Capitulo 1
Tinha acabado de passar um café. Coloquei na minha xícara preferida e voltei para meu computador. Ainda tinha muitas páginas para traduzir até o final daquela tarde. Tinha conseguido um freela e estava tentando produzir com a maior qualidade e quantidade que conseguisse.
Meu celular começou a tocar. Olhei no visor antes de atender.
- Oi mãe.
- Leah, você pode me fazer um favor?
- O que você precisa?
- A filha da Dalice, sabe a Elisheva? Ta chegando de viagem hoje e precisa que alguém pegue ela no aeroporto de Guarulhos.
- Justo da Dalice? – Torci o nariz. Ela falava da filha da irmã da minha avó. A parte da família que tinha mantido as raízes judaicas. Nesse momento formei a imagem dessa mulher em minha frente.
- Claro que conhece, é sua prima. Ela vai chegar às 15:00.
- Mãe, eu estou meio ocupada por aqui. – Tentei desconversar.
- Todo mundo ta trabalhando filha, só você que pode pegar ela. O seu primo Renan ia buscar ela, mas apareceu um compromisso importante e ele não pode desmarcar.
- Eu também estou trabalhando. – Disse em um tom meio rude.
Como ela acha que sobrevivo? Pensei.
- Trabalho em casa não é trabalho, né filha?
Minha mãe sempre desvalorizou minha profissão só porque eu não tinha um trabalho formal e vivia de bicos em bicos.
Revirei os olhos.
- Eu não acho que sou a pessoa mais adequada pra pegar ela no aeroporto, mãe.
- Filha, preciso desligar, tenho uma reunião agora. Não se esqueça: Aeroporto. 15:00. Elisheva.
E desligou.
Droga. Procurei meu maço de cigarro na gaveta da escrivaninha e lembrei que tinha parado de fumar. Encontrei um maço vazio, amassei a embalagem e olhei no relógio. Já se passava das 13:00, eu nem tinha almoçado ainda. Talvez devesse tomar um banho pra pelo menos pra ficar mais apresentável.
Eu tentei me lembrar dela, mas não me recordei de ninguém, só sabia que ela era mais velha que eu. Por que ela não podia se virar sozinha? Por que justo eu tinha que ir até lá pra receber ela?
Fui até o banheiro. Tirei a roupa e deixei a água cair em meus cabelos negros. Eu tinha a lateral da cabeça raspada e algumas tatuagens espalhados pelo corpo. Queria ver a cara de Elisheva quando me visse se ela fosse uma daquelas religiosas ortodoxas. Acho que ia ser até divertido.
Cheguei no aeroporto pouco antes das 15:00, deixei o carro no estacionamento. Queria mandar o ticket do preço pra minha mãe. Era só o que me faltava. Por que ela própria não tinha vindo? Procurei o portão de desembarque me sentindo meio rabugenta. Tinha arrancado uma folha de um caderno universitário e escrito o nome de minha prima com uma canetinha laranja. A caneta tinha vazado e eu estava com as pontas dos dedos laranja também. Pensava no quanto me sentia ridícula naquele momento segurando aquele papel. Tinha ainda mais umas 200 páginas em casa pra traduzir, meu aluguel vencia no começo do mês de março e estávamos no dia 20 de fevereiro. E lá estava eu esperando uma parente desconhecida no aeroporto com os dedos na cor laranja.
O relógio marcou três da tarde e pouco tempo depois as pessoas começaram a passar por mim e eu me perguntando se ela demoraria muito. Será que iria atrasar? Peguei meu celular que tinha acabado de vibrar em meu bolso. Era uma mensagem da minha mãe perguntando se ela tinha chegado. Minha mãe era muito impaciente, ela tinha que aprender a esperar um pouco. Quando estava digitando uma resposta ouvi uma voz me chamar.
- Leah?
Tirei os olhos do celular e percebi uma mulher mais baixa que eu parada em minha frente. Tinha os lábios vermelhos, olhos azuis, um piercing na sobrancelha. Seu cabelo era cacheado e cortado pouco abaixo dos ombros. Usava uma calça jeans e uma blusa de lã dobrada na altura dos cotovelos.
Eu fiquei encarando-a por alguns segundos me perguntando se eu a conhecia de algum lugar. Fiquei com uma cara de ponto de interrogação.
- Eu sou sua prima – E ela olhou para a folha que eu segurava, deve ter reparado nos meus dedos sujos de canetinha e fiquei com vergonha. Eu nunca imaginei que a Dalice poderia ter uma filha bonita desse jeito. E ela não parecia ser religiosa e nem chata igual a mãe.
- Nossa! Oi! – Foi o que consegui dizer. – Eu imaginava você completamente diferente, Elisheva.
- Pode me chamar de Elis. – Ela sorriu.
