Capitulo 1 - E se...

 

O alarme já tocava há alguns minutos sem que Elena conseguisse sequer virar na cama. Sentia-se esgotada depois de mais uma noite de alguma insónia e sonhos sem sentido.

Bufou vezes sem conta até bater a mão no aparelho para silenciá-lo.

Olhou para cima e suspirou. Abraçou a almofada com muita força e gem*u alto.

            --Logo agora que o sono estava bom, essa porcaria toca. Aaahhhhh...

Riu do seu desespero e tirou o édredon fofo laranja quente de cima do corpo.

            --Como eu queria ficar na minha cama por mais duas horas...não, quatro.

Mais uma gargalhada e já se dirigia à casa de banho completamente nua.

O banho demorou o de sempre, ou quase sempre, 10 minutos. Ainda enrolada na toalha, abriu o armário e escolheu uma peça que gostava. Sim, se estava de mau humor tinha que compensar de alguma forma.

            --Mykonos, por onde andas? Venha dar a tua opinião. Preciso estar bonita ou nada mais dará certo hoje.

Suspirou ao lembrar da pilha de manuscritos que tinha sobre a mesa, na sua sala em Manhattan.

Mais um suspiro e a certeza de que não podia e nem devia se queixar. Tinha o emprego de sonho, numa editora bastante prestigiada de Nova York e muito bem cotada no mercado Europeu. Conseguira alcançar o sonho de muitas das suas amigas dos tempos de Ohio. Sim, viera de uma cidade pequena de Ohio até Manhattan, atrás de um sonho.

Trabalhar no departamento editorial da Eyes Wide Open era um orgulho, depois de muitos empregos sem sentido, mas que serviram para mostrar o que não queria. Logo, era justo atribuir-lhes a devida importância. Tinha 30 anos e há dois trabalhava no seu emprego de sonho.

Mais um suspiro e olhou-se com vagar ao espelho.

            --Mykonos! - Gritou mais uma vez sem que houvesse resposta.

            --Elena, para de ser insegura. Mykonos preciso da tua opinião! - Gritou rindo do seu desespero e da sua loucura.

Finalmente Mykonos apareceu na porta do quarto e a encarou.

            --Hey, todos os dias queres vir para a cama comigo e hoje que eu clamo pela tua presença, tu simplesmente fazes ouvidos moucos?

Nenhuma resposta. Claro.

            --Elena, pare de esperar que um gato emita opiniões. Estou louca, fato. Culpa da cabra da Brigitte. Ah, Brigitte é a minha chefe no emprego de sonho...que às vezes não passa de um pesadelo disfarçado do sonho americano. Elena, pelo amor de Deus, precisas de ajuda. Ou falas com o espelho, ou falas com um gato, e pior, esperando feedback.

Correu para pegar seu gato que ronronou feliz da vida.

            --Ah Mykonos, como eu queria ser um felino, sem preocupações, sem crises existenciais, sem sonhos impossíveis e sem chefe insuportável.

Mykonos levantou uma orelha e fez uma cara de quem não concordava, mas isso eram apenas devaneios da sua dona, que acreditava poder dialogar com um animal.

            --Estou bonita? Eu sei que gostas desse look. - Piscou e o gato pareceu concordar.

Ela vestia uma saia castanha um centímetro acima do joelho, camisa de manga comprida azul clara, cinto na cintura e scarpin num tom de castanho mais claro que a saia. Usava brincos azul turquesa e uma leve corrente de ouro que quase não se notava. Pouca maquiagem, porque não gostava, exceto o rímel que era seu maior aliado. Tinha a boca grande e lábios cheios, disfarçava com batons neutros e tons muito claros. Não gostava de chamar a atenção e queria ganhar o mundo. Paradoxos de Elena.

Soltou o cabelo, preto, forte e bem cuidado, para logo em seguida prendê-lo num coque bem feito. Gostava do seu cabelo, herança dos gregos, mas raramente o soltava como exigiam sempre alguns poucos amigos que tinha.

Olhou as horas e suspirou mais uma vez. Teria de sair em 10 minutos para não perder o metro que a deixaria a escassos metros do conjunto de arranha céus onde ficava a editora. Caso contrário teria de andar 5 quadras na baixa de Manhattan, situação que preferia sempre evitar.

Saiu do quarto e Mykonos a seguiu. Olhou para o aquário onde Orchid e Tulip pareciam ainda dormir e sorriu.

