Capitulo 9
Estava voltando pra minha casa após ter comprado um pacote de ração para o Salem, com Piece Of My Heart da Janis Joplin soando pelos meus fones. Take another little piece of my heart now, baby. Cantarolava baixinho. Eu gostava de sair cedo pra fazer minhas coisas, morava relativamente próximo à estação República do metrô. Eu não considerava uma região lá muito segura pra eu ficar dando bobeira a qualquer hora do dia. Já tinha sido assaltada ali uma vez e não tinha sido uma experiência muito agradável. No entanto, eu gostava do meu apartamento, eu tinha que gostar porque era o que eu conseguia pagar naquele momento.
Cumprimentei seu Osmar e levei um susto quando vi ninguém mais, ninguém menos do que Elisheva. Estava sentada num banco de madeira, próximo a guarita. Sua cabeça estava apoiada em um cobertor azul que estava dobrado em cima de sua mala de rodinhas. Será que ela estava indo embora? Será que tinha resolvido tudo com seu advogado? Nesse momento senti uma pontada no meu coração. Não queria vê-la indo embora tão cedo, pensei que ela ficaria mais.
Olhei para seu Osmar e dei de ombros, querendo entender a situação. Tirei os fones.
- A menina chegou cinco minutos depois que você saiu, falei pra ela aguardar ai.
Droga.
Aproximei-me dela, insegura. Percebi que ela estava dormindo.
- Elis. – Falei baixo para não a assustar. – Elis. – Falei de novo. – Elisheva. – Aumentei o tom de voz. Olhei para os lados, inquieta. Seu Osmar nos observava. Ele não tinha mais nada pra fazer não? Cutuquei seu ombro suavemente. – Elisheva?
Ela abriu os olhos.
- Ei. – Ela disse.
- Oi.
Ela levou a mão ao pescoço como se estivesse com dor. Olhei para seu Osmar que ainda nos observava.
- Obrigada seu Osmar. – Eu disse incentivando que ele se retirasse. Funcionou, pois ele entrou em sua guarita. Contudo eu tinha certeza que ficaria de ouvidos atentos como um bom fofoqueiro que era.
- Eu sei que você está me evitando desde aquele dia. – Ela disse abaixando seus olhos azuis.- Sei que provavelmente não quer mais falar comigo, mas eu não tenho mais ninguém que possa me ajudar.
- Vem, vamos subir. – Disse vendo a cabecinha do seu Osmar se escondendo rapidamente quando olhei em direção a ele. Devia estar de ouvidos atentos. – Conversamos lá em cima.
Ajudei-a com a mala e ela abraçou o cobertor em frente ao seu corpo. Subimos em silêncio até o quinto andar.
- Entra. Fica à vontade.
Salem veio em minha direção miando. Eu corri os dedos pelo seu pelo, conversando com ele. – Eu sei que você não me ama, você só quer que eu te alimente. – Ele miou. Eu ri. Caminhei até a bancada e abri o saco de ração. - Você ta muito gordo, hein Salem? Desse jeito não vai conseguir nem subir no sofá. – Ele miou. Até ano passado você subia nessa bancada, você lembra? – Ele miou novamente.
Coloquei ração no pote dele e olhei para Elis que estava sentada no sofá com as mãos no rosto. Ela não parecia muito bem.
- Quer um café? – Eu perguntei. Eu acreditava que uma xícara de café sempre podia melhorar o dia de uma pessoa. – Eu fiz compras, agora tenho comida de verdade se quiser comer alguma coisa.
- Eu aceito o café. – Ela respondeu, ajeitando o cabelo. Estava com uma cara péssima.
Coloquei água pra esquentar no fogão e pó no coador. Salem terminou de comer sua ração, se esfregou na minha perna e foi até Elis como se desfilasse pela sala. Ela sorriu, fazendo carinho enquanto ele ronronava. Ele pulou em seu colo como se fosse o dono do lugar. E ele era.
- Você está indo embora? – Perguntei, olhando-a de longe, com um pouco de medo de sua resposta.
- Não.
Ufa.
- Por que tudo isso então?
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, depois respondeu:
- Aquele dia foi o maior caos na casa da minha tia. E não foi uma boa ideia ter dito que eu estava com você.
- Eu te disse que eu não era muito querida. – Eu ri. - O que ela disse?
- Não vou repetir o que ela disse, pra resumir ela falou que não era pra eu ficar andado por aí com você, uma “moça direita como eu”. – Ela falou essa última frase com um tom de voz engraçado - Aí eu briguei com ela.
A água terminou de ferver. Coloquei-a no coador, caindo direto na garrafa térmica vermelha que tinha comprado.
- Você quer com açúcar ou adoçante?
- Açúcar.
Esperei algum tempo até terminar de passar.
- Você quer o mestre Yoda ou o Batman?
- O que?
Ela olhou para mim e eu tinha duas xícaras, uma em cada mão. Ela sorriu.
- Yoda.
Enchi as duas e levei até onde ela estava. Ela tomou alguns goles do café em silêncio. Eu a observava, tensa. Ela então continuou falando.
