Capítulo final dedicado à

queridona da K.

Gratidão.

Isabel

    Uma luz focava em apenas uma mulher que aparenta ser frágil por sua pequenez em tamanho, mas que carrega dentro de si um força tão grande capaz de superar obstáculos inimagináveis. O palco é da Helena. O público olha maravilhado para a sua carga penetrante de atuação. Tudo ali é dela. Apenas emprestei o palco da minha companhia e minha direção para o seu brilho.

    - "Manchamos o nosso casamento" ela me disse com tanta dor que da minha percepção eu poderia vê-la quebrar-se em mil pedaços. Eu já havia dito que nos destruímos, não via saída para o nosso casamento tão desejado, mas já tão acabado...

    É um monólogo que a, até então só atriz, Helena Carvalho faz após seu livro "Meus Pedaços" virar um dos maiores sucessos do país. Quando a paulistana disse que estava começando a escrever um livro inspirado no momento mais turbulento que passamos, desacreditei. Ao explicar que era uma forma de tirar de todo sofrimento uma lição para mostrar ao mundo o que, às vezes, um amor é preciso superar para que se complete tantos anos de casamento, concordei.

    Exatamente hoje nós completamos 40 anos de casadas. Avós de duas adolescentes e empolgadas para que o futuro nos dê anos o bastante para nos tornarmos bisavós.

    Vaidosa, Helena ainda não curte a ideia. Mas pelo nosso amor tudo vale. Se os anos nos trouxeram rugas, cabelos brancos, ainda foi generoso para manter a aliança em nossos dedos. Todo dia nos permitimos regar o nosso amor. Ainda hoje nos olhamos apaixonadas e com a certeza de que o que vivemos valeu a pena.

    Toda a dramaticidade posta no meio da peça é o que vivemos. Tudo começa como um paraíso. Conforme vai acontecendo, as luzes vão diminuindo. Já assisti essa peça pelo menos 50 vezes, e toda vez me arrepio com seus gritos de desespero ao imaginar que me perdeu.

    Sei que é tudo parte de uma atuação e o que vivemos foi bem pior. Por exemplo, a presença da Elisa é totalmente tirada. Apenas a suposta traição é contada. Todo o embate é verdadeiro, muitas palavras que nos machucaram continuaram, mas ter engolido foi muito pior. Incomparável. Realmente, Helena acertou em colocar o que passamos para outras pessoas. Ainda bem que tudo acabou e amor.

    - ... E foi assim, aos poucos, que resgatamos o nosso amor. Lembrança por lembrança. Ela prometeu que seria para sempre e foi. Por isso guardou cada pedaço da nossa história. Desde as entradas do nosso encontro não ocorrido até a areia de todas as últimas praia que viajamos. Até hoje ela é assim, romântica. Talvez seja por isso que ela torça para que eu morra primeiro, eu não suportaria viver sem ela. Não suportaria vê-la me deixar.

    Provavelmente não viverei muito também. Sinto cada dia mais que seremos aqueles casos de almas que chamam uma pela outra para viver na eternidade.

    - ... Mas ainda temos muito o que viver. Amar cada dia. Sexo? Existe. Vamos quebrar esse tabu de sex* na terceira idade. Eu ainda gosto muito. Com ela então, nem se fale. É isso. É exatamente isso que é o amor. Uma superação da rotina. Uma luta para não se trocar de pessoa como se troca de roupa. Porque seria fácil deixá-la. Não sou feia e nem ela é. Poderíamos trans*r com outras pessoas, viver um romance e até nos casar novamente. Mas não seria ela, o amor da minha vida. Não seria - frisou buscando a mim no alto, na parte da produção, como sempre faz nessa parte. - É claro que pode-se amar por um período e depois encontrar outros amores. Mas nunca foi o nosso caso. Eu sou dela e ela é minha. Superar nos trouxe ao que somos, um casal de 40 anos de convivência que quem olha apenas diz: nossa, mas que lindo, queria viver um amor assim. Será que queria mesmo? Suportaria? Não largaria a mão na primeira, segunda, terceira ou quarta palavra mal colocada? Porque é fácil dizer que existe casamento eterno. Difícil é vivê-lo em tempos sombrios. Por isso diga que ama sem medo, diga o que sente além do desejo, diga, diga e persista. Como eu e ela persistimos.

    As luzes vermelhas representando o amor foram acesas, é o fim. Mais uma vez a aplaudi quando o meu coração disparou tamanha emoção.

    Hoje nos sentamos e rimos desse momento sombrio. Tudo passa.

    "... - Mais um bolo queimado? Isabel, você não cansa? - Helena ria ao me confrontar quando viu a fumaça sair do forno e o bolo de morango virar carvão.

    - Você me distraiu, Helena. Eu falei para você: depois namoramos, preciso me concentrar no bolo de aniversário da nossa Giovanna.

    - Poupe-me, Isa. Sua fama de queimar bolo de aniversário vem desde aquele que queimou no meu.

    - Mas de novo? Quieres volverme loca? Eu não queimei aquele bolo!

