Capitulo 2
O celular de Elis começou a tocar quando esperávamos nossa refeição. Estávamos num restaurante que ficava relativamente próximo à casa da Lena, tia de Elis, ali no Higienópolis, um bairro aqui de São Paulo que tinha uma boa concentração de judeus e sinagogas.
- Oi Esther. – Ela atendeu. Era minha mãe. Por que minha mãe estava ligando pra ela? – Sim, ela me buscou sim. Sim, está sendo educada. – Ela fez uma pausa e me olhou com um sorriso no rosto - Nós vamos comer alguma coisa agora. – Ela colocou a mão na testa e riu balançando a cabeça – Sim, pode deixar. Ok. Sim. Eu falo pra ela. Certo. Eu passo aí na próxima semana. Um beijo.- E desligou. - Sua mãe pensou que você tinha se esquecido de mim. Disse que ligou, mas você não atendeu.
- Ela deve ter feito minha caveira pra você. – Peguei meu celular e vi as ligações perdidas de minha mãe, eu nem percebi quando ela ligou.
- Ela só te acha um pouco... rebelde. – Ela olhou para minhas mãos e depois começou a mexer em sua bolsa, como se estivesse procurando algo.
- Minha mãe é ótima em falar mal de mim. – Eu balancei a cabeça. Ela então tirou um frasquinho com álcool de sua bolsa. – Mas minha irmã é a queridinha dos meus pais. – Continuei falando e tentando entender o que ela estava fazendo.
- Me dê sua mão – Ela pediu. Eu insegura guardei o celular no bolso e lá estava meus dedos coloridos a mostra. Ela colocou álcool nas minhas mãos espalmadas diante dela. A humilhação não poderia ser maior. Eu comecei a esfregar uma na outra e sem que eu esperasse por aquilo ela puxou minha mão direita para ela, com um guardanapo em suas mãos começou a passar na ponta dos meus dedos, terminando de limpar tirando toda a tinta. Eu fiquei sem reação com aquilo. A sensação do toque de sua pele junto a minha me causou uma inquietação terrível. Eu só queria que ela largasse logo aquilo tudo. Mas pra piorar ela começou a fazer o mesmo com a outra, naquela tortura silenciosa daqueles dedos macios e aquela aliança brilhante sorrindo para mim.
- Pronto. – Ela disse satisfeita.
Droga. Eu pensei. Tinha que ficar longe dela. Me ajeitei na cadeira como se tivessem pregos no assento.
- Com licença. – Um garçom parou ao nosso lado e nos serviu com nossos pedidos. Eu comecei a comer silenciosamente, com mil pensamentos na cabeça. Percebia seu olhar em cima de mim, como se eu a intrigasse.
Até que ela quebrou o silêncio.
- O que você faz da vida, Leah?
- Eu to fazendo um bico de tradução no momento. Faço trabalhos escolares também.
- Trabalhos escolares?
- Sim, tipo TCC’s, por exemplo. As pessoas não conseguem fazer, não tem tempo, sei lá, aí elas me pagam pra fazer pra elas.
Elis franziu o cenho.
- Isso não é... errado? Quer dizer, essas pessoas estão se formando e você está fazendo todo o trabalho delas.
Dei de ombros tomando um gole do meu refrigerante.
- Meu gato precisa comer. As pessoas precisam se formar. Todo mundo fica feliz.
- E você é formada em que?
- Na escola da vida. – Debochei.
- Que coisa mais irônica, Leah. – Ela segurava o queixo com as duas mãos, me olhando compenetrada. - Você faz o trabalho duro das pessoas e não tem nenhuma formação?
- Não. Mas eu conheço um pouco de tudo, o que têm mais procura são desses cursos tecnólogos, sabe? Eu aprendo rápido. O que eu não souber eu estudo, corro atrás da matéria.
- Há quanto tempo faz isso?
- Uns três anos, mais ou menos.
- Gostaria de ver algum desses seus trabalhos. – Ela tomou um gole do seu suco. – Você poderia me enviar?
