Fiquei surpresa por ela não ter nos trazido naquele lugar antes, era calmo e tinha menor concentração de pessoas, o tipo de lugar que ela sabia que eu gostava. Deixei que ela escolhesse a torta, percebendo que ela era uma cliente frequente, uma vez que a atendente a cumprimentou de maneira diferenciada, perguntando sobre sua família e sendo retribuída com as mesmas perguntas.
—Você tem razão, a torta é muito boa. — Digo a Hiver, comendo outro pedaço da torta.
—Bastante doce, mas a massa é bem-feita. — Alinü comentou, ainda que o que ela tinha escolhido fosse menor e com frutas cítricas.
—Você tem um paladar bom. Mas tem outras opções que podem te agradar mais. — Hiver sorriu para ela, sem se deixar abalar. — Garanto que uma das tortas vai te impressionar.
—Eu te levaria a falência até achar algo completamente agradável.
—Eu sei de seu gosto exigente, querida Alinü. Talvez se você visse como é feito, você veria a torta de maneira diferente.
—Eles permitiriam? — Ela se animou.
—Claro. Diga que eu pedi, e eles te deixam entrar lá.
—Então farei isso. Mas se você estiver errada, vai estar me devendo uma. — Ela a provocou, limpando os lábios antes de se levantar e se encaminhar para trás do balcão.
—Desculpe por isso, ela é tão competitiva as vezes. — Digo para Hiver, recostando na cadeira para olhá-la. — Ali tem um temperamento complicado com outras pessoas. Por isso ela tende a resistir tanto com as coisas que você oferece.
—Ela não é a única, hun? — Havia um sorriso no canto dos seus lábios, então julguei que fosse um fato conformado.
—Não é nada pessoal. Só não temos um costume de conviver com outras pessoas. Além de estarmos sempre nos mudando.
—Então não buscam se apegar as pessoas também?
—A nada que não possamos levar quando tivermos que seguir a estrada.
—Vocês estão fugindo de alguém? — Ela ergueu a sobrancelha, eu rio, desviando o olhar, deslizando os dedos pelas escrituras na mesa.
—Tentando criar uma trilha que o destino não interfira.
—E estão conseguindo?
—Bem... Não recebemos nenhuma visita nos últimos anos. Talvez seja uma vitória.
—Você está feliz com a trilha que está seguindo? — Ela tocou minha mão para atrair minha atenção de volta aos seus olhos castanhos, percebendo o zelo neles.
—Estou contente que esteja vendo outros lugares, conhecendo pessoas.
—Mas?
—É triste deixar tudo isso para trás a cada nova viagem.
—Você não precisa deixar se essas coisas te fazem bem. Se é o que te deixa contente... feliz. — Ela me ofereceu um pequeno sorriso, não menos caloroso que o casual.
—Você é uma das pessoas maravilhosas que encontrei nessas viagens, você sabe disso, não é? — Retribuo o sorriso, enlaçando nossos dedos em meu colo.
—Claro que sei. Mas prefiro continuar sendo a pessoa que você gosta de falar.
Alinü voltou para a mesa com outro pedaço de torta, lançando-me um olhar acusativo como se eu tivesse feito algo errado, mas não me deixei afetar, ao invés disso, voltei a minha própria torta.
—Essa está melhor, querida? — Hiver a questionou, observando-a comer.
—Está palatável. — Ela respondeu teimosamente, eu quase reviro os olhos para a sua atitude, mas Hiver somente riu.
—Fico feliz em saber disso. Esse lugar tem um grande número de sobremesas, sabia que alguma te deixaria contente.
Eu não tinha reparado que um novo cliente tinha entrado na loja até perceber seus passos vindo em nossa direção. Quando ergui os olhos da minha torta, o ar que havia em meus pulmões se perdeu na minha tentativa de alertar Alinü. A mulher tinha um aspecto deplorável, mas a determinação em seus olhos não diminuiu como a distância que ela findava, eu só tive tempo de me levantar antes dela agarrar meus ombros, sua respiração pesada contra o meu rosto. Ela sorriu apesar do cansaço, sorriu em meio ao sangue que escorria do seu nariz e de sua boca. Eu senti toda a atenção do local em nós sem precisar olhar ao redor, assim como tinha percebido o espanto de Hiver. Alinü já estava em pé, segurando a mulher em busca de afastá-la de mim.
—Eu te achei. — Ela falou, ofegante, balançando-me para frente e para trás como se eu fosse um troféu. — Eu te achei, amaldiçoada.