Uma mulher que, aos olhos dos outros, tinha todo o sucesso e cujas únicas companhias eram dois peixes e um gato. Mais uma vez riu de si mesma.

            --Mykonos, na minha terra diriam que preciso urgentemente de um marido, porque senão ficarei para tia. Tu também pensas assim? Mas atenção, sou de uma cidade pequena onde o sonho das meninas é casar logo e constituir família. Ah Mykonos, eu nunca quis nada disso. Graças a todos os deuses gregos sou filha da minha mãe, que sempre me impulsionou a correr atrás dos meus sonhos e a ser quem eu quisesse ser.

Mais uma orelha levantada e Elena riu.

            --Ela está pelo mundo Myk, num iate pelo atlântico com o senhor aventureiro...minha mãe é mais corajosa do que eu, ou pelo menos, não tem medo de correr riscos, o que vem a ser a mesma coisa.

Mais um suspiro profundo, enquanto colocava comida no aquário.

Voltou ao quarto, borrifou duas gotas de perfume, pegou a bolsa e saiu.

Na sala que também era cozinha e lounge, tudo no mesmo ambiente, olhou para o seu computador sobre a mesa de canto. Parou em frente à tela e nada tinha mudado. A mesma frase com a mesma pontuação. É, não conseguia sair dali, estava travada, sem inspiração ou então...

            --Tchau meus amores, quando eu voltar nós vamos limpar esse apartamento.

Saiu batendo a porta e rindo muito das próprias loucuras.

 

*****

Quase chegando à estação em que descia, Elena lembrou-se que Milanka pedira que a chamasse, para irem juntas à baixa. Suspirou profundamente.

            --Onde anda essa minha cabeça? A Milanka sempre me acode e quando ela me pede alguma coisa...

Mais um longo suspiro e sentiu o ar bater-lhe na face. Olhou o relógio e percebeu que ainda tinha tempo para um café rápido no lugar de sempre. Pediu um frappé e uma tiropita e foi caminhando sem pressa para o edifício onde trabalhava.

Adorava o outono em Nova York, aliás era a sua estação favorita. Sorriu enquanto tentava equilibrar o café e o folhado numa mão, e na outra o telefone e a bolsa. Olhou para cima e seu olhar não alcançou o céu. Trabalhava no trigésimo sétimo andar de um total de 42. Terminou a refeição rápida, aprumou-se e entrou no Street Tower III.

 

*****

Elena estava tão concentrada no trabalho, que não ouvia o telefone interno a tocar. Tentava entender a linha daquela narração, mas ou estava muito fora de orbita, ou o aclamado escritor tinha perdido a noção ou o dom.

"Não gosto particularmente do que ele escreve, mas já tive menos trabalho com as obras anteriores." - Pensava enquanto alongava os braços por cima da cabeça, para criar espaço na espinha.

            --Elena...Elena...

            --Hmmm? - Ela olhou para o lado e viu a chefe com os olhos virados na sua direção. Na face tinha aquele sorriso que mesclava cinismo e alguma outra coisa, que ainda não conseguira definir.

            --Olá Brigitte. - Disse de forma educada.

            --Olá, o teu telefone estava a tocar, mas acho que o trabalho está bem mais interessante.

Elena sorriu e não disse nada. "O trabalho está uma merd*." - Pensou.

            --Nem percebi...

            --Era o interno, depois retornas. Só vim relembrar-te da nossa reunião, daqui a pouco, com a nossa joia.

Ela referia-se a Gerard Lewis, o escritor que mais vendia nos Estados Unidos e que já alcançava números bastante estimulantes em outros mercados.

            --Não me esqueci, até porque o lembrete está gritando no computador.

Brigitte soltou uma gargalhada que a Elena pareceu exagerado, mas ela era a dona e podia fazer a loucura que quisesse.

            --Gregory está muito feliz com nossas últimas aquisições.

            --Trabalhamos arduamente para manter o padrão da editora.

            --A equipa editorial é o melhor que há nessa empresa...

            --Todos trabalhamos para o mesmo fim...

            --Mas, tens a noção que o trabalho mais difícil é o nosso. Ah, mas deixemos de conjecturas. Tempo é dinheiro!

Ela adorava aquela frase, aliás ela vivia por dinheiro, mais dinheiro.

            --Tudo certo para a reunião, já li metade da obra e tenho poucas recomendações...

            --Claro, ele é um génio. Acelera, porque quero esse lançamento para já!

            --Não te esqueças de ouvir a Claire e o Mathieu...