- Sim, claro. – Abaixei os olhos, comendo.
Ela pegou seu celular e ficou me olhando.
- O que? – Olhei para ela e ela estava me aguardando - Você quer agora?
- Sim, por que não?
Tirei meu celular do bolso, procurei no meu e-mail "profissional" algum arquivo enviado. Fiz algumas alterações rápidas num editor de texto e salvei.
- Você quer que eu te mande por onde? No whats?
- Pode ser, vou te adicionar, pera ai.
E ela me adicionou.
- Mas e você? Faz o que lá no Uruguai? – Perguntei após anexar e enviar o arquivo.
- Eu era professora universitária.
Eu cuspi o refrigerante que estava tomando. Comecei a tossir loucamente. Ela riu de minha reação. Limpei minha boca com o guardanapo. As pessoas ao redor começaram a nos olhar. Eu coloquei as duas mãos no meu rosto. Puta merd*.
- Eu acho melhor apagar o arquivo que te enviei. – Disse, pegando meu celular novamente.
- Não, já estou lendo. Não tem o nome de nenhuma instituição?
- Não, eu protejo meus clientes, professora. – Eu fiquei olhando ela correr os olhos por aquelas linhas, me sentia tremendamente tensa – Você tem noção que é como se eu tivesse contado a um policial que eu assaltei um banco, né?
- Não seja exagerada, Leah. Eu não vou te dedurar.
Continuei comendo enquanto ela também comia e lia.
- De que matéria você dá aula? – Perguntei, cortando o silencio sepulcral.
- Tenho mestrado em matemática financeira, mas sou formada em química. – E ela me olhou - Nada a ver, né?
- Ah, tem a ver com números, então ta valendo. Mas eu ouvi bem? Você era professora, o que houve?
E sem me olhar e sem me responder ela continuou:
- Olha, isso aqui está muito bom. Parece até que você frequentou essas aulas de Gestão Comercial. Por que faz isso?
- Já te disse o porquê.
- Sim, mas porque desperdiça esse seu talento com isso? Nesses três anos que gastou fazendo trabalhos para outras pessoas você já teria se formado em seu próprio curso e estaria usando sua inteligência para o bem.
- Você faz com que eu me sinta uma pessoa muito errada.
- Mas isso é realmente errado.
Havia uma televisão pendurada na parede há poucos metros de nós. Uma repórter falava sobre o novo Coronavírus e o número de infectados na China:
“No país, foram registradas 2.445 mortes até o momento. No mundo, já são 1.712 casos confirmados”.
- Será que vai chegar até a América Latina? – Ela perguntou me tirando de meus pensamentos, cortando o clima estranho que tinha se instaurado entre nós.
- Eu não tenho ideia, acho que não. Essas coisas nunca chegam até aqui.
O garçom se aproximou de nós novamente. Tínhamos terminado nossos pratos. Ele perguntou se poderia recolhê-los e nos ofereceu um café. Saímos do restaurante em seguida e caminhamos em direção ao carro. A tarde estava agradável. Não estava muito quente e batia uma brisa gostosa. Tinha estacionado em baixo de uma árvore. As ruas daquela região eram bem arborizadas.
- Você costuma sair no Carnaval?
- Não gosto muito de Carnaval. Não sou muito de muvuca, sabe?
- Sei.
Pude ver a decepção em seus olhos. Estávamos na quinta, se eu procurasse já encontraria algum lugar para levá-la antes de sexta de carnaval. Talvez ela quisesse que eu dissesse um “vamos marcar alguma coisa”, mas talvez fosse melhor eu me manter bem afastada dela. Não estava gostando de como eu estava reagindo aquilo tudo.
- Vamos, vou te levar até a casa de sua tia.
E entramos no carro. A casa de Lena ficava há pouco menos de dez minutos de carro dali. Ela se despediu com um beijo em meu rosto da mesma forma que me cumprimentou.
Nem esperei que ela entrasse e já mandei um áudio no WhatsApp para Carla.
- Oi Carlinha, você tem planos para o Carnaval?
Fim do capítulo
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