- Falei que eu ia andar com quem eu quisesse. Ela não gostou muito por eu ter respondido. Eu tenho quase 35 anos e ela vem me tratar como se eu fosse uma adolescente de 13. – Ela estava muito irritada. - Passei as últimas semanas na casa de mais dois tios, mas pra mim já deu. Meu tio Ravid é o mais legal de todos, mas eu sinto como se eu atrapalhasse ele e a esposa dele. – Ela respirou fundo, como se o ar lhe faltasse - Eu to muito perdida, Leah. Não deu nada certo o que eu tinha planejado.
- O que você pensa em fazer agora?
Ela olhou para o líquido fumegante, terminou de tomar tudo.
- Aí que você entra.
- Como assim?
Ela colocou a xícara no chão e me olhou.
- Leah, eu posso ficar aqui na sua casa?
- O que? – Eu levantei do sofá como se tivesse tomado um choque. – Não.
- Vai ser por pouco tempo... Só até eu terminar tudo o que eu preciso fazer, depois eu volto pro Uruguai e você nunca mais vai me ver, eu te deixo em paz.
- Não, nem pensar.
- Leah, eu não tenho condições de pagar um hotel pra ficar. Eu posso cozinhar pra você, eu cozinho bem. – Ela começou a enumerar nos dedos. Ela tinha uma feição de desespero no rosto. – Eu posso lavar sua roupa, eu posso alimentar seu gato, eu limpo sua casa. Eu posso dormir num canto qualquer aqui no chão. Eu sou silenciosa, você nem vai perceber que eu estou aqui.
- Eu não sei se é uma boa ideia. Sério.
Ter Elisheva morando comigo era uma coisa me deixava completamente apavorada. Naqueles breves segundos começou a passar um filme em minha cabeça de como seria ter aquela mulher dividindo o apartamento comigo.
- Eu não tenho pra onde ir. – Ela abaixou os olhos. Segurou sua cabeça entre as mãos.
- Eu posso ligar pra minha mãe pra ver se você...
Ela me cortou.
- É por causa daquele beijo? - Eu desviei o olhar. Talvez? – Eu estou te dizendo que não tenho pra onde ir, não sei se você conseguiu ouvir essa parte. – Ela então levou a mão aos olhos e percebi que lágrimas escoriam por eles. Que merd*, Elis, não comece a chorar agora, não agora. - Eu não quero sair testando por aí pra saber se vai dar certo ou não ficar na casa de mais ninguém, eu estou exausta. Você me disse uma vez que era uma adulta, mas está sendo muito imatura nesse momento. Foi só um beijo, você mesma disse. Se você viesse até a minha casa pedindo abrigo eu te daria. Eu nem pensaria duas vezes. Seja lá o que tivesse acontecido com a gente e seja lá o que tiver passando pela sua cabeça que você tem me ignorado.
Eu não sabia naquele momento se realmente tinha sido apenas um beijo. Até porque eu não conseguia parar de pensar naquele beijo. Seria terrivelmente intimidante ter aquela mulher no mesmo teto que eu. Eu ia enlouquecer. Eu estaria assinando minha sentença. Ela então se levantou do sofá, pegando seu cobertor, colocou ele debaixo do braço de qualquer jeito.
- Larga esse cobertor ai. – Eu disse baixo. Ela ainda chorava.
- Não, eu vou embora. – Ela pegou sua mala, fungando. Uma ponta do cobertor caiu no chão, ela tentou enfiar essa ponta debaixo do braço novamente, mas era muito grande pra ela. Eu não fazia ideia de como ela tinha chegado até ali daquele jeito. Onde ela tinha arrumado aquele cobertor azul? A cena era de certa forma cômica e trágica.
Eu me aproximei e segurei o pano.
- Me deixa, Leah, eu estou indo embora. Vou te deixar em paz.
- Elis... - Consegui arrancá-lo de suas mãos, coloquei-o no sofá. - Olhe pra mim – Segurei em seus ombros e busquei seus olhos. - Eu sinto muito. Eu estou sendo imatura mesmo. – Ela desviava o olhar - Pare de chorar. Você pode ficar o tempo que precisar. Só pare de chorar, pelo amor de Deus.
Eu não sabia o que fazer com aquela mulher chorando na minha frente. Eu acho que eu ficava meio desorientada nessas situações. Será que devia abraçá-la? Falar uma palavra de conforto? Que palavra de conforto?
Ela então sentou-se de novo no sofá, abraçando o cobertor e voltou a chorar. Eu permaneci de pé em sua frente, apenas a olhando. Que merd*. Olhei para os dois lados. Salem me encarava, querendo dizer “Faça alguma coisa, sua idiota”. Que porr*, Elis. Aproximei-me dela e sentei-me ao seu lado, coloquei a mão em suas costas insegura, tentando reconfortá-la.
- Está tudo bem. – Eu disse. – Vai ficar tudo bem.
- Desculpe, eu só estou de TPM, não era pra eu estar chorando desse jeito.
- Tudo bem, não tem problema. - Ela continuou abraçando o cobertor. - Posso te fazer uma pergunta? – Ela concordou com a cabeça e me olhou. – Onde você arrumou esse cobertor?
Ela fungou.
- Tava em promoção na Pernambucanas.
- Ele é macio.
- É sim.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]