            --Essa obra está sob a tua responsabilidade então não vejo porquê...

            --Somos uma equipa...

            --Só nós duas e ele, está decidido. Tempo é dinheiro!

E deixou a sala com aquele seu porte de diva soberba e elegante.

Elena passou algum tempo olhando para a porta sem saber ao certo o que pensar. Passado o transe, pegou o telefone e viu que a ligação era da sala de Milanka.

Ligou imediatamente e foi atendida pela colega da amiga. Foi informada que ela tinha acabado de sair e passaria o resto do dia no Brooklyn. A gráfica da editora ficava no Brooklyn e Milanka muitas vezes trabalhava dali.

 

*****

O dia passou e Elena não se deu conta. Gostava quando era assim, sinal de que o trabalho era suficientemente interessante para absorver toda a sua atenção.

Mas, naquele dia em particular, não tinha sido tão linear assim. A reunião com o astro deixara-a ainda mais preocupada com a quantidade de trabalho que teria com aquele manuscrito. Mas, era o que gostava de fazer. Não se cansava de repetir aquela frase.

Além da obra do astro, tinha outras tantas para explorar e quase todas de gente que vendia bem, ou seja, gente que Brigitte carregava no bolso.

Queria ir para casa. Estava exausta e com saudades do silêncio do seu canto. Tinha que arrumar o apartamento, um dos seus rituais preferidos para acalmar a mente. Sim, ela fervia e ainda mais, porque não conseguia avançar no projeto pessoal.

            --Será que a Milanka está certa?

Riu enquanto desligava o computador e pegava a bolsa.

A caminho de casa, num vagão milagrosamente com pouca gente, enquanto ouvia musica no seu telefone, pensava nas loucuras da amiga.

"Teu mal é falta de homem. Ninguém normal pode passar tanto tempo assim, sem beijar na boca. Elena, pelo amor de Deus, faça como eu...etc, etc, etc...

Sorriu e balançou a cabeça. Era completamente diferente de Milanka, mas adorava aquela sul africana maluca, que além de colega de empresa era vizinha de apartamento.

Saiu da estação e estava a chuviscar. O apartamento não ficava muito longe, mas quando chegou em casa já estava bastante molhada. Entrou no edifício de dois andares correndo, na ansia de chegar logo em casa, porque não tinha a certeza se deixara a janela fechada. Mykonos não pulava para a rua, mas poderia se molhar na chuva, já que seu lugar favorito era à beira da janela. Seu gato adorava ver o movimento da pacata rua de Astoria onde viviam.

Em casa, deixou a bolsa na entrada e foi tirando o sapato e o cinto enquanto gritava por Mykonos. Sorriu quando viu que ele estava no seu segundo lugar favorito, em cima da sua mesa de trabalho com o rabo sobre o laptop.

            --Hey Mr, tudo bem?

Mykonos levantou a cabeça e voltou à sua posição inicial. Quando Elena chegou ao quarto, ele já andava atrás dela.

            --Estou cansada Myk, mas precisamos limpar essa casa. Quero passar o fim de semana sem preocupações banais, apenas focada no trabalho. Sim, gato, eu sei que hoje ainda é quinta, mas quero trabalhar a partir de amanhã.

Mykonos já não estava no quarto e Elena riu de si mesma. Vestiu um short e uma camisa velha e começou a limpeza pela cozinha.

Nove da noite. Tudo arrumado como gostava, animais de estimação alimentados, Mykonos na janela, os peixes no mundo deles, a casa perfumada e quase em silêncio. Ouvia-se jazz num volume baixo e ela já estava de pijama. Olhou para o computador e soube que naquela noite não conseguiria nada. Estava cansada e sem qualquer resquício de inspiração. Além disso, precisava dormir cedo para recuperar o equilíbrio do corpo e da mente. Noites seguidas de péssimo sono...

Mas, ainda precisava comer alguma coisa, que não seria nada além de uma salada grega, e levar o lixo para o depósito.

Primeiro o lixo.

Suspirou resignada.

            --Já volto Myk.

Abriu a porta e deu alguns passos em direção ao depósito de lixo, quando ouviu barulho no apartamento vizinho.

            --Troia! Ei, Troia!

Não conseguiu controlar um risinho.

            --Está tudo bem. Tudo bem.

Sorriu para a amiga que aparentava alguma preocupação no rosto sempre iluminado pelo sorriso mais lindo que Elena já vira.

            --Ufa!

Risos.

            --Não sabia que estavas em casa.