Deus que me perdoe, minha prima era gata pra caralh*.
Obrigada, mãe.
Ela usava uma bolsa marrom pendurada no ombro, um relógio dourado no pulso direito, pulseiras e uma aliança na mão direita. Uma mulher daquelas não estaria sozinha, isso era óbvio. Ela se aproximou de mim meio sem jeito e segurou em meu ombro me dando um beijo suave no rosto, me cumprimentando. Ela tinha um perfume gostoso.
- Fez uma boa viagem? – Perguntei.
- Sim. Você está enorme, Leah. A última vez que te vi você era um bebê, não tinha nem um ano.
- Sério? – Me senti uma criança naquele momento com meus 25 anos. Eu percebi que ainda estava segurando o papel com as duas mãos na altura do umbigo, igual uma idiota. Eu então amassei o papel e tentei dar um jeito nos meus dedos sujos, mas acho que a tinta não ia sair só esfregando.
- Sim, eu tinha nove anos na época – Ela disse, olhando para o que eu estava fazendo. - Foi antes de ir morar no Uruguai com meu pai. Depois disso acho que nunca mais nos vimos.
Eu desisti de limpar meus dedos e arremessei a bolinha num lixo ao meu lado. Ela me observava. Ela fez menção de pegar sua mala de rodinhas, mas eu tomei sua frente.
- Deixa que te ajudo. – Eu disse.
- Não precisa.
No entanto, eu já estava arrastando a mala atrás de mim, me fazendo de boa moça, meio boba e meio incrédula ainda com aquela situação toda.
- São quantas horas de viagem?
- Quase três. Vim lendo, ouvindo música, passou rápido... Você está de carro? – Ela perguntou quando percebeu que íamos em direção ao guichê para pagar estacionamento.
- Sim.
Tirei a carteira do bolso de minha calça. Um rapaz barbudo nos atendeu. Ele demorou alguns segundos a mais olhando para Elis. Talvez também encantado com ela.
- Deixa que eu pago. – Ela disse preocupada. – Já teve o trabalho de vir me buscar.
- Não, não é nada. – E logo me senti estúpida lembrando de mim mesma querendo mandar a foto do comprovante há poucos minutos pra pedir reembolso pra minha mãe por ela ter me colocado em uma enrascada. Agora acho até que mandaria ao invés disso uma mensagem de agradecimento por ter me confiado essa tarefa tão importante de buscar aquela beldade no aeroporto.
Caminhamos até meu carro. Era um HB20 preto, estava todo sujo. Devia mantê-lo em melhores condições. Elis pensaria que eu era uma pessoa relaxada. Mas a verdade era que eu era mesmo. Não tinha pra onde fugir.
- Você vai ficar aonde? – Perguntei curiosa.
- Eu vou pra casa da minha tia, depois não sei, acho que vou ficar um tempo em cada lugar. Preciso resolver umas questões jurídicas, só depois disso que volto pro Uruguai.
Abri o porta malas e coloquei a mala dela terrivelmente pesada lá atrás. Entramos. A última música que eu estava ouvindo no rádio começou a tocar quando liguei o carro. Era do The Smiths – There’s a Light That Never Goes Out.
Perguntei:
- Você já almoçou? Está com fome?
- Não quero te incomodar mais do que já estou incomodando, Leah.
- Você não me incomoda.
- Sua mãe disse que você estava trabalhando, que veio só me pegar.
Eu limpei a garganta sem graça me perguntando o que será que minha mãe devia ter dito de mim para ela. Eu não prestava. Eu sabia. Só porque tinha me interessado por Elis estava igual um cachorrinho abanando o rabo. Era minha prima, não podia me esquecer disso.
Mas eu só estava sendo educada, não era nada demais.
- Eu ainda não almocei. Não vai ser incômodo algum. Você precisa de algum lugar que sirva comida kosher? – Perguntei.
- Não. Eu não sigo a Torá há muitos anos. Desde que fui morar com meu pai. Imagino que você também não. – Ela me olhou indagando, confirmei com a cabeça. - Podemos comer em qualquer lugar que você quiser.
Saímos do aeroporto com a música ainda soando. Ela olhava pela janela pensativa.
Take me out tonight
Where there's music and there's people
Who are young and alive
Driving in your car
I never never want to go home
Because I haven't got one anymore
- Parece que faz um século que não venho pra cá. – Ela parecia inebriada. – Pensei que não ia mais voltar.
- Desculpe a pergunta, mas que assuntos jurídicos você precisa resolver? Eu conheço bons advogados.
- Preciso fazer o inventário do meu pai. Ele tem uma casa no nome dele que preciso vender. Eu não queria mexer com isso antes, mas agora parece que chegou a hora. Preferi vir pessoalmente resolver isso.
- Você tem irmãos?