Eu fiquei paralisada, sem saber o que fazer. Como Seul Wittebi me achou? Por que, apesar do sofrimento de estar nessa proximidade, ela se aventurava a me procurar? Maldita seja a minha decisão de mantê-la viva, para começar.
Alinü conseguiu afastá-la, passando os braços abaixo dos braços da feiticeira, ainda que Seul tenha sorrido, sem oferecer resistência, cuspindo sangue na minha direção, rindo e gargalhando descontroladamente, como se já tivesse ganhado. O destino tinha ganho, afinal? Eu estava me enganando em achar que podia fugir, que podia achar outro caminho. E talvez tenha conseguido, cultivando outros momentos longe daquele castelo, mas acabei no mesmo lugar que o destino já tinha previsto.
—Vonü, você está bem? — Hiver questionou, segurando meu rosto em mãos, parecendo limpar algo nele. — Você conhece aquela mulher?
—Eu... Eu tenho que sair daqui. — Consigo dizer, piscando algumas vezes para voltar a realidade.
—Claro. Eu te levo em casa. Deixa-me só pagar a-
—Eu preciso sair dessa cidade. — Interrompo-a, afastando suas mãos, seus olhos se estreitando em confusão. — Eu não posso mais ficar aqui.
—Espere!
Eu não esperei, sai daquele estabelecimento, olhando ao redor, várias pessoas passavam pela rua principal, alheias a minha presença. Por que se importariam? Não sabiam quem eu era. E essa era a melhor parte de estar em cidades distantes, ninguém conhecia meu nome e ninguém tentava lutar comigo. Agora isso estava prestes a acabar. Se Seul chegou até aqui, não demoraria até que alertasse as pessoas sobre minha natureza, e o ciclo de batalhas retornasse. A paz tinha acabado, se é que existiu.
Hiver me alcançou na rua alguns minutos depois, impedindo que eu seguisse algum caminho. Eu sequer saberia para onde ir, não sem antes encontrar Alinü.
—Você precisa se acalmar, Vonü. O que está acontecendo? — Ela me questionou, os cabelos castanhos balançando com o vento que vinha do sul.
—É complicado. Você nunca entenderia.
—O que eu entendo, e acho bastante simples, é que você não pode tomar uma decisão dessa de repente.
—Você a escutou, Hiver. Eu sei que a escutou. E por isso eu não posso ficar. As pessoas vão espalhar o que ouviram. Então... Então tudo voltará a ser como antes.
—O que eu ouvi, e o que as outras pessoas viram, foi uma mulher maluca te atacar, fora de si. Ela sequer parecia saudável, Vonü. — Ela me ofereceu um sorriso, erguendo as sobrancelhas em busca de me acalmar com sua visão dos acontecimentos. — Acha que alguém acreditaria nela?
—Acho, porque ela fala a verdade.
—E quem provaria isso? Palavras são apenas palavras sem provas. Dessa forma, eu também seria um demônio se alguém assim me acusasse.
—Não diga isso em público, Hiver. — A repreendo, mas ela somente me revira os olhos enquanto a seguro pelo braço e a levo para uma região menos movimentada, em busca de alguma privacidade. — Não te incomoda nem um pouco que eu seja um demônio? Uma amaldiçoada?
—Você não é amaldiçoada. Já aquela mulher não posso dizer o mesmo. — Ela tocou a pele exposta no meu ombro, para gesticular que tinha percebido a marca em Seul. — O que me incomoda é você achar que eu me incomodaria com sua natureza, Vonü. Eu sempre desconfiei de que você e Alinü não fossem humanas, como querem parecer. Por isso nunca perguntei. Por isso nunca comentei com ninguém. Vocês não precisam se preocupar comigo. Além de que... você não me parece nem um pouco um demônio.
—É porque já faz um bom tempo em que deixei de ser somente um demônio.
—Oh, eu sempre soube que você era algo a mais. — Isso me fez sorrir, e ela balançou gentilmente meu ombro. — Vê? Um sorriso, sinal de que está mais calma. Deixa-me te acompanhar até em casa, pode ser?
Balanço a cabeça para concordar, então ela envolveu o braço no meu, voltando até a loja para pegar as compras de Alinü antes de caminharmos para minha casa.
Fim do capítulo
Essa Seul não sossega, não é? ahahha
o que será que Vönu fará agora? :D
Até o próximo o
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sledgcamren
Em: 07/07/2021
Amo casais que começam se odiando!
Resposta do autor:
ahahahah sim, é verdade, elas começaram como gato e rato :D
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