            --Cheguei há mais ou menos meia hora. Hoje o dia foi tenso...

            --Nem te conto o meu...

            --Ah, vais contar! Acabei de pedir uma pizza, daquela que te ensinei a gostar, e vamos comê-la juntas.

Risos.

            --Nem vou pensar em negar. Estou com fome e só tem salada grega em casa.

            --Ah não, vamos comer pizza e beber vinho...aquele maravilhoso, ainda tem na tua mini adega?

Gargalhadas.

            --Tu não prestas mesmo...

            --Nada e tu me adoras.

Risos.

            --Já levo o vinho e a minha companhia. - Elena sorriu fazendo cara de enfado.

            --A melhor...bom, para este momento em que não quero...

            --Ah cala a boca, depravada!

Gargalhadas altas.

 

*****

A pizza já tinha sido devorada e a garrafa de vinho ia a meio, mas a conversa parecia não ter hora para acabar.

            --Mila, nem me lembrei hoje de te chamar...

            --Sem problema, acordei cedo e fui fazer uma aula de funcional, se tivesses batido à porta eu provavelmente não estaria.

            --Essa cara...

            --Ah que raiva que eu tenho!

            --De quê sua maluca?

            --Eu sou transparente, consegues saber o que se passa na minha vida apenas olhando para mim...

            --Às vezes pelos gestos também...

Risos.

            --Sim senhora, e eu não sei nada de ti.

            --Ah Milanka, por todos os deuses gregos!

Gargalhadas.

            --Eu sei alguma coisa? Além do obvio?

            --Já ponderaste a possibilidade de não haver nada para saber?

            --Impossível. Mas impossível mesmo. Ninguém é agraciado com olhos estonteantes como estes, que me olham e parecem me desnudar, e muito menos com uma boca de pecadora dessa em vão.

Elena quase se afogou de tanto rir.

            --Troia, eu te conheço há quase dois anos e moramos praticamente coladas há mais de 8 meses...

            --Tu já tiveste mil casos e eu dois ou três.

Risos altos.

            --Dois e o último não considero, porque sequer foste para cama com o Ian. Não sentes falta de uma boa pegada? De intensidade? De vida louca?

Risos.

            --Há outras coisas que me dão prazer...

            --Ler livros e depois ter de muitas vezes reescrever alguns, quase na integra, porque o povo é famoso e sem talento algum?

            --Eu adoro o meu trabalho...

            --Eu sei e eu também, mas eu não serviria para trabalhar na área editorial. Primeiro, porque não tenho talento e segundo, porque eu não tenho paciência. Gritaria na cara do povo que só escrevem merd*.

            --Amor, tu és de marketing e sabes que há tanta coisa por trás...

            --Pois, e como. Não sei como aguentas a Brigitte todos os dias. Ela me dá engulhos, ainda bem que no meu departamento ela não mete muito o nariz.

            --Mas mete, ela mete o nariz em tudo...

            --Sim, mas tu tens de olhar para aquela cara de branca azeda todos os dias.

Risos.

            --Branca, mas nada azeda. Ela é bonita...

            --Elegante, poderosa, mas bonita só se for na tua ótica de sonsa.

Gargalhadas.

            --Mas, não vamos perder nossa noite a falar daquela que já tem a vida ganha. Lembra que nós mal começamos nossa trajetória rumo ao sucesso em Nova York.

A gargalhada foi mútua. Elas sempre brincavam que um dia chegariam ao topo e fartavam-se de repetir aquela frase, quando a frustração parecia varrer o sonho para longe.

            --Eu ainda nem subi para o loft lá de cima.

Risos. 

            --Continua vazio. Quando subires não te esqueças dos pobres, aquele terraço privado é incrível.

            --O nosso também é interessante, mas o outro...ah um dia eu chego lá, podes acreditar grega.

Risos.

            --Agora para de divagar, o que deixou a senhorita com essa nuvem nos olhos?

            --Vou viajar amanhã à hora do almoço.

            --A trabalho?

            --Não...- Milanka fez aquela careta que Elena já conhecia.

            --Ah, o empresário dos campos de golfe passou da primeira semana...

Risos.

            --O Ethan é interessante e aventureiro como eu, e quer a mesma coisa...

            --Nada de especial...

            --Isso, nada de apegos sem sentido.

Risos.

            --Vão para onde?

            --Chicago. Voltamos segunda à noite. Tenho alguns dias de folga lá na editora e meu trabalho está todo adiantado. Estou entusiasmada!