- Por parte de mãe, do segundo casamento dela, mas eu não tenho contato com eles. Nem com minha mãe na verdade. São quatro rapazes. Não sei se você os conhece.
Ela não tinha contato com a mãe? O que será que tinha acontecido?
- Na verdade não. Há muitos anos não vou a nenhuma reunião de família.
- E você? Tem quantos irmãos? Eu me lembro da Ana só.
- Sim, somos só nós duas. Ela casou já, tem uma filha.
- E você? – Perguntou com um tom de voz curioso.
- Eu o que?
- Você é... casada? - Eu ri. Meu maior relacionamento tinha durado pouco mais de 1 ano. As mulheres iam e vinham na minha vida. Mas nenhuma ficava. Eu não tinha muita sorte com namoros, quem dirá um casamento. – Qual a graça?
Eu a encarei enquanto dirigia. Depois tornei a olhar para frente, olhei para a ponta dos meus dedos laranja.
- Não, eu não sou casada. – Respondi. – Eu não sou uma pessoa de relacionamentos, digamos assim.
- Ah... – Percebi que ela ainda me olhava, mas eu permanecia olhando para a estrada. Sentia seu olhar percorrendo meu rosto, meu cabelo, meus braços. Ainda bem que tinha tomado banho. Olhei para ela de canto de olho e vi seu olhar fixo numa tatuagem que eu tinha no meu antebraço direito, minha mão estava pousada no câmbio. Era de uma mulher, metade mulher, metade caveira.
Desviei o olhar antes que ela percebesse que eu percebia que ela me observava.
- E você? É casada? – Perguntei.
- Eu estou noiva.
- Mazel tov. – Parabenizei e ela achou graça.
Ela ficava uma graça achando graça.
Suspirei. Ela estava noiva, é sério isso? Leah, o que você estava pensando? Você está louca? Pode tirar seu cavalinho da chuva. Se queria tirar uma casquinha dela vai ficar é querendo. Ela é noiva, hetero e sua prima.
Estacionei o carro na rua e olhei pra ela.
- O que foi?
- Chegamos
Fim do capítulo
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becky blue
Em: 29/05/2020
Obrigada pela grata surpresa que é essa história, principalmente em tempos sombrios como estes. Li todos os capítulos em um fôlego só e estou adorando. Parabéns pelo texto intimista e envolvente e pelas personagens interessantes que fogem aos estereótipos habituais.
Ansiosa pela continuação ;D
Resposta do autor:
ei becky, eu que agradeço (; os tempos estão realmente difícies, comecei a escrevê-la em meio a uma crise de depressão e ansiedade, agora tenho me sentido bem melhor. Ter algo pra ocupar minha cabeça fora o caos que têm nos rodeado tem me feito muito bem. Fico feliz por saber que isso pode de alguma forma também tocar outras pessoas. Espero que continue por aqui! grande beijo!
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Vanderly
Em: 02/05/2020
Olá thays_!
Comecei a ler tua história agora e já gostei desse início.
Beijos!
Vanderly
Resposta do autor:
Oi Vanderly! Que bom te ver por aqui. Fico feliz que tenha se interessado por essa também, o tema é bem diferente do outro conto que escrevi recentemente. Espero que goste do desenrolar! ^.^ Beijos!
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Helena Noronha
Em: 12/04/2020
Oiee, Thays, há quanto tempo...
Tava aqui de bobeira no site lembrando os velhos tempos. Como as coisas mudaram, né? E como sempre, vc muito perspicaz na escrita. Até agora só li o primeiro capítulo, mas já deu pra perceber que a história vai ser boa.
Eu entendo a sua ansiedade e que bom que encontrou uma forma de te ajudar a passar por esse período difícil, quero dizer que pode contar com a minha assiduidade, há anos que não acompanho uma história aqui. Olha só que oportunidade maravilhosa de relembrar os velhos tempos com uma história que fala da atualidade escrita por uma autora tão talentosa. Não é todo dia que o universo conspira dessa forma kkkk
Estarei aguardando o desenrolar e pode deixar que vou participar muito desse desenvolvimento dando o meu apoio para vc.
Bjo, e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Helena! Nossa, que felicidade em ler seu comentário hahah me fez lembrar dos velhos tempos também, quando eu estava escrevendo aquela história de zumbis hahah menina, as coisas mudaram e muito, não é? Muitas reviravoltas. Nunca imaginei que algo como isso estaria acontecendo com o mundo. Os tempos estão difícies, imagindo que pra todo mundo. Mas precisamos nos cuidar, não só fisicamente, mas também mentalmente e estou tentanto usar a escrita como uma catarse e também pra manter minha mente ocupada. Fico feliz em ler seu nome por aqui. Sente-se, pegue um café e fique a vontade pra observar o dia a dia dessas novas personagens. Espero que goste do desenrolar da história.
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