    - Claro que queimou, amor. Assim como queimou esse. Ou agora vai inventar que não? Nem dá para recuperar como fez quela vez.

    - Esse eu só queimei porque você me distraiu.

    - Mas depois de tantos anos você não vai confessar que me traiu? Que espanhola teimosa. Admite!

    - Eu não vou admitir uma mentira só para te satisfazer, cariño - encerrei o assunto. - Agora me ajuda a fazer outro antes que ela chegue com as meninas.

    - Claro que ajudo, você não sabe fazer mesmo - debochou.

    Juntas, começamos o preparo com muitos olhares e o ar de apaixonada que persiste.

    - Sabe do que lembrei agora? - Perguntou-me enquanto a batedeira fazia a mistura.

    - Não. O quê?

    - De você achando que te traí. Como é teimosa! Coitada de mim.

    Seu sorriso sapeca me fez gargalhar.

    - Mas hoje você quer ficar relembrando as bobagens que fiz, não é?!

    - Então admite que queimou o bolo naquele meu aniversário?

    - Não!!!"

    A leveza com que o assunto surge é a maior prova de superação. Nada ficou pesado, nem sobraram mágoas. Tudo não é mais que uma lembrança que pode ser usada com respeito em momento de brincadeira.

    Foi como conseguimos seguir e estamos juntas até hoje.

    - Isabela Casañas - ouvi meu nome ser dito por ela que ainda permanece no palco. - Pode vir aqui por favor, meu amor?

    Tentando entender o seu pedido, mas já imaginando que seria algo relacionado aos nossos 40 anos de casamento, desci as escadas devagar. Chegando ao público, nas primeiras fileiras vi nossa filha com suas duas meninas, Nina e Nat, seus dois filhos e sua primeira neta, Eduardo e Rodrigo, Maurício e sua namorada do momento. Não sabia da presença deles.

    Deixei um abraço em cada um e segui para subir ao palco. Helena me aguardava com seus cabelos grisalhos. O meu preferi assumir os brancos totais. Nossa diferença de tamanho ainda é nítida, curvei-me para dar um beijo em seus lábios. Minha eterna paixão me olhava emocionada.

    - 40 años, eu sei - tentei segurar o choro de emoção.

    - Mais da metade da minha vida compartilhado com você. Te amo.

    - Também te amo, Helena.

    Juntando as nossas mãos, a baixinha me fez virar de frente para o público.

    - Hoje eu e essa linda mulher completamos exatos 40 anos que dissemos sim uma para outra. 43 anos que nos conhecemos. Esse monólogo foi ideia dela, que veio de um livro que foi ideia minha. Nos completamos. Eu só quero dizer que a amo. Eu gosto e quero que todo mundo saiba do amor imenso se sinto pela Isabel. Todo dia que acordo agradeço por ser mais um dia ao lado dela. Hoje eu agradeço mais ainda porque vamos terminar o dia enchendo a cara de vinho em um jantar preparado por ela. É só chegar em casa e esquentar. Mas antes, quero que ela ouça e revive um momento comigo. Amor, - dirigiu-se somente para mim - I Don't Want To Miss a Thing.

    Uma banda cover do Aerosmith entrou no palco e me levou ao show de que assistimos, cantamos e dançamos juntas a nossa música.

    O toque o teclado fez os nossos corpos se unirem. O perfume que tanto amo entrou pelas minhas narinas quando me deitei em seu ombro e cheirei seu pescoço. Começamos a balançar de um lado para outro quando o cantor começou:

    I could stay awake (Eu poderia ficar acordado)

    Just to hear you breathin' (Só para te ouvir respirar)

    Watch you smile while you are sleepin' (Te ver sorrir enquanto dorme)

    While you're far away and dreamin (Enquanto está longe e sonhando)

    I could spend my life (Eu poderia passar a minha vida)

    In this sweet surrender (Nesta doce rendição)

    - E posso dizer que consegui - a ouvi dizer e concordei apertando-a ainda mais em meus braços.

    I could stay lost in this moment forever (Eu poderia ficar perdido neste momento para sempre)

    Every moment spent with you (Cada instante que eu passo com você)

    Is a moment I treasure (É um momento que eu valorizo)

    Cantamos juntas para só nós ouvirmos:

    - I don't wanna close my eyes (Eu não quero fechar meus olhos)

    I don't wanna fall asleep (Eu não quero adormecer)

    'Cause I'd miss you, babe (Porque eu sentiria sua falta, querida)

    And I don't wanna miss a thing (E eu não quero perder nada)

    'Cause even when I dream of you (Porque mesmo que eu sonhe com você)

    The sweetest dream would never do (O sonho mais doce não bastaria)

    I'd still miss you, babe (Eu ainda sentiria sua falta, querida)

    And I don't wanna miss a thing (E eu não quero perder nada)

    Beijei sua bochecha e saí do aconchego. Olhei seus olhos e como se já não bastasse todos os que já dissemos durante mais de 40 anos, sussurramos juntas:

    - Eu te amo.

Fim do capítulo