Elena sorriu. Milanka era muito diferente dela, mas aprendera a entender e achar tranquila aquela forma de viver. A amiga pelo menos vivia...

            --Então, se estás entusiasmada e eu vejo que sim, qual o motivo dessa nuvem?

            --Fico preocupada contigo, Troia...

            --Está tudo bem...tudo bem.

Elena fez um afago no ombro da amiga e agradeceu mentalmente por ter uma amizade assim.

Milanka olhou para algum ponto perto da porta de entrada e Elena seguiu-lhe o olhar.

            --Está tudo bem.

            --Ao menos deixas a porta trancada?

            --Claro.

            --E sem a chave na fechadura.

            --Sim...há algum tempo que está tranquilo.

            --Tu que não me deixaste instalar a camera no telefone...

            --Ah Mila, nada a ver...está tudo bem, acredita em mim.

            --Ah, já sei, tens medo que eu veja que recebes homens misteriosos, ou mulheres poderosas e depois ah, depois...

Gargalhadas altas.

            --A única pessoa que passa perto da minha porta és tu e algum entregador aleatório.       

            --Que tristeza. Uma boca dessa em vão...ah eu com esses lábios vermelhos ao natural, inchados sem botox e desenhados ao pormenor pelas mãos de Deus...ahhhh, que mundo injusto.

Gargalhadas altas.

            --Há quanto tempo não beijas?

            --Milanka vou para casa dormir. Tu amanhã vais viajar em romance e eu terei um fim de semana de muito trabalho.

            --Eu não acredito que trazes trabalho para casa! Elena, juízo.

Elena sorriu e beijou a amiga na testa.

            --Misteriosa..., mas eu gosto dessa grega.

            --Nasci no Ohio.

Risos altos.

            --Mas, qualquer um que olha para ti, vê logo que és descendente de uma deusa grega, de todos os deuses gregos.

            --Ainda nos vemos amanhã?

            --Claro que sim. Vou trabalhar e lá pelas 3 da tarde, o Ethan me salva daquelas paredes de aço.

Gargalhadas.

            --Adoro-te.

            --Eu sei. O que seria dessa tua vida chata sem a negra estonteante?

            --Nada.

Elena abraçou a amiga e beijou-lhe a cabeça.

            --E essa vaca ainda é mais alta do que eu.

Elena riu com muita vontade e mandou um beijo no ar à amiga, antes de fechar a porta do seu apartamento.

 

*****

Sexta amanheceu chuvosa e o dia se arrastou. Elena estava naqueles dias de humor muito oscilante, isso acontecia sempre que dormia mal. Na realidade, mal tinha dormido e aquilo já se tornava rotina. Acreditara que o vinho ajudaria, mas nada de extraordinário tinha acontecido. Tinha dormido três horas de sono no máximo. Estava muito cansada e pela graça dos céus Brigitte não aparecera na sua sala. Ouviu pelos corredores que ela fora com o marido, que era o dono da editora e de outras tantas empresas, à Carolina do Sul.

Lá pelas duas e meia da tarde, Milanka passara como um vento pela sala dela para se despedir. Já estava com saudades dela. Muitas vezes não se viam aos fins de semana, por terem estilos de vida bem diferentes, mas era sempre bom saber que ela existia e que morava ao lado.

Colocou o foco no trabalho até perto das seis da tarde, quando seguiu o ritual de quase sempre. Metro da linha amarela para o Queens. Gostava da sua rotina, ou pelo menos já estava acostumada.  Não gostava de mudanças repentinas, não planeadas e muito menos de situações que lhe fugiam ao controle.

 

*****

Elena olhou para o relógio e teve vontade de quebrar o laptop. Estava sentada há várias horas, tentando produzir alguma coisa que fizesse sentido e já tinha apagado varias folhas vezes sem conta. Nada fazia sentido. Estava uma porcaria!

            --De repente não é nada disso, garota...nada disso.

Encostou a cabeça na cadeira de escritório, que comprara exatamente para que o trabalho pudesse fluir e suspirou profundamente.

            --Se ao menos eu pudesse dormir e esquecer meu fracasso...

Teve vontade de arremessar tudo, mas pensou melhor e decidiu fazer uma sessão de yoga. Sempre acalmava e ela adorava o efeito na mente. Estendeu o tapete, vestiu a roupa de pratica e já ia iniciar, quando lembrou que tinha de dar comida a Mykonos.

            --Hey Myk, por onde andas? Já sei, dentro do cesto de roupa na casa de banho.

E lá estava ele todo enrolado numa blusa de lã.

            --Não tens fome?

Ele miou mostrando que estava faminto.

            --Vem cá meu amor, coisa peluda deliciosa da minha vida.

Elena apertou o gato nos braços e cheirou profundamente.

            --Ainda bem que o senhor não se aventurou perto da janela, ou teríamos um gato com cheiro de mofo e consequentemente fedido. Bom rapaz.

Ele pulou e correu pela casa à procura de comida. Elena foi atrás, mas antes clicou no seu leitor de musica.

Khalid cantava Know your worth e ela balançava a cabeça, enquanto observava o seu companheiro de casa devorar o pote de comida.

            --Sim, vale a pena. Vale! - Disse a si mesma, enquanto se abaixava para apanhar alguns bocados de comida, que Mykonos deixara saltar para fora do pote.

            --Vamos ao yoga, Myk?

Ele não parecia muito interessado e andou para perto da janela da cozinha.

            --Vou fechar essa janela ou o senhor se molha.

Uma hora depois ou talvez bem mais do que isso, Elena olhava para o teto do seu apartamento, ansiosa por fechar os olhos e dormir profundamente.

Chovia com alguma intensidade e ela decidiu sair do chão, tomar um banho quente, uma chávena de chá mais quente ainda e cair na cama desejando que o sono aparecesse.

Algum tempo depois, já na cama, sorria com a mensagem de Milanka que já estava em Chicago.

"Troia, Ethan é uma maravilhosa surpresa. Chicago ferve e eu estou uma brasa. Vê lá se sais do casulo no fim de semana, e faça o favor de ter mil loucuras para partilhar quando eu voltar. Adoro-te grega misteriosa."

"Aproveita maluca. Quanto a mim, sem loucuras. Alguém precisa manter a sanidade nessa dupla. Exploda em Chicago e volte inteira para Nova York. Beijo, também te adoro."

Elena fechou os olhos e respirou fundo, precisava dormir...

 

*****

Madrugada...

Elena corria pelos arredores do parque Astoria e cada vez mais, sentia gotas fortes de chuva batendo contra o seu rosto. Corria sem objetivo definido, mas corria na certeza que chegaria em algum lugar. Passadas largas, respiração controlada, quase uma atleta. Tudo ia bem até que...

            --Aiiiiii... - Gritou levando a mão ao rosto.

            --Ah, ainda tu é que gritas? Não olha por onde anda?

            --Eu...

            --Ah porr*! Se essa maquina cai...meu Deus...

Elena olhou e viu que tinha uma máquina fotográfica, presa pela correia ao fecho do seu casaco. Teve vontade de rir do inusitado, mas a cara de poucos amigos da dona fez com que permanecesse séria.

Com as mãos molhadas e tentando não danificar o aparelho, tirou a correia da máquina do fecho e estendeu à moça.

Da cara amarrada para uma sonora gargalhada foi um segundo.

A cena era quase de filme, a mulher com os cabelos molhados, uma capa de plástico amarela, segurando a maquina como se fosse ouro e rindo na sua cara. Rindo não, soltando gargalhadas.

            --Estás maluca?

            --Eu? - Ela riu mais ainda na cara de Elena.

            --És doida?! - Elena gritou.

            --Não sou eu que saio para correr na madrugada, debaixo de chuva e com um casaco de porquinhos tomando sorvete. - Mais uma gargalhada.

Elena olhou para a roupa e não acreditou que tivesse saído à rua com um pijama velho.

            --Ah vá á merd*, sua idiota! - Tentou desvencilhar-se da mão da mulher maluca, que sabe-se lá porquê, estava parada na sua cintura.

Ela continuava a rir e a irritar Elena, que virou as costas para seguir em outra direção, no momento em que ouviu um cão latindo.

A mulher ajoelhou-se quase agradecendo aos céus, e para espanto de Elena e da própria estranha, o cachorro pulou-lhe nas pernas.

            --Eiiii...hmmm, estás todo molhado. - Instintivamente, Elena ajoelhou-se e começou a afagar o golden retriever na cor chocolate claro.

            --Esse é o Zayko, meu fiel amigo. - A estranha fez as devidas apresentações.

            --Oi Zayko, chamo-me Elena.

            --Elena, parece que meu cachorro gostou do teu casaco.

Ela riu não disfarçando o ar debochado, enquanto Elena olhava-a com muita indignação.

 

Fim do capítulo